quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Pharmacia Popular e família Nolasco

In 1895, a Portuguese man opened Macao’s first Western pharmacy, housing it in a two-storey European building in the centre of the city. More than a century later, the shop is still serving customers and is part of one of the city’s biggest providers of medical services. The Farmacia Popular (FP) stands in a 400-year-old building close to the water fountain and the Central Post Office in the historic centre of Macao, part of the World Heritage Site declared by UNESCO in 2005. This location and the service it has given over the last 116 years have earned it a place in the hearts of Macao people. It has ten branches across the city, in a market that has exploded over the last five years. (...)
The first shop was opened in 1895 by Henrique Nolasco da Silva, the son of Pedro and a member of one of the most prominent families in Macao. Born in 1842, Pedro married an English woman in 1868 and went on to become president of Leal Senado (Municipal Council). He was a member of the Government Council, chairman of the Holy House of Macao, and founded the Commercial School. Henrique trained as a pharmacist in the Portuguese colony of Goa and returned to Macao to open the business. Initially, most customers were the expatriate community. The local population relied instead on Chinese doctors and Chinese medicine. Gradually, Western drugs were accepted by the Chinese population, and the market grew. FP was the first pharmacy in Macao to separate treatment from drugs. Patients consulted a doctor who prescribed medicine which they bought at the pharmacy; its staff sold them the medicine and explained how they should use it and the possible side effects. Photographs of this early period show the Western pharmacists in white coats and the Chinese staff in long dark gowns. The shop received certifications from the Portuguese government and the Chinese Chamber of Commerce. Henrique died in 1971.
Família Nolasco. 1925
For decades, it was a family business that changed little; its employees stayed there for their whole working life. In 1983, the Novel group of Hong Kong bought a 90-per-cent share of the business, leaving the remaining 10 per cent in the hands of the founding family. The family gave up the management of FP and later sold its stake. Novel brought in a more modern style of management and began to expand. FP opened a second store in 1990, with a Macanese pharmacist who had been trained in Portugal. The next ones opened in 1996 and 1997 and now total ten. It is also one of the biggest wholesalers of drugs in Macao, with the government one of its major clients. The pharmacy business in the city has exploded, with the rapid rise in population and flood of visitors from the mainland after the post-handover government opened the gaming sector to new licencees. (...) Ng said that the pharmaceutical market in Macao was very big and that there was a lack of trained talent, in this sector as in others. “We plan to open two more branches this year. We grow slowly and cautiously and not only for the money. We have a strong sense of responsibility to the customers. We are not the biggest firm but enjoy the greatest public confidence.” (...)
Ng said that the firm would keep the original building as a branch. “It is a World Heritage site, in a 400-year-old building. It has had three major renovations – in the 1980s and the 1990s. It has great historical meaning: a symbol of the East and the West.” The two-storey building is painted yellow, with window shutters on the second floor. It occupies a prime site close to the square with the water fountain in the heart of the city. It sells Chinese and Western medicines, medical instruments and health and skincare products. Opposite is one of its competitors – Watsons, a big chain based in Hong Kong.
In 1990, the group opened its first clinic offering both Western and Chinese medicine. Later it opened a second in Taipa. Each clinic has 10–20 doctors, including those from Hong Kong, the mainland and returnees from abroad, and offer a range of specialties. Most of the clients are corporations, who sign an agreement with the group to treat their employees. Henrique, the grandson of the founder, works in the Macao Monetary Authority. “When I walk past the pharmacy, I feel a great sense of pride, of my grandfather’s contribution to Macao,” he said.
Article (excerpts) by Mark O'Neil ("Flourishing pharmacy") - Macao Magazine 2011

A propósito deste tema há já algum tempo perguntei à Prof. Ana Maria Amaro do que se recordava de farmácias do tipo ocidental e chinesas - (cerca de 30) na década de 1960. Eis a resposta e o agradecimento.
"Havia uma firma denominada Lo Pan que importava e vendia medicamentos chineses e outros. Outra firma da família Rodrigues (família abastada de Macau que morava na Praia Grande) também era importadora de medicamentos. Além destas havia duas farmácias portuguesas de "filhos da terra" que também vendiam manipulados de uso antigo portugueses e chineses e, além destes, medicamentos importados. Eram estas a farmácia da Palmira na rua da Horta da Companhia (Nota minha: julgo que se denominava Universal) e a Farmácia Popular que pertencia à família Nolasco. Na Rua 5 de Outubro, onde ficava a firma Lo Pan, havia um edifício que tinha sido restaurante e também farmácia muito famosa com lindíssimas decorações. Ao que se dizia estava abandonada porque tinha ardido há alguns anos."

