Tanto quanto se julga saber, a primeira vez que Macau surge mencionado na cartografia europeia é num mapa da Ásia Oriental (de Ceilão ao Japão) feito, ao que tudo indica pelo cartógrafo luso-indiano, Fernão Vaz Dourado (1520-1580) ca. 1570/76 utilizando mesmo o topónimo "Macao" numa obra conhecida por "Atlas Universal" escrita em latim.
Estamos perante um dos mais belos mapas da cartografia renascentista europeia, feito por um português com técnicas de pintura miniaturista renascentista sobre pergaminho.
O Atlas apresenta uma estrutura narrativa associada à intenção de delinear, ordenar e explicar o mundo, tornando-o inteligível através de uma linguagem gráfica e visual codificada e fixada.
Na folha de rosto ou frontispício vê-se como era costume pintada a imagem do
Salvador coberto de sangue e coroado de espinhos, e ao lado estão desenhadas as
armas da antiga família dos Costas: debaixo destas armas que parece deviam
designar a casa do primeiro proprietário da obra lê-se "Mapamundo que fez
Fernão Vaz Dourado fronteiro nestas partes: que trata de todos os reinos,
terras, ilhas que há na redondeza, da terra com suas derrotas e alturas. Per
esquadria. Em Goa 1571."
Este título juntamente com a imagem de Cristo e as
armas de Costas estão envolvidos dentro de um outro título em latim, escrito em
forma de um paralelogramo, e diz "Universalis et integra totius orbis.
Hidrographia ad verissimam Lusitanorum. Traditione. descriptio. Ferdinandu Vaz
Dourado Cosmograpo (sic) Autore, in civitate Goae. Anno 1571."
Contém as seguintes cartas geográficas:
- f. 1 e 2: Alemanha, França, Bretanha até Inglaterra;
- f. 3: a costa de África e da Guiné até São Tomé;
- f. 4: do Cabo da Boa Esperança até Equinocial de leste a oeste;
- f. 5: as ilhas a Sul de equinocial ;
- f. 6: costa da Índia até ao porto de Bengala;
- f. 7: do Cabo Comorim, Japão, Moluco e Norte - é aqui que se pode ver o "Reino da China", "Cantam" e "Macao";
- f. 8: Pegú e toda a costa descoberta por Fernão de Magalhães até à costa de Java;
- f. 9: a costa descoberta por Fernão de Magalhães;
- f. 10: a costa dos Bacalhaus e a terra dos Cortes Reais;
- f. 11: as Antilhas de Castela com a ponta da Flórida e a Nova Espanha com a costa das Amazonas;
- f. 12: toda a costa do Brasil;
- f. 13: o Estreito de Magalhães;
- f. 14: a costa do Perú;
- f. 15: a costa do México.
- f. 16: Regimento da declinação solar, e tabela de marés
- f. 17 e 18: Tábuas da declinação solar para quatro anos
Fernão (ou Fernando) Vaz Dourado nasceu em Goa (Índia) em 1520. Pouco se conhece da sua vida sendo cartógrafo, navegador e iluminador. Sabe-se que participou na defesa de Diu em 1546 e que a sua obra como cartógrafo inscreve-se na chamada terceira fase da antiga cartografia náutica portuguesa, caracterizada pelo abandono da influência de Ptolomeu na representação do Oriente e por uma melhor precisão na representação das terras e continentes.
Os trabalhos da sua autoria apresentam extraordinária qualidade e beleza rotulando-o como um dos melhores cartógrafos de seu tempo. Muitas de suas cartas manuscritas são de relativa grande escala e estão inseridas em atlas náuticos. São conhecidos seis atlas, do período de 1568 a 1580:
1568 - 20 folhas manuscritas iluminadas em pergaminho, dedicadas a D. Luís de Ataíde (Biblioteca Nacional, Madrid);1570 - 20 folhas manuscritas iluminadas em pergaminho (The Huntington Library, San Marino, USA);1571 - 20 folhas manuscritas iluminadas em pergaminho, das quais duas foram furtadas no século XIX (Torre do Tombo, Lisboa)
c. 1576 - 20 folhas manuscritas iluminadas em pergaminho (Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa)1575 - 21 folhas manuscritas iluminadas em pergaminho (British Museum, Londres)1580 - 20 folhas manuscritas iluminadas em pergaminho (Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa).
Análise da "carta" onde surge "Macao" com o título (escrito ao longo das quatro face do rebordo"NESTA. FOLHA. ESTA. LAMCADO. DO CABO. DE COMORIM. ATE. IAPAM. E ATE MALVCO COM TODA. A TERA. AO NORTE."
