terça-feira, 19 de setembro de 2023

"Infindáveis sete anos tatuados a fogo"

“Neste documento procurarei mostrar o que foram estes longos, atribulados, infindáveis sete anos, tatuados a fogo por três períodos bem distintos (...). Chegavam (refugiados) aos milhares, famélicos, mal trajados, cheios de terror e contavam histórias pavorosas de saques, assaltos, assassinatos em plena rua, violações de mulheres.
Uma vaga de tristeza e de desânimo pairava sobre os mais fortes espíritos e oprimia de terror os timoratos e as mulheres. O dia de amanhã aparecia como uma incógnita, um grande ponto de interrogação que se erguia para todos fazendo entrever o pavor dum campo de concentração. Muitos perderam por completo o senso moral. Pessoas até ali absolutamente honestas envolviam-se em negócios escuros, deixavam-se subornar ou jogavam nas casas de tavolagem os fundos que lhes eram confiados. Lavrava uma confiança surda que não poupava ninguém. A chatinagem dos cambistas e a impotência do governo para reprimir e dominar a situação animavam os mal intencionados e dissolviam a moral social. Era preciso aproveitar a vida, vivê-la de qualquer forma, custasse o que custasse.
As ruas estavam infestadas de mendigos cadavéricos e sôfregos que assaltavam as senhoras arrancando-lhes as carteiras e os embrulhos. Rara era a manhã em que nas arcadas do banco, ao lado do gabinete da gerência, não se viam cadáveres repugnantes de vermina e de podridão. Morriam estoicamente ao lado das tendinhas com comida, sem um gesto de revolta, sem uma reacção.
O cemitério da cidade já não chegava para tantos mortos. Diariamente, em batelões, eram enviados para a ilha da Taipa, empilhados uns em cima dos outros. Foi um pavor, um espectáculo macabro a que nos habituámos pela sua frequência. Houve casos de antropofagia. E não foram poucos. Durante muito tempo os portugueses abstinham-se de comprar carne, pois se deram vários casos de venda de carne humana nas quitandas chinesas que pululavam por todas as ruas e vendiam tijelas de caldo, pedacinhos de carne, bolos de arroz, etc. No refúgio dos mendigos, pela manhã, encontravam-se cadáveres de crianças esquartejadas a que faltavam pedaços. Enfim. Um horror! Mas era preciso reagir, era preciso viver e trabalhar. E reagimos e trabalhámos e vencemos. 
Assim decorreu a vida até terminar a guerra, entre actos de terrorismo, assassinatos quasi semanais, em plena rua, absolutamente impunes e, nos últimos tempos, para cúmulo dos males, a cidade foi bombardeada por três vezes. O nosso sofrimento, a nossa guerra, foi uma inquietação, constante, a miséria na classe média, o depauperamento físico e moral que, a continuar por mais tempo nos transformaria em espectros ambulantes. Estes quatro anos valeram bem por dez. Creia v. Exa. Que não há sombra de exagero nesta descripção (…)”
Excerto da introdução do “Relatório da gerência do BNU de Macau 1938-1945”, da autoria de Carlos de Vasconcelos, reproduzido no livro "Macau 1937-1945: os anos da guerra", de João F. O. Botas, edição IIM, 2012. (ver sinopse abaixo)

Sinopse do livro "Macau 1937-1945: os anos da guerra"
Ponto minúsculo de exclamação ocidental no Extremo Oriente Macau foi desde a chegada dos portugueses um milagre de sobrevivência. Nos “anos da guerra” o milagre voltou a acontecer. 
No Natal de 1941 quando a 2ª Grande Guerra ganhou dimensão mundial e se estendeu à região da Ásia-Pacífico já a então colónia portuguesa – a primeira e a última possessão europeia na Ásia – vivia a braços com a guerra sino-japonesa iniciada anos antes e consumada face aos aliados com a invasão de Hong Kong. “Maus dias se vislumbravam para Macau, dias de luto e miséria, dias de amargura e cativeiro....”
O território escapou às agruras dos combates mas não aos efeitos nefastos do conflito graças a uma neutralidade “colaborante” (im)possível e esteve muitas vezes na eminência de ser invadida pelas tropas nipónicas que do outro lado da Porta do Cerco combatiam os chineses. No entanto, a invasão surgiria de onde menos se esperava com o ataque de aviões norte-americanos no início de 1945. De Lisboa vão instruções para não hostilizar as forças beligerantes, assegurar a neutralidade e... sobreviver. 
Encurralada e isolada do mundo durante quase 10 anos, Macau viveu um dos períodos mais conturbados da sua história e então, como nos primórdios da sua fundação no século XVI, tornou-se porto de abrigo para milhares de refugiados que ali encontraram “um fugaz mas sublime parêntesis de paz num mundo em guerra”.
A população de pouco mais de 200 mil almas passou, de repente, para mais de meio milhão. Quase triplicou. Num ínfimo espaço habitado por um mosaico de povos os contrários foram sendo conciliados numa diplomacia quotidiana marcada pela fome e pela morte mas também pela solidariedade e esperança de melhores dias. Diversos relatos falam de pessoas que entre as fezes procuravam os alimentos que não tivessem sido digeridos para lhes saciar a fome. Na luta pela sobrevivência nem todos foram bem sucedidos mas o ‘milagre’ de Macau salvou a vida a milhares de pessoas e encerra em si o ‘segredo’ de uma história secular onde a cidade foi não só “um oásis de paz” mas também um “teatro de guerra”.
“Ao anoitecer eram colocados cavalos de frisa e arame farpado em todas as artérias que davam acesso aos quartéis e esquadras policiais. As ruas eram vigiadas por sentinelas que no silêncio da noite gritavam de 15 em 15 minutos: Sentinela alerta! Resposta: Alerta está!”
Nesta viagem de regresso ao passado e à história recente de Macau faz-se um relato factual dos principais acontecimentos, ocorridos dia-a-dia, hora a hora, entre 1937 e 1946 e revelam-se dezenas de testemunhos, alguns deles inéditos. Relatos de fome, crueldade, doença, violência e morte mas também de solidariedade e esperança vividos durante “os anos da guerra”.


Conjunto de fotografias de Macau na década de 1940

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