As imagens são do Diário Náutico da Barca Maria Carlota que fez durante muitos anos, a partir de 1855, a rota entre Macau e Singapura. Em cerca de 200 páginas são relatadas essas viagens da Barca Maria Carlota, entre Macau Singapura.
Em baixo transcrevo um texto onde o auto refere detalhes sobre a barca construída em Portugal, nomeadamente sobre o dia em que foi lançada à agua no ano de 1854.
A marinha portugueza sempre foi distincta, quer pelos seus feitos militares desde D. Fuas Roupinho, no começo da monarchia, até aos commandantes do Belizario e lorcha Leão no mar da China em nossos dias, quer pela excellencia dos seus navios e aperfeiçoamento das suas construcções sendo ella a primeira que lhe introduzio o uso das varandas nas poppas e o forro de madeira e gála gála sobre o costado trazido da mesma China por Fernão Lopes em 1516, e quer finalmente pela habilidade dos seus officiaes que primeiro navegaram mares incognitos accusando aos seculos futuros o nome de Magalhães as suas aventurosas e longiquas descobertas.
Nem a inveja mais ignobil nem o orgulho mais insolente podem escurecer a ousadia daquelles portuguezes que em novembro de 1497 dobraram o Cabo da Boa Esperança ou no anno de 1519 circumdaram o globo pelo sul da America.
E posto que muitos detractores do que hé nacional procurem deprimir quanto ha de grandioso e optimo neste paiz, nem comtudo poderão negar que só em 1838 o almirantado de Inglaterra estabeleceo exames para habilitar os officiaes da sua marinha mercante quando em Portugal já estes eram por lei obrigados a faze los desde o reinado da senhora D Maria I.
Daqui resulta que tanto os navios como os mesmos officiaes têm sido em todos os tempos considerados como os melhores de todas as marinhas do mundo. Mas quando por qualquer respeito houvesse incredulos da preeminencia destes ultimos que precisam demonstrar a sua superioridade por factos mais ou menos notorios e susceptiveis de varia interpretação nem por isso a podem contestar aos navios que nesse Téjo e nos portos nacionaes e estrangeiros se não excedem aquelles rivalisam com quanto apresentam de melhor os construidos na India ingleza, na propria Inglaterra, America ou França.
Com effeito quem vio o Grão Careta, o Grão Canoa, o S Thiago, o S Domingos Enéas, o Principe, o Vasco da Gama, o Oceano, os Tres Reinos Unidos, o Duque de Cadaval e outros grandes navios de oitocentas a mil e duzentas toneladas, pertencentes as praças de Lisboa e Macau, não deixará de sustentar a sua primazia e hoje mesmo que tudo quanto hé portuguez está tão mal conceituado que nenhum maritimo ousará comparar o melhor navio estrangeiro ás galeras D Affonso e Adamastor, aos patachos Alfredo e Arrogante, aos brigues Zaire e Novo Viajante, e á escuna Magrico.
Enthusiastas pois do que havemos sido e somos máo grado de quem o nega e desconhece tivemos a curiosidade de ir a Porto Brandão examinar a barca Maria Carlota que o sr Joaquim Maria Osorio encommendou á illustrada intelligencia do engenheiro o sr Silva e confessamos sem receio de hum desmentido que este bello navio ha de honrar a sciencia dos constructores navaes portuguezes.
Hé bem lançado tem bonitas sahidas de agua, muita capacidade em relação ao seu pontal e quilha, e quanta solidez póde comportar hum vaso mercante susceptivel até de montar bôcas de fogo.
Dizemo lo assim não só por nos julgarmos hum pouco competentes na materia senão porque tivemos a boa fortuna de ouvirmos fazer igual juizo das qualidades nauticas do vaso aos srs conselheiros, inspector do arsenal e commandante da curveta Porto, commandante do vapor Terceira, lentes da escola naval e, mais que tudo, aos srs engenheiros constructores militares, Moraes e Sampaio, que emittiram a mesma opinião diante dos srs ministros do reino e da justiça, os quaes ali concorreram para honrar o merito do referido constructor e applaudir os bons desejos e esforços commerciaes que o sr Joaquim Osorio e o corpo do commercio portuguez que elle representava nessa occasião, manifestam e empregam com vantagem do seu paiz procurando lhe novos mercados e offerecendo lhe transportes de huma solidez e acabamento que pouco mais deixam a desejar.
Aquelle senhor e os seus amigos que esperavam a honra da visita de ss ex as e do escolhido acompanhamento de officiaes da armada e pessoas distinctas que os seguiam depois de largo espaço gasto no exame da linda barca Maria Carlota, offereceram lhes hum esplendido lunche de quasi quarenta talheres servido com huma profusão delicadeza e aceio dignos de todo o reparo.
Durante a comida fizeram se brindes adequados ao assumpto época e pessoas; o primeiro á prosperidade do corpo commercial portuguez e particularmente ao sr Joaquim Maria Osorio e seus amigos ali reunidos que o representavam, o segundo ao digno engenheiro constructor o sr Silva que tantas provas de merito exhibia sendo a ultima a factura deste decimo quarto navio que as coroava; terceiro, aos officiaes da marinha mercante portugueza mais habilitados do que o geral dos da sua classe nos outros paizes representados todos pelo sr capitão daquella barca; quarto, aos officiaes da marinha de guerra nacional representados igualmente pelos srs commandantes presentes, inspector, constructores e lentes da escola naval; e por ultimo, á honra, gloria e prosperidade do povo portuguez representado pelos ministros que tantas sympathias vão adquirindo pelos desejos que patenteiam de fomentar a industria do paiz concorrendo para o maior goso de liberdade e bem estar dos cidadãos.
O sr ministro do reino n hum pathetico e brilhante improviso deixou os circumstantes extasiados e deu lhes as mais esperançosas rançosas seguranças de que o governo se não conseguisse preencher aquelle desejado sim pelo menos contava aplanar difficuldades que a isso se oppunham.
O sr Osorio com grande effusão do coração teve a habilidade de resumir em poucas palavras os sentimentos que todos queriam manifestar no que foi muito applaudido e o sr Sampaio a quem se dirigiram merecidos louvores como representante da imprensa portugueza explicou, em nome da mesma, a sua maneira de proceder e quanto toda ella agrupada a qualquer systema politico se empenhava em honrar a patria e prestar lhe serviços.
O dia 18 de outubro de 1854 estava lindo como lindo debaixo deste céo de Portugal hum dia de outono vendo se a cinco leguas de distancia as penhas de Cintra, sem huma nuvem, o mar de leite, muitos navios relaxados da quarentena de panno largo, impellidos apenas pela maré de cheio, o rio coberto de embarcações, o escaler dos ministros abicado å praia com os seus vinte e quatro remeiros de uniforme e bem vestidos, outro escaler do arsenal com doze homens, igualmente uniformisados, as bellas canôas do inspector dos commandantes Silva, e Sette embandeiradas formavam hum espectaculo delicioso e como que promettendo á nova barca proxima a fender as vagas os mais gratos e fagueiros destinos.
Assim a Providencia o permitta para proveito dos emprezarios a quem ella pertence e deste reino em geral que fantos inimigos calumniam.
in Folhetins Marítimos, Joaquim Pedro Celestino Soares, Lisboa, 1861
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