"Os rituais de veneração dos antepassados em datas bem determinadas pelo Calendário luni-solar, para além do culto doméstico indispensável em todas as festividades processam-se na 3. ª e na 4. ª Luas. São conhecidas, respectivamente, por Cheng Meng, ou Pura Claridade, no dia 4 ou 5 da 3. ª Lua, e Aprovisionamento do Princípio Masculino no dia 9 da 9. ª Lua. A primeira destas datas é, sem dúvida, a mais importante. (...)
O Cheng Meng (淸明), ou Festividade da Pura Claridade, em tradução literal, é um dia que a tradição consagrou à veneração dos Antepassados e, daí, à visita obrigatória aos cemitérios, com todo um cortejo de cerimónias, que vêm dos antigos tempos. Cada estação do ano comporta seis períodos distintos. O Cheng Meng recai, precisamente, no 5. º período da Primavera, recaindo no dia 4 ou 5 de Abril do Calendário Gregoriano (dia 4 ou 5 da 3. ª Lua do Calendário lunisolar).
Antes da dinastia T'ang (618 - 907 d. C. ), os chineses visitavam os sepulcros dos seus antepassados, frequentemente nas colinas, para lhes oferecerem incenso, dinheiro, vestuário e papel, além de alimentos cozinhados, no dia conhecido por Dia da Comida Fria, isto é, cerca de 48 horas antes do actual Cheng Meng e 105 dias depois do solstício de Inverno do ano anterior. Durante este dia, só se podiam ingerir alimentos frios, pois era defeso acender-se o lume.
Este costume vinha da alta Antiguidade e parece relacionar-se com a velha Cosmogonia, segundo a qual, nos fins da Primavera, surgiam no Céu duas estrelas correspondentes aos princípios elementares madeira e fogo. Temendo-se que o princípio fogo dessa estrela se tomasse mais "forte" e queimasse toda a madeira, provocando o desequilíbrio cósmico, adoptou-se a prática de não se acender fogo na terra. O primeiro fogo era aceso, ritualmente, no dia de Cheng Meng. Daí o nome de Pura Claridade dado a este dia.
Nalguns pontos da China, foi uso, durante muito tempo, lançarem-se durante o Cheng Meng, cascas de ovos cozidos sobre as campas, comendo-se, então, os ovos, com igual sentido de renovação. Estes ovos eram, dantes, decorados com pinturas feitas com sucos vegetais de Rubia e Garanza que ficavam manchadas nas claras, endurecidas por anterior cozedura.
Daí o aparecimento, nos mercados, de cascas de ovos pintadas, que passaram a constituir, já na China Maoísta, elementos de artesanato, de baixo preço, para os turistas. O ovo significa simbolicamente que o velho abriu o caminho ao novo, isto é a ideia de renovação.
Em 1935, era ainda muito popular na China a visita aos cemitérios, costume ao qual o Governo republicano deu o nome de varrer os túmulos, para o paralelizar com o Dia de Finados do Ocidente, embora este viesse já da dinastia T'ang.
Na dinastia T'ang, no dia de Cheng Meng ou dia do reacender do fogo, os imperadores ofereciam tochas de ulmeiro, ou de salgueiro, aos seus funcionários favoritos, para acenderem, de novo, o fogo nas suas casas.
Na dinastia Sung, estas tochas vegetais foram substituídas por tochas de sebo. Nesta data, com a qual, no Sul da China, se relacionam várias lendas, todos, desde o Imperador aos mais modestos camponeses, apostavam nas lutas de galos. Era um dia de liberdade relativa também para as mulheres, que podiam sair da sua reclusão para venerarem os seus antepassados.
Entre estas práticas, podem estabelecer-se várias relações importantes: por um lado, o ritual do fogo e o vestígio do seu culto, ao aproximar-se o solstício de Verão; o culto da terra na altura da maturação das sementes; e por outro, o culto das localidades e das suas divindades tutelares, bem como dos antepassados mortos e inumados na terra, práticas, aliás, comuns a todos os teísmos agrários.
