Amante de viagens, o advogado italiano Giovanni Francesco Gemelli Careri (1651-1725), depois das muitas viagens que já tinha feito pela Europa, em 1693, com 42 anos, decide partir de Nápoles para uma volta ao mundo que iria durar cinco anos e cinco meses e que seria depois relatada numa obra de seis volumes intitulada "Giro del Mondo", publicada entre 1699 e 1700, logo após o fim da viagem.
Retrato de Giovanni Careri com 48 anos incluído na edição de "Giro del Mondo" em 1699 |
Macau surge no volume 4 intitulado "Nella Cina" (Na China): "Fondazione del cittá di Macau e sue fortezze" e "Ritorno dell’Autore a Macao" são os capítulos.
Careri chega a Macau em Agosto de 1695 (partira de Goa, portuguesa, onde se encontrou com o vice-rei da Índia) e pouco tempo depois segue numa missão de jesuítas até Pequim tendo estado com o imperador Kangxi em Novembro desse ano.
Regressa depois a Macau e ruma em Abril de 1696 em direcção às Filipinas num regresso a casa, a Nápoles, onde chega em Dezembro de 1698.
Entre as muitas obras que o italiano cita destaco - no que à China diz respeito - a de Gabriel de Magalhães, intitulada "Nouvelle Relation de la Chine" publicada em Paris em 1688 (chega a fazer longas transcrições sem as citar). Mas também recorreu às obras de António de Andrade e Álvaro Semedo sobre o império celeste.
Outro dado curioso da obra de Careri são as ilustrações de que não se sabe com certeza quem foi o autor (publico uma da china).
Certo é que o seu relato de Macau - onde fica hospedado nos aposentos cedidos pelos religiosos - na última década do século 17 é riquíssimo a todos os níveis.
Aqui fica um excerto do relato de Gemelli da versão inglesa a que acrescentei uma tradução.
Of the first Foundation of the City of Macao and its Forts
I am now at length come to enter the vast Empire of China and could wish my stile and language were suitable to the greatness of the subject that I might give the curious reader such a draught and description as it deserves; but that being above my capacity, he must be forced to take up and be satisfy with my unpolish way of delivery. Therefore to begin at one of the Ports of this Empire, that is Macao, which was the first place I came to, it is to be observed, that Macao, in the Chinese language, signifies a Port and is otherwise called Amagao, a name given it from an idol so intitled which was adored in that place.
It is feated in 141 degrees of Longitude and 22 of Latitude. On the point of an Island called Haichu, in the Province of Canton. The shape of it is like an Arm, encompased on all sides by the Sea, except where it joins to the shoulder. The ground it stands on is uneven, being hill, vale and plain. The houses are well built after the manner of Europe; the churches very fine for that country, especially that of the jesuits college which has a noble front adorned with beautiful pillars. In this church is preserved that most precious relick of St Francis Xaverius, being the bone of the arm from the shoulder to the elbow.
Next the Churches of the Augustins of St Francis, St Lawrence, the Misericordia and the Nuns are decently built and adorned.
Estou finalmente entrando no vasto Império da China e gostaria que o meu estilo e linguagem fossem adequados à grandeza do assunto para poder dar ao leitor curioso o esboço e a descrição que ele merece; mas estando isso acima de minha capacidade, ele deve ser forçado a assumir e satisfazer-se com minha forma de o fazer. Portanto, vamos começar por um dos portos deste Império, isto é, Macau, que foi o primeiro local a que vim. É de notar que Macau, na língua chinesa, significa Porto e é por outro lado denominado Amagao, um nome dado a um ídolo (deusa) que era adorado naquele lugar.
