sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Manuel da Silva Mendes morreu há 91 anos

Manuel da Silva Mendes morreu às 11 da manhã de 30 de Dezembro de 1931 com uma cardite na sequência do reumatismo crónico. Tinha 64 anos. Foi sepultado no cemitério de S. Miguel Arcanjo em Macau. Na sua lápide há uma inscrição: “Nascer não é começar. Morrer não é acabar”.

A Voz de Macau 31.12.1931

Na edição 3 de Janeiro de 1932 o jornal "A Voz de Macau" faz manchete com a notícia de "O funeral do Dr. Silva Mendes" que se realizou no cemitério de S. Miguel. O artigo ocupa toda a mancha da primeira página e termina na página quatro. O director do jornal era Henrique Nolasco da Silva e o proprietário e redactor principal D. G. da Rosa Duque. A reprodução que se segue respeita no essencial a grafia original.
"Morreu o Dr. Silva Mendes. Esta notícia tão inesperada colheu-nos com a mais dolorosa surpresa. É que se sente, profundamente o abalar inesperado de um amigo bom, um colaborador dos mais distintos de A Voz de Macau cujas páginas abrilhantou com a sua colaboração distinta, um camarada ilustre cuja convivência nos honraria pela lanhes de trato e amizade desinteressada com que nos distinguia. Os seus conhecimentos vastos e profundos, quer como advogado distintíssimo, quer como escritor de raro mérito, nunca desentendidos na vasto e douta obra que legou à posteridade, impõe-se à nossa consideração e respeito, como expoente de uma inteligência invulgar ao serviço de uma proficiência e probidade profissionais verdadeiramente raras. As facetas variadas do seu saber, manifestam-se irradiando o fulgor da sua erudição profunda, no conhecimento e manejo hábil da língua difícil de Camões; na vastidão dos seus escritos nos jornais de Macau, nos arquivos dos tribunais da comarca, em documentos de subido valor, pela profundesa de argumentação, pela perfeição da disserção, pela claresa da linguagem, pela elevação e singelesa de conceitos e belesa da forma. 
Vindo novo ainda em Macau, em Fevereiro de 1901, em Maio desse ano tomava posse do seu lugar de professor do Liceu de Macau onde, no ensino, das letras pátrias e da língua latina, demonstrou durante 25 anos do magistério secundário, profundo e solido conhecimento na regência das disciplinas que lhe foram entregues. Assim o declararam os seus inúmeros alunos que hoje lamentam a perda de tão ilustre ornamento do corpo docente do Liceu de Macau. Durante os seus 30 anos de residência em Macau, foram-lhe confiados, em diversos períodos da sua vida, elevados cargos de responsabilidade da administração pública, como substituto do Juiz de Direito e do Delegado do Procurador da República, tendo por várias vezes entrada no exercício dessas funções; como Presidente do Leal Senado, Administrador do Concelho, membro de várias comissões públicas nomeado pelo governo, tendo em todos estes cargos revelado uma inteligência lúcida, uma cultura e ponderação invulgares e um saber profundo que nas mais insignificantes circunstâncias se revelavam e impunham ao respeito de todos os que o ouviam. No exercício da advocacia mostrou-se sempre pronto a acolher todos os que recorriam ao seu saber profissional, jamais se preocupando em distinguir pobres de ricos, a todos tratando com o maior desvelo e o mesmo carinho.
Quantas vezes e quantas, ele, na bondade do seu coração dispensava os honorários em causas justas - que só destas ele tratava - a cujos autores escasseassem os meios de o fazer. Ainda nos últimos anos da sua vida, os seus colegas recorriam ao seu saber para decifrar uma dúvida, para solicitar um conselho, e por vezes, a solicitar uma orientação esclarecida, nas pugnas difíceis do foro. Além destes, os seus grandes amigos - os chineses - nele encontravam sempre o amparo, o carinho, o auxílio moral e material que, sem ostentação, sem alarde, lhes dispensava e lhes captava a gratidão. A sua alma de artista acha-se dispersa pelas preciosidades que ornamentavam a sua residência onde as raridades chinesas atestam o espirito crítico, artístico e estético que nele se achavam desenvolvidos em elevado grau. O Dr. Silva Mendes morreu. É Macau todo que sofre, lamentando a sua falta. Ele não que amarrado ao grilhão feroz da doença pertinaz que o vitimou, se livrou do sofrimento atroz que, com uma submissão evangelica e com a heroicidade de santo suportou até aos últimos momentos da sua existência.
