quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Toponímia: divergências e coincidências

Travessa do Pato
Se alguns dos nomes das ruas de Macau revelam pontos de vista diferentes, ou até divergentes entre as duas comunidades locais, alguns demonstram que tanto portugueses como chineses aceitam a realidade da sua cidade como uma só, dando nome aos lugares de comum acordo. Tal é o caso da Rua do Matapau (imagem do pagode abaixo) que em chinês é designada por “Kat Chai Kai”. Entre os dois vocábulos não existe qualquer diferença. 
Ambos designam as singelas tangerinas que nesse local eram vendidas, principalmente em época de Ano Novo lunar. 
Apesar do lirismo, porém, a Rua do Matapau situada em pleno coração do bazar do século XIX, deixou para nós uma aura de mistério. Era ali que não só os vendedores de flores e tangerinas faziam o seu negócio, como também as “tríades” levavam a cabo as suas reuniões secretas. Mas era ali também que o Governo exercia a justiça, consubstanciada nas chicotadas sobre os criminosos cujas gotas de sangue ressaltavam no largo lajeado onde desembocava a rua.
 
Mas, as divergências toponímicas entre portugueses e chineses constituem uma infinidade. Atente-se, por exemplo, no caso do Convento de S. Domingos, despojado das suas grandezas de antanho e actualmente reduzido apenas à igreja. O resto, do que era o original convento, são agora casas comerciais de grandes marcas internacionais. Na opinião dos chineses, tal marco cristão não passa de “Templo das Tábuas”, já que começou por ser mesmo um edifício construído em madeira, antes de constituir a obra de alvenaria cuja frontaria amarela e verde o artista irlandês George Chinnery pintou ao dobrar da primeira metade do século XIX. Quanto à espécie de praça que lhe é fronteira, batida pelo sol, ainda hoje continua a merecer o nome de “A largos passos” (Tai Pou Lam) já que os pés descalços dos “cules” de antigamente, puxando os varais dos “riquexós”, se viam obrigados a atravessá-la em passo de corrida para não queimarem os pés no chão empedrado e escaldante pelo Sol.
A Rua Nova à Guia mostra também a diferença de concepções entre portugueses e chineses. Para os portugueses, o nome da via aberta sob as faldas da montanha que abriga ainda hoje o primeiro farol da Ásia Oriental, a designação não podia ser outra. Guia era o nome dado aos faróis nos tempos das descobertas. Para os chineses, porém, a rua, que era habitada maioritariamente pelos “sik” (imagem abaixo), vindos da Índia para exercerem funções de guarda no Corpo de Polícia de Segurança Pública não podia ter outra designação senão, essa mesmo, ou seja rua dos “Turbantes Brancos”.
Guarda 'sick': década 1930. Foto National Geographic
Macau, apesar de fazer parte do continente chinês e de ter revertido a sua soberania para a China em 1999 foi ao longo de 400 anos uma colónia reflectindo por isso as concepções político-sociais portuguesas que naturalmente se perpetuaram na toponímia. Por isso, os nomes tradicionais dados pela comunidade chinesa a sítios e ruas, nunca, a não ser num ou noutro caso, conseguiram a homologação oficial da edilidade, desde sempre encarregada de dar nome aos lugares e ordem ao cadastro. Deste facto resultou que não se pode falar de toponímia macaense, mas sim de toponímias, sendo certo que apesar da homologação oficial portuguesa dos nomes ter correspondido sempre (ou quase), aos imperativos do Boletim Oficial a indiferença da comunidade chinesa continuou a chamar as ruas, praças largos e vielas pelas designações próprias cuidando pouco das determinações do BO. 
Em apenas alguns momentos, os chineses aceitaram baptismos alienígenas. Nomeadamente, por exemplo, na designação “Co Si Ta” (tradução do apelido Costa), a avenida dedicada ao Conselheiro Horta e Costa (na imagem), governador dos finais do século XIX e dos primeiros do século seguinte que foi o responsável pelo saneamento das zonas pantanosas, dos arrabaldes, construindo a nova cidade de traçado moderno e rectilíneo de acordo com as mais recentes teorias urbanísticas do século de Fontes Pereira de Melo. 
Para além desta, os chineses aceitaram e, é conveniente não sorrir, a designação dada à rua Pi Ri Lai que significa apenas a tradução literal para chinês de Pereira, apelido de Francisco Xavier Pereira, um goês formado em direito pela universidade de Coimbra que foi presidente do Leal Senado no princípio do século com apenas 24 anos de idade (facto inédito em Macau) falecendo em plena juventude em 1910. As razões para a adopção chinesa dos nomes políticos ou religiosos dados pelos portugueses parece advir e resumir-se de um modo geral ao facto de se tratar de novas vias construídas em novos aterros sobre o mar, ou através de antigos pântanos que não possuíam quaisquer denominações anteriores.
Artigo da autoria de João Guedes, jornalista e investigador, publicado no JTM de 31-05-2011

2 comentários:

  1. Sou um leitor muito interessado do blog Macau Antigo.Descobri por mero acaso ha algum tempo atrás e desde esse dia tenho passado horas a "explorar"esse belissimo território atraves destas paginas.Faço o meu comentário neste artigo porque a foto é fantastica e para mim muito curiosa,gostaria de saber mais sobre esse Corpo de Policia de Segurança Publica composto por indianos de Goa.Seria possivel fazer um post dedicado a esse tema?Existiram mais fotos desse Corpo de Policia?

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  2. Olá. Grato pelo seu comentário. Tentarei muito em breve dar resposta ao seu pedido. Até lá, sugiro que consulte os posts sobre o tema, nomeadamente recorrendo ao tag "polícia" e ainda pesquisando sobre "quartel dos mouros". Cumps.

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