“É pela festa do anno novo china que a cidade mostra bem como é uma terra feita para o prazer e como se poderia tornar n´uma estancia onde o oriente rico viria embriagar-se em todas as loucas phantasias, deixando-nos o seu ouro e levantando d´ali o goso mais extranho.
N´esses oito dias e oito noites da festa, sobretudo nas noites, Macau tem a nota phantastica exagerada; é como um enorme pandemonio illuminado das luzes mais vivas, saindo dos balões mais garridas desde a Praia Grande aos bairros aos bairros exoticos em que perpassam leves os rinkchows e as cadeirinhas puxadas pelos coolies de trajos onde predomina o azul e o roxo correndo ligeiros por entre uma multidão excitada.
Em todas as portas os balões com as suas aves extranhas, as suas serpentes sagradas, os seus dragões terriveis coam claridades que são deslumbramentos; nas ruas, n´um rumor de milhares de sapatinhos leves, passa a turba com o seu cheiro especial, o cheiro do amarello em que ha alguma cousa d´acre e d'almiscarado, os panchões estrallejam às portas n´uma atoarda infernal e lá de cima dos bairros sujos, veem claros de fogueiras onde rimas de papel vão ardendo em saudações ao anno que chega e no qual o chinêz vê a felicidade.
Toda a gente, desde a mizeravel tanqareira, sem outro lar que o seu barco, até ao grave mandarim, enverga um trajo novo e em todas as algibeiras tilitam as moedas que se vão trocar pelos prazeres faceis para quem disponha tanto d´uma ruma d´ouro como d´uma enfiada de sapecas.
Uns vão comprar o amor das pequeninas chinezas de doze a treze annos, nas casas de diversão, onde ellas com as suas vestes de côres discretas, n´uma doçura de sêdas, tocam e dançam aquella meigas melopeas orientaes, as tranças presas no alto, os braços mimosos sahindo das largas mangas, os labios pintados abertos em risos, as sobrancelhas arqueadas que mais lhes obliquam os olhos negros e vivazes, mal sustidas sobre os ésitos minusculos que lhes põem no andar o balanceo rythmico de bailadeiras. Outros, os mais pobres, enchem-se n´essas noites de manjares raros e queridos, os cãesinhos de língua preta em guisados, as cascas de melancia em calda, as sopas preciosas de barbatanas de tubarão e o arroz tradicional dos antepassados. E a cada canto, em cada rua, à beira de cada volta, no angulo de cada esquina lá estão os vendilhões com as suas taboletas, onde ha dizeres em caracteres pintados a vermelho e a negro, saudando, com essa hypocrisia oriental, o comprador das fructas e dos doces, dos guisados extranhos e os jogadores pobres dos mil fantans que n´esse dia pejam a cidade, onde o jogo é um provento enorme e onde toda a gente joga, até mesmo o europeu, apesar da prohibição de o fazer. E assim, no estalar forte dos panchões n´aquelle rumor da multidão, se recordam as festas em que já teem passado milhares de chinezes com os seus palanquins nos hombros, onde levam com os leitões gordos, as gallinhas cozinhadas, os doces raros, as serpentes de papelão e os dragões feios, que ondulam assim conduzidos como coisas sagradas, em visões fabulosas, por muitas dezenas de homens que se divertem, entre bandeiras enormes e bastas, onde ha dizeres e que esvoaçam na doçura da aragem.
Teem vindo de longe as lorchas e os juncos, despejando gente que chega attrahida pela ancia do goso; os ricos mandarins com a sua tunica bordada, com o seu peitilho onde rabeiam os dragões nacionaes, com os seus casabeques azues abotoados ao lado, as suas fachas franjadas e os seus chapeus onde os botões de côres marcam os seus graus; teem vindo tambem os mercadores e os servos; as suas cargas oscillando suspensas de flexiveis hastes de bambu. À medida que a noite decorre, tudo aquillo se vae animando mais a mais, e quem sahir da cidade christã para as barreiras longinquas achará o mesmo rumor de festa nas casas fétidas onde os cães, os porcos, as gallinhas e os chinos vivem na promiscuidsade vil, mas a cujas portas as fogueiras ardem e os panchões estalam, onde as creanças rolam soltando gritinhos de goso, já enlambuzadas, mettidas na lama pegajosa d´esse solo onde ha de todos os restos. Cá em baixo, nas águas, os barcos com os seus arcos de balões exoticos estão também em festa e as tanqareiras, em volta do seu guisado, cantam docemente alguma canção guttural e vaga, mais recitada do que cantado, em que ha piratas valorosos que levaram para longe alguma donzella linda."
Excerto de artigo publicado na “Ilustração Portugueza” em 1908 (imagem não incluída)
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