O espaço representado na carta, “apoiado” sobre o Equador, vai desde o Ceilão ao Japão e às Molucas. Vê-se com detalhe as zonas costeiras da Malásia, Conchinchina, Bornéu e China, os arquipélagos e as numerosas ilhas do Índico oriental e dos Mares da China Meridional e da China Oriental, bem como a entrada parao Oceano Pacífico.
A localização de pontos (portos e ilhas) que unidos dão a configuração dos litorais faz-se com base nos itinerários náuticos. Destaque para os portos mais activos comercialmente, como eram os casos entre Cantão e Xangai. O entreposto português de Macau, estabelecido na década de 1550, que assegurava a ligação entre as grandes rotas marítimas e Cantão, pelo Rio das Pérolas, surge aqui pela primeira vez representado na cartografia europeia.
Na carta surge ainda referência ao registo da viagem de um europeu num barco chinês, pelo mar da China Meridional: “Costa de llucois e llaus pela quall pasou. P.º ffidalguo vindo de borneo em hü Jumquo de chis corendo cö temporall ao lomgo dela ffoi tomar llamao.”
A referência remete para Pero Fidalgo, em 1545, e está também no Atlas atribuído a Sebastião Lopes, de c. 1565, da Newberry Library de Chicago e será depois difundida no mapa da China, de Luís Jorge de Barbuda, de c.1575, incluído na obra Theatrum Orbis Terrarum de Abraham Ortelius, desde 1584.
Num olhar mais atento podem ver-se quatro bandeiras portuguesas sobre as áreas que representam Ceilão, Malaca, Japão e Molucas. A referência muçulmana é feita com recurso a um grande brasão com crescentes na zona do Golfo de Bengala. A Ásia oriental, onde se inclui China, Tailândia e Conchinchina inclui os nomes nomes dos principais reinos e é ilustrada por oito pagodes de grandes dimensões, numa alusão implícita ao budismo, mas que não é referido no Atlas.
À época, esta carta tornou-se a mais relevante do Atlas de Vaz Dourado, sobretudo por ter muitas das novidades geográficas do Extremo Oriente para os europeus. Sem esquecer, claro, o argumento da riqueza iconográfica, em especial as cores utilizadas.
A mesma carta pode ser vista no "Atlas com cartas portulanas do novo e velho mundo", também de Vaz Dourado, feito em 1580. (imagem abaixo)
O produto final tem algumas semelhanças com o que foi publicado no Livro de Marinharia de João de Lisboa, de c.1560, no Atlas de Bartolome Olives, de 1562, e do Atlas de Lázaro Luís, de 1563, só para mencionar alguns.
Este
atlas faz parte do espólio da Torre do Tombo (Lisboa). Terá sido encomendado por um fidalgo de nome Costa, razão por que nele
figura o brasão de armas dos Costas, talvez por D. Francisco da Costa
(1532-1591), que foi capitão de Malaca em 1564, e capitão geral e governador do
Algarve até 1579. A proximidade de D. Francisco da Costa com o então vice-rei da
Índia D. Afonso de Noronha, a quem Fernão Vaz Dourado dedicou um outro atlas (de
1568), leva a crer que possa ter sido feita a encomenda deste atlas por parte do
fidalgo D. Francisco da Costa.
O historiador Armando Cortesão - um dos que defende que foi Vaz Dourado o autor - apresenta a hipótese de
que o atlas tenha passado para a posse de D. Teotónio de Bragança (1530-1602),
por doação do próprio D. Francisco da Costa, ou que o tenha adquirido após a sua
morte.
Este atlas deve ter entrado na biblioteca da Cartuxa de Évora,
pouco depois da data do falecimento de D. Teotónio de Bragança, em
1602. Desconhece-se a data de entrada do atlas na Torre do Tombo,
certamente depois de 1834, após a extinção das ordens religiosas.
Existe ainda uma outra versão (com 17 mapas), de 1576, no espólio da Biblioteca Nacional de Portugal. Outros trabalhos de Vaz Dourado estão espalhados por arquivos do Reino Unido, Espanha e Alemanha.
Sugestão de leitura:
Cortesão, A.; Mota, Teixeira da.
Portugallae Monumenta Cartographica. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987.
Nota: recentemente o Atlas foi clonado - em pergaminho com textura igual à original - numa edição limitada em homenagem à época em que a cartografia portuguesa era a melhor do mundo. A ideia partiu do espanhol Manuel Moleiro em 2016, fundador da editora M. Moleiro. Foi ele o responsável pela reprodução das 18 folhas do Atlas de Fernão Vaz Dourado, numa edição única (em 2014... 443 anos depois de ter sido feito o original) de 987 exemplares certificados. Nela são respeitadas desde as técnicas de pintura miniaturista renascentista que eram apanágio de Vaz Dourado até às marcas do tempo deixadas no pergaminho. Custam cerca de 2 mil euros.