Está localizado a 141 graus de longitude e 22 de latitude. Na ponta de uma Ilha chamada Haichu, na província de Cantão. A forma dele é como um braço, cercado por todos os lados pelo mar, excepto onde se junta ao ombro. O terreno em que se encontra é acidentado, sendo colina, vale e planície. As casas são bem construídas à maneira da Europa; as igrejas muito belas, especialmente a do Colégio dos Jesuítas que tem uma fachada nobre adornada com belos pilares. Nesta igreja está preservada a relíquia mais preciosa de São Francisco Xavier, sendo o osso do braço, do ombro ao cotovelo. Em seguida, as Igrejas dos Agostinhos de São Francisco, São Lourenço, da Misericórdia e das Freiras são decentemente construídas e adornadas.
The streets of the city are all paved because there is no want of stone. There are in it 5000 souls of Portugueses, or better, and above 15000 Chineses. It is above 110 years since this place was founded by the Portugueses, for they coming from Malaca and India, to trade with the Chineses, and being overtaken by the bad weather, some ships miserably perishd for want of a secure harbour in the islands about Macao, which made them ask for place of safety to winter in till the season would allow them to return home and the Chineses for their own advantage gave them this spot of rocky land, then inhabited by robbers, that they might expel them as they did. At first they were permitted to build thatched houses but afterwards having bribed the Mandarines they not only erected substantial structures but made forts. (1695)
One of these is at the Mouth of the Harbour called the Fort of the Bar, whose wall up wards terminates at the Rock called Penha, which is an Hermitage of the Fathers of the Order of St Augustin, on the Hill. The other being the biggest is called the Fort of the Mountain, because seated on the very top of a Hill. There is also another high Fort called Nossa Senhora da Guia or our Lady of Guidance.
As ruas da cidade são todas pavimentadas porque não há falta de pedra. Nele estão 5.000 almas de portugueses, ou mais, e acima de 15.000 chineses. Passaram mais de 110 anos desde que este local foi fundado pelos portugueses, vindos de Malaca e da Índia, para fazer comércio com os chineses, e sendo atingidos pelo mau tempo, alguns navios naufragaram miseravelmente por falta de porto seguro nas ilhas vizinhas de Macau, o que os fez pedir um lugar seguro para o inverno até a estação permitir-lhes voltar para casa e os chineses para seu próprio proveito, deram-lhes este pedaço de terreno rochoso, então habitado por ladrões, para que os expulsassem como o fizeram. No início, eles tiveram permissão para construir casas de palha, mas depois, tendo subornado os mandarins, não apenas ergueram estruturas substanciais, como também construíram fortes. Um delas encontra-se na Foz do Porto denominado Forte da Barra, cuja muralha saliente termina na Colina da Penha, onde está uma Ermida dos padres da Ordem de Santo Agostinho. O outro, sendo o maior, chama-se Forte do Monte, por estar situado no topo de uma colina. Existe também um outro forte, num ponto elevado, denominado Nossa Senhora da Guia.
Philip Ferrarius was much mistaken when in his Geographical Dictionary he said that this City had belonged to the King of Portugal and that in the year 1668 it was taken by the Emperor of China and made Subject to his Dominion; for from its first Foundation it never suffered any Revolution, being a Colony of Portugueses by antient Grant of the Emperor to whom they pay, not only a yearly tribute, but Custom for goods and a duty upon every vessel proportionable to its bulk, tho it be not loaded; after the same manner as those of the Moors and English do, nor can any boat go in or out, without eave from the Chineses who guard the mouth of the harbour.
This little rocky enclosure of three miles has not provisions to subsist a day but all is brought to it from the towns of the Chineses who have hut up the Portugueses as it were in a prison having secured that, narrow Neck of Land which lies between the main Sea, and little Arm of it next the Continent with a Wall and Gate, which they lock up when they please, and starve the inhabitants as often as they will; the Country of China is so plentiful that the value of a piece of eight in bread (which is the best in the World) will keep a Man half a Year.
Filipe Ferrarius* enganou-se muito quando disse no seu Geographical Dictionary que esta cidade tinha pertencido ao Rei de Portugal e que no ano de 1668 foi tomada pelo Imperador da China e submetida ao seu domínio; pois desde a sua primeira fundação nunca sofreu qualquer revolução, sendo uma colónia dos portugueses por antiga outorga do imperador a quem pagam, não só um tributo anual, mas alfandegário pelas mercadorias e uma taxa sobre cada embarcação proporcional ao seu volume; da mesma maneira que os mouros e ingleses, não pode entrar ou sair qualquer barco, sem o consentimento dos chineses que guardam a foz do porto.
