Macau, 10 de Janeiro de 1839
A Península de Macau faz parte da grande Ilha do mesmo nome, à qual se liga por um istmo de trezentos a quatrocentos metros de largura, inteiramente atravessado por uma muralha pouco elevada, no meio da qual deixaram uma porta que nenhum europeu pode atravessar, porque do outro lado é um posto de mandarins. A certa distância desta barreira, do lado da península, fica um templo bastante bonito, no meio de um espaço murado. Em frente, e do lado do Porto Interior, entra-se num pátio cercado por uma bela balaustrada aberta em dois lados, de modo a deixar uma passagem, a qual é muito frequentada. Nunca consegui entrar no templo, apesar de vários esforços que fiz para tal, pois o mistério deste lugar tinha para mim forte atracção. Cada vez que atravesso o pátio ouço o ladrar de cães que não deixam nunca sair e que vejo através das grades. Este templo encosta-se à esquerda a uma colina guarnecida de alguns pinheiros e na qual há um outro templozinho, tão perfeitamente dissimulado sob as árvores magníficas que o rodeiam que, a primeira vez que vim desenhar ali muito perto, não suspeitei da sua existência. Chega-se lá por uma escada em mau estado; depois de entrar a porta, sobre a qual ainda se vêem distintamente as inscrições de que estava coberta outrora, apenas vi um telhado sustentado por quatro colunas de madeira, debaixo do qual não resta nem altar, nem ornamentos de qualquer espécie. Nunca encontrei, nesta ruína, senão chineses miseráveis, sem rabicho, o que me fez saber que era um lugar de asilo onde os culpados estão em segurança; isto explica a deterioração e o abandono do templo que nada mais conservou da antiga personalidade e serve agora de cozinha aos malfeitores que nele se vêm refugiar.
O Largo do Senado num mapa do final do século 19 |
Macau, 22 de Fevereiro de 1839
O Largo do Senado, que é o maior de Macau, separa a cidade chinesa da portuguesa e é aí onde os estrangeiros mais se misturam com os locais. O Senado ocupa uma das suas extremidades; na outra, e num recanto, encontra-se a Igreja de São Domingos, junto da qual desemboca uma rua chinesa. É precisamente aqui que venho de manhã para desenhar os grupos chineses, porque estou mais à vontade que no bazar onde há sempre multidão, o que me tira a possibilidade de trabalhar, enquanto que neste canto assisto ao espectáculo que quero pintar, e vejo os meus actores agitarem-se sem ser incomodado pelo seu movimento. Uns não mudam de lugar; são os serralheiros, os barbeiros, os sapateiros, os vendedores de comestíveis e os de comida feita; mas os fregueses vão e vêm sem cessar, aos encontrões e acotovelando-se; algumas senhoras portuguesas, cabeça embiocada num xaile de algodão colorido e seguidas de um moleque que transporta a sombrinha aberta, vêm diversificar esta multidão.
Os serralheiros batem o ferro, enquanto o fogo é atiçado pelo fole cilíndrico, cujo êmbolo se move horizontalmente; ao lado faz-se bicha à volta do barbeiro que rejuvenesce todo o que lhe passa pelas mãos: nada mais curioso de ver que um chinês a quem se acaba de rapar a cabeça, se entrançou o rabicho cuidadosamente e se limpou tudo o que ele próprio negligencia; ainda todo húmido da completa ablução a que foi submetido, põe-se ao sol e estende-se aos seus raios ardentes com uma volúpia que nós não saberíamos compreender, nós europeus a quem tais delícias trariam uma terrível constipação ou mesmo uma congestão cerebral; mas têm o crânio para o sol que têm. Será mais espesso do que o nosso, ou o hábito ter-lhe-á tirado a susceptibilidade? Não saberei dizê-lo; mas decerto que a Providência nunca se descuida.
Ao lado, o sapateiro deixa o sapato que faz, para atender a um trabalho mais premente: calçado levemente avariado que pede reparação imediata; mas é à volta dos vendedores de comestíveis e sobretudo dos de comidas que há o maior movimento. É aqui que se deve estudar a fisionomia chinesa, observando os compradores e os vendedores, a vigiarem com atenção a balança romana que serve para pesar os artigos, uns para terem melhor peso, os outros para tentarem dar o menos possível, e todos discutindo os preços com vivacidade. Um pouco mais longe, uma figurinha bem alimentada, sentada à vontade, saboreia o cheiro das especialidades que o cozinheiro acaba de pôr na sua frente em pratinhos pequenos, enquanto o seu vizinho pobre calcula, antes de pedir o jantar, se lhe restará dinheiro para o dia seguinte; num canto, um outro homem disputa, e muitas vezes em vão, algumas folhas, alguns pedaços desdenhados, aos enormes porcos que formigam por toda a parte. Assim, sempre o antagonismo do pobre e do rico, e o triunfo das instituições que imprime em cada um o respeito da propriedade.(...)
Excertos dos diários de Auguste Borget, pinto francês que viveu em Macau em meados do século 19.