O seu funeral foi uma homenagem sentida e sincera, em que compareceram além de S. Exa. O Encarregado do Governo e o seu chefe de gabinete, as individualidades de maior destaque na administração pública, funcionários civis e militares de todas as classes, o Presidente do Leal Senado, representantes do corpo docente e discente do Liceu de Macau, alunos e banda do Orfanato Salesiano, o representante deste jornal e muitos chineses de todas as classes da população da Colónia, dentre os quais destacamos os seus particulares amigos, Srs. Chan Chec-yu, ex-governador civil de Cantão, Dr. Lao Ioc-lon ex-ministro do governo chinês em Londres e Ma Pon-san, superior do mosteiro budista de Cheoc Lam. Durante o cortejo fúnebre dirigido pelo nosso amigo do saudoso extinto, sr. dr. Américo Pacheco Jorge, organizaram-se os seguintes turnos: Exmos. Srs. 1º Dr. Pereira de Magalhães, Dr. Brito e Nascimento, Dr. Gonçalves Cerejeira, Eng. Schiappa Monteiro, Henrique Nolasco da Silva, José Sales da Silva. 2º Dr. Ferreira de Castro, Dr. Vila Franca, Dr. Pedro Lobato, Dr. Duarte Vasconcelos, Dr. José Maria Pereira, f. Garcia (representando a Academia do Liceu Central). 3º Dr. Carlos de Melo Leitão, Dr. Adolfo Jorge, Dr. Pais Laranjeira, Damião Rodrigues, Jacques Gracia, Henrique Machado. 4º Dr. Caetano Soares, Viseu Pinheiro, Cap. Quinhones de Silveira, Chan Chec-yu, Lao Ioc lon, Ma Pou-san. À beira da sepultura o Dr. Abílio do Brito e Nascimento, Juiz de Direito dos tribunais do Cível e do Crime desta Comarca, pronunciou com visível comoção a seguinte peça oratória que, com permissão de S. Exa. Passamos a reproduzir na íntegra como homenagem sentida e sincera prestada, nos últimos momentos, aquele que passou a vida praticando o bem, com modéstia e desinteresse que brilhou pela sua rara inteligência e profundo saber, que conquistou os corações pela franquesa e simplicidade do seu trato, que deixou amigos que jamais esquecerão as horas de amável convívio que a sua amabilidade lhes dispensou:
"Determinaram circunstâncias eventuais que fosse eu quem se encontrasse à testa dos tribunais da comarca na hora lutuosa do passamento dum dos seus mais ilustres advogados, o Dr. Silva Mendes, decano dos advogados nestes auditórios. O elogio das suas qualidades eminentes de profissional, da sua nunca desmentida lealdade e camaradagem, do seu elevado grau de saber e da sua arguta inteligência, fa-lo-iam com mais propriedade e mais brilho, os seus colegas no fôro. Em nome do pessoal judicial dos tribunais da Comarca de Macau rendo sentidamente a minha homenagem de profundo respeito ao advogado extinto. E, desobrigado desta dolorosa missão, que um dever social me impôs, que, a sós com ele, ter a palestra que lhe prometi, na resposta à carta que ainda há dias me escreveu. Querido e saudoso amigo, o homem não vai todo à sepultura, disse-o um dos nossos escritores do século passado. Nesta hora solene em que uma alma milenária dentro de mim se confrange e apavora, com o medo metafísico da Morte, o meu espírito ergue-se acima da transcendência do fenómeno para seguramente te afirmar que o homem, não vai à sepultura. Que importa a forma transitória e caduca; o agregado momentâneo e instável, se o que tu foste, e sempre será para nós - é o teu pensamento lúcido; os teus ensinamentos proveitosos; o teu lindo exemplo de estoica submissão a essa inutilidade incompreensível e malfazeja da doença que te torturou os últimos tempos da vida?!
