sexta-feira, 14 de março de 2025

Livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente

"Livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente" é o título de um livro editado pela primeira vez em 1812 por Mendo Trigoso (1773-1821), "em conformidade com um manuscrito por ele encontrado e com a tradução italiana do historiador João Baptista Ramuzio (1485-1557)". Seria reeditado em 1946 - imagem acima - com introdução e notas de Augusto Reis Machado pela Agência Geral das Colónias. 

Biografia resumida:
Duarte Barbosa nasceu em Lisboa ca. 1480 e morreu em Cebu em 1521. Foi um viajante e navegador português tendo servido como oficial do Estado Português da Índia entre 1500 e 1516-17.
Duarte Barbosa era filho de Diogo Barbosa, um servidor de D.Álvaro de Bragança que partiu para a Índia em 1501 na armada conjunta com Bartolomeu Marchionni sob o comando de João da Nova. Em 1500 o seu tio Gonçalo Gil Barbosa, após viajar na frota de 1500 de Pedro Álvares Cabral, foi deixado como feitor em Cochim e, em 1502, foi transferido para Cananor. Os locais descritos por Duarte Barbosa sugerem que terá acompanhado o tio nesta viagem até Cochim e Canano, tendo então aprendido a língua local (malabar). Em 1503 foi intérprete de Francisco de Albuquerque nos contactos com o rajá de Cananor. Em 1513 assinou como escrivão de Cananor uma carta para Manuel I de Portugal onde reclamava para si o cargo de escrivão-mor que lhe fora prometido. Em 1514 Afonso de Albuquerque recorreu aos seus serviços como intérprete na tentativa de conversão do rei de Cochim ao Cristianismo, conforme relatou em carta que enviou ao rei. Em 1515 Albuquerque enviou Duarte Barbosa a Calecute para vigiar a construção de duas naus que serviriam numa expedição ao Mar Vermelho, e na qual poderá ter participado já sob o novo governador. Duarte Barbosa regressou a Portugal onde terá terminado os manuscritos, conhecidos como o "Livro de Duarte Barbosa", entre 1517-18. Inicialmente conhecido através do testemunho do italiano Ramusio, o manuscrito original foi descoberto e publicado no início século XIX, em Lisboa.

"Tendo eu, Duarte Barbosa, natural da muito nobre cidade de Lisboa, navegado grande parte da minha mocidade pelas Índias descobertas em nome de el-rei nosso senhor e, tendo visto e ouvido várias coisas que julguei maravilhosas e estupendas, por nunca terem sido vistas e ouvidas por nossos maiores, resolvi-me a escrevê-las para benefício de todos."

