terça-feira, 18 de janeiro de 2022

A 'fundação' de Macau: fontes chinesas

Monografia de Macau, de Ying Guangren e Zhang Rulin, os primeiros magistrados da Casa Branca:
"No 32° ano (1553) do Reinado de Jiajing (1522-1566), barcos bárbaros que aportaram a Macau pediram alguma terra emprestada a pretexto de terem os seus navios danificados pela tempestade, para secar mercadorias tributárias molhadas, o que foi autorizado pelo Haidao, Wang Bai. De início, fizeram apenas umas cabanas de palha, mas passados alguns tempos, construíram casas à medida que os comerciantes que procuravam lucros fáceis transportavam para lá tijolos, telhas vidradas, vigas, ripas e outros materiais de construção, de modo que os folangji conseguiram, dum modo fraudulento, fixar-se em Macau. Com as casas altas que se apinham umas atrás das outras, esta terra, com o correr do tempo, acabou por ficar ocupada por eles. A presença bárbara (dos Portugueses) data do tempo de Wang Bai."
Wang Linheng, comissário imperial que esteve em Cantão por volta de 1601. 
"Os portugueses que vieram à China costumavam ficar em Xiangshan'ao (Macau) para comércio, partiam depois de terem feito o negócio. Com o passar do tempo, as leis tornaram-se menos rigorosas e os portugueses começaram a residir em Macau. Os responsáveis (chineses) facilitavam o seu comércio sem cumprir com rigor as leis, deixavam-nos fazer o que entendessem. Certamente, se se emitisse uma ordem para não exportar para lá cereais e alimentos, os portugueses, cercados, não poderiam permanecer muito tempo em Macau. No entanto, os seus negócios são extremamente lucrativos, pelo que se torna difícil de os proibir apesar da severidade das leis. Agora, consta que existe já em Macau uma dezena de milhares de famílias, com centena de milhares residentes. Isto constitui uma chaga no Sul da China, sem saber quais serão suas consequências quando rebentar".

Ye Quan, letrado chinês que esteve em Macau em 1565, escreveu assim nas Crónicas de Viagem de Lingnan:
"Tendo em consideração que o orçamento militar de Guangdong depende dos (direitos pagos pelos) navios bárbaros, não se vê qualquer inconveniência se os bárbaros, sem outras ambições, apenas pretendessem fazer rentabilizar seus produtos com a abertura da feira marítima e através do comércio entre chineses e eles. No entanto, o que se verifica hoje em Macau é a reunião de milhares de bárbaros, que fazem os chineses tornarem-se em criados e que casam com mulheres chinesas tomando-as e os seus filhos como escravos. Os oficiais militares imperiais acreditados em Macau e os funcionários alfandegários chineses não tinham capacidade suficiente para os controlar senão tentar apenas tranquilizar, com promessas vagas, o ânimo dos bárbaros para não se revoltarem. Os bárbaros que frequentavam as feiras marítimas, anteriormente realizadas a bordo dos navios, findas as transacções, iam-se embora e se tomavam no ano seguinte. Mas agora, em vez de se irem embora ao terminar as feiras, deixam os seus navios e instalam-se em terra em casas construídas. Os bárbaros que são, por temperamento, astutos, com a orientação de rebeldes ou fugitivos aqui refugiados, adquirem profundos conhecimentos sobre as vantagens e desvantagens da China bem como as facilidades de navegação até à Cidade de Cantão pela via fluvial. Esta situação como é que poderia continuar a existir! As autoridades não deveriam procurar alguma solução para esta situação?
No motim do distrito de Dongguan, na última Primavera, os rebeldes conseguiram chegar, a bordo de lorchas e ao som dos tambores, à capital da Província, obrigando ao encerramento das portas da cidade em pleno dia. Os rebeldes ousaram fazer festas no Templo da Concubina Celestial. O comandante Tang Kekuan teve vários combates com eles, mas todos foram sucessivamente mal sucedidos. Mandou então um mensageiro aos bárbaros de Haojingao (Macau) aliciando os bárbaros de Macau a dar o seu apoio para derrotar os rebeldes com a promessa de isenção da medição no caso de vitória, o que não era nenhuma ideia do Governador Provincial. Ao obter a vitória sobre os rebeldes, o comandante Tang considerou-a como uma vitória de seu próprio mérito e o Haidao, desconhecendo também o conteúdo do prometido, não os isentou do pagamento da medição. Os bárbaros, inconformados com a situação, recusavam-se a pagar os direitos das suas mercadorias, o que fez com que as autoridades provinciais procurassem meios para colocá-los em apuros. Foi decretada a proibição de exportação de viveres para Macau. Esfomeados, os bárbaros acabaram por pagar os direitos em causa, mas lamentavam a falta de dignidade e de palavra por parte dos chineses, desconhecendo que tudo tivesse sido obra do comandante Tang. As autoridades de instância superior, por sua vez, achavam que os bárbaros eram muito difíceis de controlar, também por ignorar a promessa feita pelo comandante Tang no sentido de isentar os bárbaros da medição se viessem a conquistar a vitória sobre os rebeldes. Ora, os conflitos nascem sempre assim, ou seja, pela falta de comunicação entre as partes."


