domingo, 19 de maio de 2019

A "parte velha da cidade" por Luís Gonzaga Gomes


Poucas são as pessoas que se dispõem a cirandar pela parte velha desta cidade, visto que nenhum interesse desperta no seu espírito indiferente as evocações daquelas transitadas épocas, em que o piso irregular das congostas e travessas era animado pela cadenciada marcha dos liteireiros, conduzindo em vistosas librés formosas damas toucadas de finíssimas saraças e empertigadamente recostadas em vistosos almadraques, finamente bordados com doirados canutilhos e espelhentas lantejoulas, dos seus luxuosos palanquins; quando as janelas das suas espaçosas habitações solarengas se escancaravam para nelas se assomarem os rostos assustadiços de sedutoras donzelas atraídas por algum desabrido estrupido de bem quarteado e fogoso corcel, galopado por donairoso cavaleiro; ou, quando, por estreitas vielas desfilavam os espalhafatosos cortejos de arrogantes mandarins. 
Passada a febril época de intensa actividade comercial e esgotadas as grandes fortunas de fácil aquisição, caíram as ruas desta cidade, num curto período de marasmo, para tornarem a animar-se sob o rodar de magnificentes carruagens dos seus abastados moradores, outra vez enriquecidos, no efémero período da fictícia prosperidade advinda. do tráfico de emigrantes.Vergastada, depois, novamente pela adversidade, e desta vez quão duramente, assistiu a cidade o desmoronar das suas falsas grandezas; e, então, as suas apalaçadas residências foram, uma a uma, caindo nas mãos de credores chineses, para que o produto de irremíveis hipotecas que as oneravam, pudessem continuar a manter o luxuoso viver dos seus arruinados proprietários, que não estavam acostumados a viver com parcimónia.
Entretanto, há cinco ou seis décadas se tanto, principou o camartelo do modernismo a derrubar e a destruir, já em nome da salubridade pública, já invocando regras de estética urbanística, grande parte da cidade medieval.
As enviesadas ruas da parte nobre da antiga cidade, por onde os caleches dificilmente transitavam sem que os tapadoiros das suas rodas esboroassem as paredes das casas, viram então, as grandes lastras de granito do seu pavimento, substituídas por um revestimento de alvo cimento; as betesgas, os pátios e os becos da parte pobre, um verdadeiro ludreiro em dias chuvosos, foram calcetados à portuguesa. E, por toda a cidade, os velhos solares e outras casas de habitação, foram cedendo lugar a novos edifícios, alguns com fachadas interessantes, mas todos desprovidos de conforto.
Nos amplos salões de algumas das velhas mansões que ainda se encontram de pé e onde outrora os seus sobrados rangeram com o peso de elegantes e formosos pares que se entretinham em animados cotilhões, turbulentas quadrilhas ou em mesurados minuetes, que constituíram as principais diversões dos serenins da. alta sociedade local, em diferentes épocas, vivem hoje, em sistema quase falansteriano, grupos de vinte ou trinta familias chinesas. As suas janelas tão rasgadas, mas tão adequadas a este clima, parecem que riem sardonicamente da imbecilidade de quantos passam actualmente por baixo delas, completamente indiferentes à sua passada opulência.
Mas, apesar da sanha destruidora, há no entanto, ainda alguns bairros na velha Macau, onde se pode disfrutar um pitoresco ciclorânico e que, por isso, vale a pena serem visitados, principalmente aqueles onde a vida gorgulha febril, mas miserável e funambulescamente, com trágicos recantos de fome e onde aparecem faces exageradamente acararnadas e lábios vivamente tingidos de vermelho, pois são neles que podem ser observados certos costumes, tradições e superstições do povo chinês, que ainda não perderam o intrigante atractivo do seu exotismo oriental.
Muito desses sítios, porém, já não são conhecidos pelos seus nomes primitivos, pois, desusaram-se com a transformação da sua fisionomia original, outros, não obstante as alterações impostas, por não se sabe quão voluntariosos edis, capricham em reter, pelo menos, em chinês, as designações por que primitivamente foram baptizados pelo vulgo.
