Entre os século XVI e XVII um total de 12 embarcações portuguesas da então denominada Carreira da Índia naufragaram na costa da África do Sul. Destroços de nove desses navios foram entretanto descobertos.
Neste post vou abordar um desses naufrágios ocorrido a 30 de Junho de 1647 na viagem inaugural do galeão (imponente - 4 mastros - mas ligeiramente mais pequeno e mais manobrável do que as naus) português Santíssimo Sacramento.
Segundo C. R. Boxer (A Índia Portuguesa em Meados do Séc. XVII. Lisboa: Edições 70, 1982), o galeão de 80 canhões foi construído em teca nos estaleiros de Bassein, no norte de Goa.
A história da tragédia começa a 20 de Fevereiro de 1647 quando a pequena frota de dois navios (o Sacramento e o Nossa Senhora da Atalaia) partiu de Goa, uma época já tardia face ao habitual e expondo-se aos rigores do inverno na passagem do Cabo da Boa Esperança. O capitão do Sacramento era Luís de Miranda Henriques, também capitão da frota, enquanto Nossa Senhora da Atalaia era comandada pelo almirante António da Câmara de Noronha.
A frota transportava uma grande carga de porcelanas chinesas, 60 a 80 canhões construídos por Manuel Tavares Bocarro em Macau, e uma vasta gama de sedas, algodões, madeiras preciosas, especiarias, drogas, ouro e pedras preciosas, a maioria ofertas da cidade de Macau para o rei D. João IV, após a restauração da independência ocorrida anos antes (1640).
Galeão português do século 17 |
Perante da data tardia da temporada, o capitão do São Pedro, Luís Botelho Fróis, resolveu rumar a Moçambique e ali passar o inverno. (Ainda assim no ano seguinte, quando retomou a viagem quase naufragou ao passar pelo Cabo, e teve que se dirigir ao Brasil para consertar o navio, depois do qual regressou finalmente a Lisboa, naufragando nos Açores, em 1651.)
Entretanto, o Sacramento e o Atalaia separaram-se devido a uma tempestade no dia 12 de Junho. Os relatos do sucedido foram escritos por Bento Teixeira Feio, a partir de histórias que ele mais tarde ouviu.
Nesta tempestade o Sacramento sofre danos severos mas após alguns concertos prossegue viagem para o sul, em direcção ao Cabo da Boa Esperança. Na noite de 15 de Junho, outra tempestade atingiu o navio que passa a navegar (demasiado) junto à costa. Na noite de 29 para 30 de Junho o vento forte acaba por empurrar o enorme galeão contra o rochas a 43 graus de latitude sul, na baía de Algoa, perto de Port Elizabeth (África do Sul).
Apenas 72 pessoas sobreviveram. Depois de repousar 11 dias na praia, os sobreviventes decidiram caminhar até Moçambique e iniciaram uma marcha 'mortal' para o norte. Quase cinco meses depois, a 27 de Novembro, apenas nove pessoas ainda estavam vivas quando encontraram os sobreviventes de Nossa Senhora da Atalaia na Zululândia.
Em 1778, o capitão de uma guarnição holandesa estacionada nas proximidades visitou a baía de Algoa/Praia Gordon e marcou o local do naufrágio num mapa, tendo por referência a localização das cabanas construídas pelos sobreviventes.
Dois século depois, em 1949, um documento refere o avistamento de um canhão e duas âncoras na zona durante a maré baixa e em 1952 um pesquisador chamado Harraway assinalou o local com um ferro.
Seria preciso esperar até Janeiro de 1977 ano em que David Allen e Gerry van Niekerk localizaram numa primeira fase 21 canhões submersos na zona antes assinalada por Harraway. Pouco tempo depois do início dos mergulhos esse número subiu para 61 quando David Allen encontrou outras 40 armas (21 de ferro e 19 de bronze).
Um desses canhões data de 1640. Tem 4,5 metros de cumprimento e tem 2,5 toneladas de peso. Está hoje no Museu de Port Elisabeth e merece especial atenção por ser o que foi encontrado em melhor estado de conservação. Daí ter recebido a alcunha de "milagre". O milagre está na forma clara como se podem ler as inscrições do fundidor Manuel Tavares Bocarro, do brasão macaense, das alças de levantamento elaboradas com detalhes em forma de meio humano, meio golfinho, e da 'figa', a marca de MTB.
David Allen (à esq. na foto) e Gerry van Niekerk em Janeiro de 1977 junto ao canhão "Milagre".
Em contacto com o ar o bronze oxida daí o tom esverdeado.
Em 1986 o canhão "Milagre" foi declarado Monumento Nacional pelo governo da África do Sul e foi exposto ao ar livre em Schoenmakerskop apontando para o local do naufrágio. No memorial então construído refere-se de forma resumida a origem do canhão mencionando-se a sua fundição em Macau por Bocarro em 1640.
Também se descreve a história tragicamente notável dos 72 sobreviventes do Sacramento, que percorreram 1300 quilómetros por terra até chegarem - apenas 9 em Janeiro de 1648 - a Delagoa Bay (Lourenço Marques/Maputo).
Em primeiro plano a "figa" símbolo de Manuel Taveres Bocarro cujo nome também surge inscrito no canhão retirado do fundo do oceano na África do Sul a 29 de Abril de 1977.
No topo o Brasão de Armas de Macau seguida de...
uma coroa de Marquês e um leão rampante, símbolos da fidalguia e da família Teles Menezes; e por fim...
"Antonio Teles Menezes, Governador da Índia, a mandou fazer no anno de 1640"
No mesmo ano da descoberta 17 dos canhões de bronze mais degradados foram vendidos como sucata a 75 cêntimos o quilo. Muitos eram da própria guarnição do galeão (tinha 80)
A localização actual do canhão 'apontando' para o local do naufrágio
Para além dos canhões também foram recuperadas peças de porcelana azul de origem chinesa.
Nota: A 27.2.2023 Armando Cação enviou um email onde escreve: "Na sua publicação de 8 de Dezembro apresenta a peça do memorial como sendo o Canhão milagre. Trata-se de duas peças diferentes, como pode ver pelas fotos, pois a peça do memorial tem o cascavel em forma de botão de flor de lótus e o Canhão Milagre tem o cascavel em forma de figa. São ambas de 1640 e têm a mesma história, mas são peças diferentes."
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