Curioso é de notar, também, a relação do galo e dos seus combatentes, com a chegada do Verão e com o simbolismo que o galo teve no Ocidente, na Roma antiga e nos cultos paleo-cristãos relacionados com a ressurreição e com a derrota da Morte.
O Cheng Meng anuncia igualmente o início do Verão, o que vem em apoio da nossa hipótese de que ele seja o vestígio de rituais muito antigos, relacionados com o culto do fogo e com a celebração do solstício de Verão, tal como o é entre nós o costume lúdico de saltar fogueiras pelos Santos Populares. Um vestígio também do culto do Sol que amadurece as colheitas e do culto da terra onde a semente, que mantém a vida, germina. O Sol, fonte de vida, aparece-nos, assim, relacionado com o culto dos mortos, tal como nos cultos paleo-cristãos do Ocidente, subjacente à ideia de imortalidade, de contínuo renovar da luz e das trevas.
A segunda das festividades em que se veneram os antepassados é, como se disse, conhecida por Aprovisionamento do Princípio Positivo ou Masculino, o qual, dentro do conceito de Dualidade Cósmica, corresponde também ao Sol, e parece ser o que resta de um velho culto relacionado com o final do ano agrícola e com o anúncio do Inverno, tal como o Cheng Meng parece corresponder ao anúncio de Verão.
Nesta data, era costume lançarem-se no ar papagaios de seda e de papel, à maneira de bodes expiatórios. Admite-se que o principal objectivo desta festividade fosse reter, pela via dos rituais, a energia solar declinante, para se poder atravessar a estação morta e renovar-se a Natureza, na Primavera seguinte, altura marcada pela festividade do Ano Novo lunisolar.
Estas duas festividades em que se cultivam os Antepassados corresponde, pois, como se pode facilmente deduzir, à alternância anual e cíclica da vida e da morte da Natureza.
Estas práticas antigas foram caindo gradualmente em desuso, logrando, no entanto, maior sobrevivência nas províncias do Sul (Cantão e Fuquien), depois da implantação da República. É em Macau e noutros territórios fora da China, onde as comunidades chinesas mantêm mais fortes os seus elos de etnicidade, que as práticas dos velhos rituais continuaram a observar-se, pelo menos, até aos anos 79/80.
A veneração dos Antepassados deve ser feita pelos filhos ou netos varões, o que está de acordo com o carácter patriarcal da sociedade chinesa. Os varões seguem a linhagem familiar e a eles cabe a responsabilidade de perdurar o clã.
Quando estas cerimónias se não realizam, (tanto aquelas a que deve proceder-se durante os funerais, como as que são dedicadas, durante o ano, aos antepassados de cada família), os espíritos que vivem no Além, uma vez abandonados pelos seus familiares, perdem a paz. Deixam de ter vestuário, dinheiro e alimentos, que ninguém lhes oferece transformados no fumo dos papéis votivos incinerados, que acompanha o incenso queimado até ao seu destino, e tomam-se mendigos.
Estes são os kwai, tão temidos em Macau, os espíritos errantes ou fantasmas vingativos, que regressam ao mundo dos vivos, sedentos de vingança pelos seus sofrimentos.
É por isso que a maioria dos espíritos erradios é de mulheres solteiras, ou casadas em momento de parto. Uma mulher que morra solteira, não pode ser incluída na tabuleta da sua própria família, ao passo que a mulher casada pode ser venerada pelos filhos das concubinas do seu marido, ou pelos sobrinhos deste (filhos do irmão), que também podem prestar-lhe culto no Além. Em casos extremos (favoráveis principalmente às mulheres), para que possam ser veneradas pela família dos maridos, uma vez que são excluídas das suas próprias, devido ao carácter patriarcal e patrilocal próprio da família chinesa, recorre-se a casamentos póstumos. Pode, assim, casar-se uma rapariga falecida, registada na respectiva sua tabuleta, com um homem vivo ou com um homem falecido, também solteiro.
Se há quem atribua a estas práticas um carácter supersticioso, a verdade é que elas são o testemunho iniludível da crença na Imortalidade e na vida no Além. (...)
in Rituais da Morte e da Vida na Antiga China, de Ana Maria Amaro.
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