Da obra destaco o capítulo "O Grande Reino Da China" (pp. 217-219) em que se pode estabelecer um certo paralelismo com a Suma Oriental de Tomé Pires em termos do primeiro 'olhar' sobre o Oriente no início do século 16. 
Duarte Barbosa, conhecido como o "Notociarista das Índias" diz que "não tenho informação, mas perguntei a mouros e gentios, homens de crédito" pelo que conclui: "É uma grandíssima terra e senhoria pela terra firma, e de longo da costa do mar, povoada também por gentios. (...) Os moradores deste reino são grandes mercadores. São homens brancos e bem despostos. Suas mulheres são de mui formosos corpos. Teem os olhos mui pequenos e nas barbas tres ou quatro cabelos e não mais, e os que mais pequenos teem os hão por mais gentis-homens." (...) Não tocam com a mão o que comem. chegam muito o prato à boca, e com umas tenazes de prata ou pau metem o comer na boca muito miude porque comem muito depressa. (...) fazem muita soma de porcelanas (...) navegam em juncos (...) aqui se cria mui boa seda(...) também levam anfião a que nós chamamos ópio (...) estes chins que vivem de trato e navegação, trazem de contínuo suas mulheres e filhos dentro das naus, onde vivem sempre e não têm casas. Confina este Reino da China com Tartária da banda do norte". 
O Grande Reino da China
Deixando estas ilhas, que sao sem conto, a que nao se sabem os nomes, assim habitadas como desertas, torno-me á costa que de Malaca vai contra os chins, de que nao tenho informagáo, mas perguntei a mouros e gentíos, homens de crédito, e me disseram que eram quatro ilhas habitadas; e, por eles, soube somente que passando o reino de Anseáo, e outros muitos, está o reino da China, que dizem que é urna grandíssima térra e senhorio pela térra firme, e de longo da costa do mar, povoada também de gentíos.
O rei déla é gentío, honra muíto os ídolos, está sempre no sertáo, tem mui grandes e boas cidades, nenhum estrangeiro pode entrar pelo sertáo, sómente nos portos de mar negoceiam; seu maior trato é ñas ilhas.
Se algum embaixador doutro reino vem a ele por mar, primeiro que a ele vá, lhe fazem a saber como lhe trazem certas embaixadas e presentes, entáo o manda ir onde ele está.
Os moradores deste reino sao grandes mercadores, sao homens brancos e bem dispostos. Suas mulheres sao de mui formosos corpos, ele e elas tém os olhos pequeños, ñas bar¬ bas tres ou quatro cábelos nao mais, por gentileza, e, quanto mais pequeños tém os olhos, tanto os háo por mais gentis homens.
Andam as mulheres mui ataviadas de panos de algodáo, seda e la.
Os trajos da gente desta térra sao como os de alemáes.
Comem em mesas altas como nos, com suas toalhas mui alvas, para quantos háo-de comer a urna mesa, póem urna faca, bacio, guardanapo e um pouco de prata ; nao tocam com a máo o que comem, chegam muito o prato á boca, e, com urnas tenazes de prata ou pau metem o comer na boca mui a miude, porque comem muito depressa, e fazem muitos man¬ jares de carnes, pescadas e outras muitas cousas. Comem mui bom pao de trigo, bebem muitas maneiras de vinhos; e, muitas vezes, a cada comer, comem carne de caes, e hao-na por mui boa carne.
Sao homens de muita verdade, porém nao sao bons cavaleiros, mas grandes mercadores, tratantes em toda a mercadoria.
Fazem aqui muita soma de porcelanas, que é boa mercadoria para todas as partes, que se fazem de búzios, de cascas de ovos e claras, e outros materiais, de que se faz urna massa que langam debaixo da térra por espago de tempo, que entre si tém por grandes fazendas e tesouro; porque quanto mais se achega o tempo para as lavrar, vale muito mais; o qual chegado, lavram-nas de muitas maneiras e feigoes, délas grossas, outras finas, e, depois de feitas as vidram e pintam.
Aqui se cria mui boa seda, de que fazem muita quantidade de panos de damasco de cores setins e outros panosrasos e brocadilhos. Também há muito ruibarbo, almíscar, prata, aljófar e pérolas, porém nao sao perfeitos em iedondeza.
Neste reino se fazem muitos brincos formosos e doma¬ dos, como cofres mui ricos, pratos de pau, saleiros e outras subtis coisas, e há na térra para isso homens mui engenhosos.
Calgam botas como gente de térra fría. Navegam em juncos, trazem velas de esteiras como em Mogambique e os cabres e enxárcia de certa verga.
Sao deles grandes corsários, navegam para Malaca com toda a mercadoria da China, que ai vendem mui bem, e carregam de muito ferro, salitre, retrós de cores e outras miudezas, como os venezianos soiam trazer antes as nossas partes, e de pimenta de Samatra e do Malabar, que vale na China a quinze e dezasseis cruzados o quintal, e daí para cima, segundo onde a levam, e, em Malaca a compram a quatro cruzados pouco mais ou menos, Também levam anfiáo a que nós chamamos opio, incensó, coral, paño de Cambaia e Paleacate.
Estes chins que vivem de trato e navegagáo, trazem de continuo suas mulheres e filhos dentro ñas naus, onde vivem sempre, e nao tém casas. Confina este reino da China com Tartária da banda do Norte.

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