Este pequeno recinto rochoso de três milhas não tem provisões para subsistir um dia, mas tudo é trazido das cidades dos chineses que abrigaram os portugueses como se estivessem numa prisão tendo assegurado aquele estreito pescoço de terra que fica entre o mar principal e o seu pequeno braço próximo ao continente, com uma muralha e um portão**, que eles trancam quando querem, e deixam os habitantes famintos tão frequentemente quanto eles desejam; o país da China é tão abundante que o valor de um pedaço de pão de oito (que é o melhor do mundo) manterá um homem alimentado meio ano.
The Chineses allow the Portuguese the Government of the City of Macao as far as relates to the administration of Justice and for this privilege they pay a yearly imposition of 600 Taels, each of which is worth fifteen Carlines of Naples, which is about a Noble Sterling. Besides the Customs received by a Mandarine, whom they call Opu, and the duty, as was said before, upon every vessel proportionable to its bulk, the least of which pays no less than 1000 Taels, that is, so many nobles. The city chooses a Judge or supreme Magistrate, who has the management of civil and criminal affairs. (...)
The political government is in a General appointed by the King of Portugal and the spiritual in a Bishop. All these Officers and Commanders are maintained by the City which allows the Captain General a piece of eight a day and 3000 every three years; 500 to the Bishop, 150 to the Captains and proportionably to the Soldiers; (...)
All the income and revenue of the city and inhabitants of Macao depends upon the uncertainty of the sea. (...)
When the Trade of Japan flourished this city was so rich that it could have paved the streets with silver but after the slaughter of so many christians the trade of Nangasache was quite lost to the Portugueses it being death for any of them to be seen in that Port. Thus for want of that trade the inhabitants of Macao are fallen into that poverty they now labour under, having but five ships left of their own to maintain all the city and these do not bring home returns of 300 per cent as Japan afforded. (...)
Os chineses autorizam os portugueses ao Governo da Cidade de Macau no que se refere à administração da Justiça e por este privilégio pagam uma renda anual de 600 taéis, o que equivale a quinze Carlines de Nápoles, o que corresponde a cerca de uma Esterlina Nobre. Além dos direitos alfandegários arrecadados por um Mandarim, a quem chamam de Opu, e o imposto, como foi dito antes, pago por cada navio proporcional ao seu volume, o menor dos quais não paga menos que 1000 taéis, ou seja, tantos nobres. A cidade escolhe um juiz ou magistrado supremo, que tem a gestão dos assuntos civis e criminais. (...) O governo político está num Capitão-Geral nomeado pelo Rei de Portugal e o espiritual num Bispo. Todos esses Oficiais e Comandantes são mantidos pelo Senado, o que permite ao Capitão-Geral receber uma peça de oito por dia e 3.000 a cada três anos; 500 para o Bispo, 150 para os Capitães e, nas devidas proporções para os Soldados; (...) Todas as receitas e proveitos da cidade e dos habitantes de Macau dependem da incerteza do mar. (...) Quando o comércio do Japão floresceu, esta cidade era tão rica que podiam ter pavimentado as ruas com prata, mas após a matança de tantos cristãos, o comércio de Nagasaki foi completamente perdido. Assim, por falta desse comércio, os habitantes de Macau caíram na pobreza, tendo agora apenas cinco navios próprios para manter toda a cidade e estes não trazem para casa os rendimentos com lucros de 300 por cento como o comércio com o Japão permitiu. (...)
* Trata-se do monge italiano Phillippus Ferrarius que em 1605 publicou na cidade suíça de Zurique a obra "Epitome Geographicus in Quattuor Libros Divisum".
** Porta do Cerco.
continua...
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