Que importa a forma transitória e caduca, se o que tu foste, e sempre serás para nós, é esse complexo, tão difícil de denominar, que continuará a viver, mesmo depois de nenhum de nós se lembrar sequer da tua imagem?! Não. O homem não vai à sepultura. O homem é o momento efémero de uma coisa eterna! Ante a visível extensão limitado do que de ti resta para a minha percepção finita, sinto que a verdade não está na trágica aparência instável da matéria. Para além dos restos mortais que numa romagem piedosa viemos acompanhar, e que dentro em pouco, se confundirão com o pó, alguma coisa perdurará que eu não sei nomear, mas em que o tempo não tem poder. Esse «alguma coisa» é o que houve em ti de verdade eterna! E essa, não baixa à sepultura. É a emoção da Beleza plástica de muitos dos teus versos, de linhas rijamente clássicas. É a tua grande intuição filosófica que elevou a tua inteligência à concepção da harmonia unitária do Universo, na qual só são abominações e erros, as lutas fratricidas em que nos degladiamos uns aos outros; na qual só há de mesquinho as nossas ambições e cobiças; na qual, só são monstruosos os ódios negros que nos profligam o coração e desvairam a mente.
Harmonia unitária cuja lei é esse ideal de Bondade que formulaste como Evangelho da moral perfeita, que tu aspirarias que fosse regra de conduta entre os homens: «Aos bons faz sempre o bem. Aos não-bons fá-lo também.» Foram os teus entusiasmos, só acessíveis a uma alma de artista, que te exaltaram o efémero momento da vida, acima da existência vã e comum, e dele fizeste exemplo vivo de que só um ideal nos nobilita e torna verdadeiramente a vida digna de ser vivida. E é justamente essa porção de ideal, com que iluminaste a tua precária existência, o que há-de sobreviver e o que nós comemoramos aqui.
É a capacidade de amor que o teu coração comportou, como ainda há pouco manifestaste na dedicatória aos teus discípulos no livro que compuseste, e que nos viu revelar que do professorado fizeste um sacerdócio, e lhe deste não só os primores da tua inteligência, mas a ternura do teu coração. É o que te fez, não a entesourar ouro vil, que te faria morrer menos pobre; mas a dispendê-lo largamente em seleccionar as raridades do teu museu, que está aí a lembrar à administração da colónia a indesculpável incúria de o não ter feito o mesmo, em quatro séculos de governo. Acima da saudade que me deixa o teu convívio, onde encarou refúgio e carinho o meu espírito tresvariado por tanta interrogação inquietante, nas muitas palestras que tivemos, plana a emoção da formidável grandeza desta hora final da tua glorificação - que tanto é dizer a hora suprema em que os vivos julgam os mortos, na liquidação sumária de todo o acervo dos seus pensamentos e medos, formulando em esboço, os severos quesitos da história: Que fizeram da vida? Que património nos legaram de exemplos a seguir? Em que concorreram para a nossa perfeição moral? Que fizeram para estreitar os laços da solidariedade humana, ensinando-os com a palavra ou induzindo com o exemplo? Respondem por ti as tuas próprias palavras, que melhores as não tenho eu, e que vou buscar à dedicatória do livro em que te falei. E, é a paráfrase do pensamento nelas contido, que ao deixarmo-nos de ver para sempre, inscrevo no frontão do monumento que, aos teus merecimentos invulgares, eleva a minha humildade e a minha admiração. Aqui foi sepultado o corpo de um homem que compreendeu e sentiu que a única felicidade humana reside apenas «no trabalho e na virtude».” "A Voz de Macau" apresenta à Exa. enlutada família os seus sentidos pêsames".

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