quinta-feira, 14 de março de 2019

Thomas e William Daniell, as feitorias de Cantão e... Macau

Thomas Daniell (1749-1840) era já um conceituado pintor quando, juntamente com o seu sobrinho e aprendiz do ofício William Daniell (1769-1837), conseguiram autorização para se instalarem na Índia como pintores/ilustradores por parte da Companhia das Índias Orientais Partiram de Inglaterra a 7 de Abril de 1875 a bordo do Atlas - uma das primeiras paragens foi a Madeira - rumo à China tendo chegado a Whampoa no final de Agosto desse ano e vivido vários meses entre Cantão e Macau, produzindo inúmeros desenhos.
Thomas e William Daniell considerados os grandes pintores da Índia do séc. 18
De Macau partiram para Calcutá na Índia onde chegaram em 1786 e viveram cerca de uma década. No regresso a Inglaterra em 1794 - tendo passado novamente por Macau e Cantão - transformaram os esboços em pinturas a cores que depois foram usadas em vários livros, incluindo o "Oriental Scenery" publicado em 6 volumes entre 1795 e 1808 (com mais de uma centena de ilustrações) sendo um enorme sucesso em termos de vendas e no "A Picturesque Voyage to India by the Way of China" publicado em 1810 e onde surge a Gruta de Camões.
Sobre o primeiro livro numa notícia de jornal de 1795 pode ler-se: "Views in the East Indies. Proposals for publishing twenty-four views in Hindostan, consisting of some of the most interesting specimens of Oriental scenery; in which are represented many beautiful, as well as magnificent, examples of the architecture of that extraordinary country, with such other incidental accompaniments as have a reference to the manners and customs of its inhabitants"

Sampanas junto a Macau por William Daniell que tinha na altura apenas 15 anos mas durante toda a viagem escreveu um diário que se veio a revelar muito útil no regresso a Inglaterra.
Ilustração "Camoens Cave" é uma das 50 (22 são sobre a China) incluídas no livro "A Picturesque Voyage to India by the Way of China" de Thomas Daniell e William Daniell, publicado em 1810. Crítica ao livro publicada no "The Monthly Review or Literary Journal" de 1872:
"To European eyes Oriental Scenery has a very marked and peculiar character arising not only from the plants which constitute the foliage of the landscape but from the style of architecture which pervades the buildings. That the public are much indebted to the pencil of the Messrs Daniells for numerous beautiful views of interesting objects in this quarter of the globe all persons who have frequented the Exhibitions at Somerset House must be ready gratefully to bear witness and since fine paintings are beyond the reach of the great majority of amateurs of the arts we are happy to inform them that these gentlemen have executed designs on a scale of expence which is adapted to the pockets of those who cannot purchase large pictures.
Even a long series of richly tinted etchings however cannot be bought for a trifle though the sum required for them bears a very small proportion to that which must be paid for similar representations on a grand scale in oil In taking this opportunity of announcing A Picturesque Voyage ta India by the Messrs Daniells we would offer them our best thanks for the high gratification which their productions have often afforded us and though we may not be able to augment their fame we shall at least have the satisfaction of paying eome tribute to their pre eminent genius and exertions by which the romantic scenery and stupendous antiquities of India have been brought home to our contemplation.
 A small portion indeed of their labours is now before us but the style of execution is extremely creditable to their taste and is a fair specimen of the whole The volume which exhibits fifty coloured etchings of views taken during a voyage to India and China i introduced by a short preface and contains also brief explanations subjoined to the plates From the former we extract some remarks which will elucidate the objects of the work and shew that the Messrs Daniells are not less sensible as authors than ingenious as artists."


Excertos do diário de William a propósito das embarcações chinesas que pintou:
Chinese are equally ignorant of geography and they have no methods for discovering the latitude and longitude different placer and always if possible keep close to die. The vessels exhibited in the plate are evidently ill adapted to a voyage nor is the three masted junk presented in a preceding of a structure to contend with the tremendous gales so experienced in the Chinese seas.
The hull of these junks is curved form the fore part instead of being round as is usual European vessels is square and flat like the stern and both are tar above the deck it is without a keel and the diameter the mainmast is sometimes equal to that of an English man of war sixty guns. The sails are wrought from the fibres of the and are often furled and unfurled like a fan the rudder is placed an opening of the etern and is usually taken up in sands and It frequently happens that one of these junks is the common of a hundred merchants whose goods are lodged in separate. A ship of the largest size carries one thousand tons and hundred men each of whom has his humble birth containing a and a pillow. The compass is placed before an altar on burns a taper composed of wax tallow and sandal wood dust divided into twelve equal divisions which are intended to out the progress of the hours. Numbers of these vessels sail season from Canton on commercial expeditions and it is that ten thousand seamen perish annually in the Chinese seas one embarks on this perilous enterprize without taking a farewell of his family and friends and should it be his fate to his restoration is joyfully celebrated as a resurrection from It would perhaps be impossible to discover a man who like bad had made a seventh voyage in one or two passages to via the adventurer makes his fortune the only object stimulating to draw him from his native home.

