quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Macau no século XVII por António Bocarro

Em baixo a "Planta de Macau" desenhada por Barreto de Resende, porventura um dos primeiros mapas minuciosos de Macau feito para o "Livro das Plantas e todas as Fortalezas, Cidades e Povoaçoens do Estado da Índia Oriental" do cronista António Bocarro (ms. Goa, 1635).
Este mapa serviria de modelo para outras reproduções muito semelhantes como a de João Teixeira de Albernaz (cartógrafo português do século 17), Pedro Barreto de Resende (Livro do Estado da Índia Oriental, 1646) e a de António de Mariz Carneiro em 1639 (imagem abaixo) para a obra "Descripçam da Fortaleza de Sofala, e das mais da India com uma Rellaçam das Religiões todas, q há no mesmo Estado".
Uma outra versão do 'mapa'.
Charles R. Boxer no livro "Macau na época da Restauração / Macau 300 years ago" - edição em português e inglês (1942) reproduz o texto de Bocarro e inclui algumas notas. é esse texto que a seguir se reproduz.

"A cidade do nome de Deus está em altura de vinte e dois graus (1) e muito da banda do norte sita na ponta austral duma península, na costa do reino da China, na fralda do mar, na província de Cantão, uma das quinze em que se divide este grande reino do estado de Nanpan (2); esta ponta da dita península é chamada pelos nossos e pelos naturais Macau(3); tem a península uma légua de comprido, e no mais largo quatrocentos passos, a cidade fica tendo meia légua de comprimento e onde mais estreita cinquenta passos e onde mais larga trezentos e cinquenta, fica participando de dois mares do levante e poente, digo oponente, é uma das mais nobres cidades do Oriente por seu rico e nobilíssimo trato, para todas as partes, de toda a sorte de riqueza e coisas preciosas em grande abundância, e de mais número de casados e mais ricos que nenhuns que haja neste estado.
Do ano de mil quinhentos e dezoito, em que os portugueses a primeira vez vieram à China com uma embaixada do Sereníssimo Rei Dom Manuel, contrataram em vários portos deste reino e finalmente no porto e Ilha de Sanchoão esta cidade tomou seu primeiro princípio, e onde no ano de mil quinhentos e cinquenta e dois faleceu São Francisco Xavier, segundo apóstolo da índia e padroeiro desta cidade (4), e no ano de mil quinhentos e cinquenta e cinco se passou o trato à Ilha de Lampacao, e no de mil quinhentos e cinquenta e sete se passou para este porto de Macau, onde com o trato e comércio se foi fazendo uma populosa povoação, e no de mil quinhentos e oitenta e cinco, sendo vice-rei da Índia Dom Francisco Mascarenhas, foi feita cidade por Sua Majestade, com título do nome de Deus, dando-lhe por armas a cruz de Cristo e outras liberdades de que goza com privilégios da cidade de Évora; é porta por onde vejo da Índia para a China por mar o apóstolo São Tome (5) e por onde nestes tempos o Santo Evangelho levado pelos religiosos da Companhia de Jesus entrou nestes reinos e no de Japão e Cochinchina com grande glória sua e aumento de sua Igreja.
Os casados que tem esta cidade são oitocentos e cinquenta portugueses e seus filhos, que são muito mais bem dispostos e robustos, que nenhuns que haja neste Oriente, os quais todos têm uns por outros seis escravos de armas, de que os mais e melhores são cafres e outras nações, com que se considera que assim têm balões que eles remam pequenos em que vão a recrear-se por aquelas ilhas seus amos, poderão também ter manchuas maiores que lhe sirvarão para muitas coisas de sua conservação e serviço de Sua Majestade (6).
Além deste número de casados portugueses tem mais esta cidade outros tantos casados entre naturais da terra, chinas cristãos que chamam jurubassas (7) de quem são os mais, e outras nações todos xipaios e assim os portugueses como estes, tem suas armas muito boas de espingardas, lanças e outras sortes delas, e raro é o português que não tem um cabide de seis ou doze mosquetes pederneiros e outras tantas lanças porque os fazem dourados que juntamente lhes servem de ornamento das casas (8).
Tem além disto esta cidade muitos marinheiros e pilotos e mestres portugueses, os mais deles casados no reino, outros solteiros que andam nas viagens de Japão, Manila, Solor, Macassa, Cochinchina, destes mais de cento e cinquenta, e alguns são de grossos cabedais de mais de cinquenta mil xerafins que por nenhum modo querem passar a Goa por não lançarem mão deles ou as justiças por algum crime, ou os vice-reis para serviço de Sua Majestade, e assim também muitos mercadores solteiros muito ricos em que mulitam as mesmas razões (9).
Tem mais esta cidade capitão geral que governa as coisas de guerra com cento e cinquenta soldados em que entram dois capitães de Infantaria e outros tantos alferes e sargentos e cabos de esquadra, e um ajudante, um ouvidor, um meirinho que administra Justiça; vence o ouvidor cem mil réis de ordenado contratados na Alfândega de Malaca.
E ministros eclesiásticos têm um bispo que hoje é morto e ainda não está provido, que vence dois mil (réis) de ordenado pagos na Alfândega de Malaca.
(1) Latitude 25°-30′ N., conforme a versão de Resende.
(2) Niaynocan, na versão de Resende. Não posso sugerir qualquer identificação a não ser a, aliás pouco provável, de Nankin.
(3) Tradicionalmente explicada como transliteração do chinês A-Ma-Ngao (A-Ma-Baía, ou Baía da Deusa A-Má). O nome usual chinês é Ngao Meng (Porto da Baía).
(4) A cronologia de Bocarro não oferece confiança. O primeiro português que veio à China, que até agora se saiba, foi um certo Jorge Álvares, que erigiu um padrão, ou pilar de pedra, comemorativo da sua visita à Ilha de Lintin (T’un-mên) no delta do rio de Cantão, em 1513 (J. M. Braga, O Tamão dos Pioneiros Portugueses). A embaixada referida por Bocarro é sem dúvida a de Tomé Pires que veio com Fernão Peres de Andrade em 1517.
(5) Tradução interessante que não me lembro ter lido em qualquer outra fonte. Sobre a lenda de S. Tomé, e a sua acção missionária na Índia e na China, veja-se Yule; O Livro de Ser Marco Polo.
(6) Este último parágrafo é altamente confuso e obscuro tanto no manuscrito de Évora como no do Museu Britânico. Dificilmente se lhe encontra sequência lógica desde a observação dos escravos negros e é provável que faltem algumas palavras ou linhas ou se tenham perdido. Para a definição do barco indo-português, conhecido por Balão e Manchua, veja-se Yule e Burnell, Hobson-Jobson (ed. de 1903 p. 53, 549-550 e o Glossário Luso-Asiático, de Dalgado, I. p. 85, II p. 19. A descrição destes pequenos e destros barcos é reproduzida adiante neste livro.
(7) Literalmente intérpretes. «A palavra é de facto malaio-javanesa: «Jurubahasa», mestre da língua, de «Juru» — mestre de ofício — e a palavra sânscrita «bháshá» — discurso. Hobson-Jobson, p. 474.
(8) Ainda é costume em algumas velhas famílias.
(9) Outra razão não mencionada por Bocarro, mas frequentemente citada pelos vice-reis de Goa, era a liberdade das atenções da Inquisição desfrutada pelos habitantes de Macau, onde era impossível realizar autos-de-fé por causa dos chineses. Macau era assim um paraíso de refúgio para muitos suspeitos ou receosos do Santo Ofício.

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