Carta sobre a ocupação de Macau pelos portugueses, dirigida à Corte imperial da China em 1565 por Wu Guifang.
"Tal como muitos outros funcionários, estou também convicto de que (a contradição entre nomes apresentados) resulta ou de más línguas dos marginais, ou do receio dos bárbaros no sentido de poderem perder as oportunidades de negócio caso confessem a sua verdadeira identidade. A longa distância entre os países e a existência de informações contraditórias dificultaram o apuramento da verdade. O facto de que, mesmo entre os bárbaros, a comunicação é feita através de tradução, agravou também a nossa investigação. Pu-Li-Du-Jia, como nome de um país, não se encontra em nenhuma fonte histórica, sendo certo que se trata de um país que nunca possuiu o estatuto tributário desta Dinastia. Duvido que os que desta vez vieram pedir o estatuto tributário sejam os bárbaros do reino Folangji, tal como aqueles que, nos anos anteriores, disfarçados em gentes de Malaca, cá vieram para materializar o comércio clandestino. A intenção deles não é outra senão pretender a isenção de impostos. Tendo em atenção as dúvidas suscitadas, é-nos difícil fazer uma política adequada, pelo que solicitamos um despacho de S. Majestade." (...)
Sendo uma situação excepcional a vinda dos bárbaros para solicitar a apresentação de tributos, e se da parte dos bárbaros se vê uma verdadeira vontade de vassalagem e da nossa parte não se vêem perigos latentes, é de todo possível acolher calorosamente a sua gente e aceitar os seus produtos oferecidos. No entanto, a partir do levantamento da proibição da vinda das embarcações estrangeiras, autorizado em 1529 pelo Grande Coordenador e Comandante das Forças Armadas de Guangdong, Lin Fu, e do estabelecimento do sistema fiscal, os países estrangeiros constantes das 'Sagras Instruções do Imperador-Fundador' e das ‘Instituições', ou seja, os antigos reinos vassalos mandaram numerosas embarcações cujas velas se vêem em todos os lados do porto de Cantão. Entre as embarcações chegadas misturavam-se, às escondidas, barcos de alguns países proibidos de fazer negócio com o nosso Império, como o reino de Folangji. Nos últimos anos, pessoas estrangeiras de muitos países apoderaram-se de Haojingao, construindo ilegalmente casas de palha, quartéis e templos estrangeiros, vindo e partindo com grande liberdade, até tendo filhos e netos. Recordamos que, no início da abertura do comércio, era muito pouco o número de embarcações estrangeiras, e os bárbaros não se atreviam senão a seguir as legislações - novas legislações na altura - impostas, pelo que trouxeram grandes lucros para a China. À medida que o tempo passava e que se habituavam com o ambiente, começaram a contestar os impostos e a situação começou a deteriorar-se, com lucros cada vez mais escassos para o nosso Império. Estes bárbaros estranhos à nossa etnia, cujo número ultrapassa os dez mil, já ocupam Macau há mais de 20 anos. Os mais conscientes preocupam-se com esta situação opinando que estes bárbaros, embora vinculados actualmente pelas relações comerciais, serão um perigo imediato e latente para a cidade de Cantão."
Wu Guifang, Informação sobre a Não-Aceitação da Prestação de Tributo pelos Portugueses em Macau, in Colecção de Clássicos de Administração Pública na Dinastia Ming, Re-edição fac-similada, Taipei, 1964, Vol. 21

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