Desenho das feitorias de Cantão em 1785 por William Daniell

Para um melhor enquadramento sobre o papel de Macau no acesso a Cantão no século 18, publico parte de um artigo da autoria de Luís Gonzaga Gomes sobre a "Momentânea paralisação do comércio em Cantão".
(...) Ocupava Iông-Tcheng, o terceiro imperador da última dinastia, a tártara ou manchu, o trono do grande Império chinês, ou, mais precisamente, corria o ano de 1745, quando o porto de Cantão foi destinado ao comércio estrangeiro. Separada da French Island (Ilha Francesa) por estreito braço do Rio Pérola, surgia a ilhota, pelos estrangeiros conhecida por Dane's Island (Ilha Dinamarquesa), sendo assim denominadas por os traficantes dessas duas nacionalidades terem desfrutado, primitivamente, o privilégio de se estabeleceram nas suas margens e utilizarem os seus armazéns, e onde os mareantes podiam refazer as suas energias grandemente depauperadas por longas e tormentosas viagens. (...) Pouco mais adiante, apertada entre a ilha de Ho-Nam e a ilha de Junco ficava a ilha de Uóng Pou (Whampoa), donde se elevava, esguio e hirto, um alto pagode de vários andares. Esta ilhazinha era povoada por uma população duns milhares habitantes, que se entregavam a labores que se relacionavam, directa ou indirectamente, com a navegação estrangeira, pois era ao largo dela que ficava situado o ancoradouro de todos os barcos estrangeiros que entravam em Cantão, significando as palavras Uóng Pou "Fundeadouro Amarelo".
Este bocado do rio de Pérola, mais conhecido por rio de Cantão, oferecia, por essa altura dos princípios do século XIX, a mais surpreendente imagem dum próspero porto chinês, pois coalhavam-no barcos nativos de mais diversos feitios, incluindo os enormes juncos de cabotagem de todo o extenso litoral chinês os quais se aventuravam também até aos portos da Celebes, Bornéu, Java, Singapura e Manila, juncos esses que há muito desapareceram para darem lugar às lorchas ou a outros barcos de maior leveza e rapidez".
Ao longo da fronteira ilha de Ho Nam, ancoravam intermináveis filas de juncos pertencentes aos monopolistas do sal, que traziam não só este precioso e indispensável condimento de T'in-Pák como carga variada de diversas partes da costa sudoeste de Macau, e a meio do rio deslocava-se incessantemente uma fantástica multidão de barcos de carga e de passageiros vindas do interior, de residências flutuantes, barcos de diversões denominados "barcos-flores", sampanas, barbearias, quitandas e cozinhas flutuantes, vendendo a mais prodigiosa variedade de objectos, de peças de vestimenta, de comes e bebes, de medicamentos, enfim, uma estonteante e infinita variedade de artigos de consumo, tudo isso misturado com um ensurdecedor barulho de gente a gritar, de cães a ladrar, de galinhas a cacarejar e do mortificante estralejar de estalos, traduzindo esta caótica balbúrdia uma vida de intensa animação e exótico colorido. (...)
De Whampoa a Cantão ia-se de barco a remos, levando a curta travessia nada mais nada menos que duas horas, pois grande perícia era exigida para se enfiar por entre aquela desordenada multidão de barco. (...)
Era mesmo na marginal de Cantão entre o subúrbio ocidental e o rio, que estavam situadas as célebres "feitorias" estrangeiras
(ilustração acima), as quais ocupavam um terreno de 1000 pés de leste a oeste, 300 pés distantes da água do rio, oitenta milhas distantes de Macau, 60 da ilha de Lintin, 40 dos Fortes de Bogue (vocábulo derivado da palavra portuguesa "boca") e 10 do fundeadouro de Whampoa.
Essas feitorias, treze ao todo, motivo por que eram conhecidas em chinês por "Sâp-Sám Hóng" (Treze Feitorias), nem todas eram estrangeiras e distinguiam-se umas das outras por sonoros nomes. Assim, a dinamarquesa chamava-se Uóng-K'ei (Bandeira Amarela); a espanhola Lui Sông (Luzon); a francesa Kou-Kong (Público Elevado); a do negociante chinês Chungqua, Mán Un (Dez Mil Fontes); a americana Kuóng-Un (Dilatadas Nascentes); a imperial Má-Ieng (Águias Gémeas); a Pou Sôn (Preciosidade e Prosperidade); a sueca Sôi (primeira sílaba de Sôi-Tin, que significa Suécia em chinês); a antiga inglesa Lông-Sôn (Gloriosa Prosperidade); a Chow Chow que significa mista; a Fông T'ai (Enorme Abundância); a nova inglesa Pou-Uó (Harmonia Protegida); a holandesa Tcháp-I (Rectidão Concentrada); e a designada por ingleses por Creek, I-Uó (Justiça e Paz)".
Cada feitoria era constituída por filas de edifícios de três andares no estilo colonial europeu. A dinamarquesa dispunha de sete filas, a holandesa de oito e a americana era a que possuía menos. A palavra fila é expressa em chinês pelo som "hóng" daí o referirem-se os ingleses às feitorias pela designação "Foreign Hongs". A existência duma nova e duma velha feitoria inglesa deve-se ao facto de se terem feito novas construções após o grande incêndio de 1822, que destruiu parte da velha feitoria inglesa e 12 000 prédios, lojas e templos chineses do subúrbio ocidental". (...)
Os estrangeiros eram, na generalidade, designados pelos chineses por "Hong-mou-kuâi", diabos de cabelos vermelhos, sendo tal designação sido primeiramente aplicada aos holandeses, ou "fán-kuâi" (diabos estrangeiros); os parses, por trazerem o cabelo à escovinha, chamavam-nos "pák-t'au kuâi" (diabos de cabeça branca); aos moiros mó-ló kuâi (diabos mó-ló, corrupção da palavra portuguesa "mouro"); aos portugueses "sai-ieóng kuâi" (diabos do oceano ocidental, pois que assim eram conhecidos desde o século XVI) e aos macaenses "ou-mun kuâi" (diabos de Macau). (...)"

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