Assim, há um trecho da cidade gue ainda é conhecido pelos chineses com o nome de Tcheok-Tchâi-Un, em local hoje dos mais populosos e sobrecarregado de casas encostadas umas às outras e separadas por uma apertada. rede de ruas. Entre nós, é este sitio conhecido por Horta da Mitra e abrangia todo o terreno que ia desde a antiga rua de Pák-T’âu-Sán-Kâi (Rua Nova dos Cabeças-Brancas, isto é, dos Parses), actualmente denominada de Rua Nova-à-Guia, até ao Ho-Lán-Un, (Jardim dos Holandeses), ou seja o bairro Uó-LÔng, sendo limitado ao norte pela Calçada do Gaio, na altura. por onde passava a muralha que noutros tempos cercava a antiga cidade. Todo este terreno foi outrora ocupado por uma extensa e densa mata e, como há trezentos anos, a cidade era ainda pouco povoada, no intuito de se fomentar o seu desenvolvimento populacional, foi permitido a um grupo de imigrantes chineses de apelidos Mâk, Tch’iu e Léong estabelecerem-se ali. Este minúsculo núcleo inicial conseguiu transformar, com o tempo, o local, numa aldeiazinha e os seus componentes viviam da venda da lenha que podavam na mata e cujas altas e frondosas árvores que a cercavam estavam sempre cobertas de pássaros que alegravam o basquete com a sua chilreada, dando ao sitio um aspecto de parque. Foi por este motivo que os chineses deram ao local o nome de Tchèok-Tchâi-Un que quere dizer “Jardim de Passarinhos”.
Outro local, cujo nome em chinês ainda perdura, é a área de Sá-Kóng, vacábulo este que significa “boião de areia” e assim fora chamado porque a sua configuração aparentava um enorme boião e porque toda aquela depressão formada na falda. do Kâm-Kôk-Sán, ou “Monte do Vale de Oiro”, no cume do qual se encontra hoje o forte de Móng-Há, era toda coberta. de areia. Era aqui que se enterravam os cultivadores indigentes da.s antigas aldeiolas de Móng-Há e de Lóng-T’in, quando vinham a falecer.
Quanto a ruas, dentre muitas, citamos a da I-On-Kái e a de Tái-Pôu-Lám cujas primitivas denominações, em chinês, ainda não deixaram de ser usadas.
A I-On-Kái deve o seu nome ao facto de ter sido fundado nesta rua o primeiro clube chinês denominado I-On-Kông-Si (Sociedade de Amizade e Bem-estar), tendo sido seus fundadores os mais ricos negociantes desta terra, dentre os quais figuravam os dos apelidos Lôu, Uóng e Hó. Era frequentado por chineses de alta categoria, tanto de Macau como das cidades convizinhas, que ali se reuniam para se divertirem em ceiatas ou ao jogo, bem como para tratarem dos seus negócios, que discutiam deitados nas duras camas de pau-preto, enquanto fumavam o seu ópio servidos pelas mais esbeltas p’ éi-pá-tchâi do bairro. Apesar do nome desta rua ter sido alterado para Fôk-Lông-Sân-Hóng (Travessa das Felicidades), os chineses continuam a designá-la pelo seu primitivo nome de I-On-Kái.
Quanto ao de Tái-Pôu-Lám, que é o troço da Rua de S. Domingos, que vai desde o ponto em que começa a Rua da Palha até ao Cinema Capitol, foi outrora uma via de prédios baixos. Por isso, era todo o dia batida por uma chapada de sol vivo que arrancava chispas de fogo do seu piso escaldante, sufocando, queimando e cegando com a sua reverberação quem por lá passasse. Para evitar que as plantas dos seus pés fossem mordidas pela causticante brasa daquele abominável pavimento, os chineses de pés descalços, viam-se obrigados a atravessá-lo de corrida. Dai o nome de Tái-Pôu-Lám como quem diz, “a largos passos” .
Vem a propósito dizer-se que a Rua de S. Domingos se chama em chinês, Pán-Tchéong-T’óng-Kái, isto é, a Rua do Templo de Tábuas; sendo a origem desta denominação causada pelo facto de o primitivo templo ter sido construído em madeira. Esta igreja é, porém, também conhecida entre os chineses, pelo nome de Mui-Kuâi-T’óng, o Templo das Rosas.
Luís Gonzaga Gomes em Curiosidades de Macau Antiga, 1952

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