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

"Ui Di Sabroso" na TDM

A Teledifusão de Macau (TDM) começou este mês uma série de 12 episódios sobre a culinária macaense, numa iniciativa que visa divulgar o património imaterial da região na China e nos países lusófonos. A série, intitulada "Ui Di Sabroso", é exibida no canal em português da TDM e prolonga-se até 5 de maio, com um prato típico confeccionado semanalmente por um dos 12 "confrades e pessoas competentes na culinária macaense", segundo disse à agência Lusa o presidente da Confraria da Gastronomia Macaense, Luís Machado.
"Estes programas têm interesse sobretudo em termos de divulgação com base nos acordos que a TDM tem com os países de língua portuguesa e com a China", referiu. "Era importante que fossem traduzidos para chinês", acrescentou Luís Machado, ao lembrar que a gastronomia macaense foi declarada Património Imaterial de Macau pelo Governo da região em junho do ano passado, mas que para obter o estatuto junto da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) precisa primeiro do reconhecimento da China. O director de informação e programação do canal em português da TDM, João Francisco Pinto, disse ao jornal Tribuna de Macau que "este é um programa muito importante porque fixa a memória e é algo intrínseco à comunidade macaense".
O conhecido "Minchi" (prato típico com carne moída, batata frita em cubos, ovo estrelado e, frequentemente, arroz) foi a iguaria estrela do primeiro programa, pelas mãos de José Maria Silva. Nas semanas seguintes, será a vez de:
José Maria Silva - Minchi - 17/2
D. Ester Ritchie - Galinha tempo de caça - 24/2
Sandi Manhão - Capela - 3/3
Paula Basaloco - Porco Bafássa - 10/3
Carlos Cabral - Fula Papaia - 17/3
Herculano Dillon - Tacho - 24/3
Florita M. Alves - Casquinha - 31/3
Rita Cabral - Sambal Margoso - 7/4
Marina S. Fernandes - Galinha à Macau - 14/4
Deolinda Lourenço - Lacassá - 21/4
Ana Manhão - Tosta Camarão - 28/4
Armando Ritchie - Ade Cabidela - 5/5

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Sun Iat-Sen e o consultório médico de 1893

Em Maio de 1920 Sun Iat-sen e a mulher visitaram Macau. Esta fotografia, com a família Lou Kau, foi tirada na sua casa, hoje jardim Lou Lim Ioc. Em baixo a casa memorial de Sun Iat Sen em Macau na década de 1960-70.
A Santa Casa da Misericórdia de Macau (SCM) descobriu “num arquivo morto” documentos que comprovam que o chamado“pai da China”, o revolucionário Sun Yat Sen (1866-1925), abriu o seu primeiro consultório médico em Macau, no ano de 1893. O edifício ficava no Largo do Senado e pertencia à Santa Casa da Misericórdia. Tendo por base o documento agora encontrado, a SCM vai avançar com a edição de um livro (edição trilingue que deverá estar concluído ainda este ano. Em declarações à imprensa de Macau o provedor da SCM António José de Freitas disse ter sido “encontrado um livro onde consta o ordenamento dos prédios do ano de 1893, durante os três anos de ordenamento das casas que pertenciam à irmandade. Foi descoberto neste livro o ordenamento de um prédio com a assinatura do próprio punho do doutor Sun Yat Sen” e acrescentou que "tudo aponta que foi com base neste ordenamento que o doutor Sun Yat Sen instalou o primeiro consultório médico em Macau, em 1893. Funcionava num dos prédios mais próximos da Travessa do Roquete". 
(Pode ver mais imagens do largo do Senado na época neste post)
Neste momento já existe um grupo para trabalhar no projecto, coordenado pela jornalista Cecília Jorge. Ainda de acordo com o provedor “o prédio já não existe e foi demolido, e fazia parte dos prédios que hoje deveriam estar localizados nos canteiros defronte ao edifício dos correios”. Nessa altura, Sun Yat Sen era um jovem médico com 27 anos, saído de Hong Kong onde não se conseguiu estabelecer em termos profissionais. “Até então conjecturavam muitas coisas sobre o consultório médico do doutor Sun Yat Sen, e agora há provas concretas, muito fiáveis, que ele teve um dos primeiros consultórios médicos arrendados à irmandade”, explicou o provedor.
Do lado direito ficam os edifícios que foram destruídos para a construção do edifício dos Correios no final da década de 1920 e onde estava instalado o consultório de Sun Iat Sen.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

500.000 visitas / pageviews


Ao fim de quatros anos e dois meses de existência este projecto atingiu as 500 mil visitas/pageviews. Para assinalar o facto em breve será publicado um post que inclui fotos e um testemunho inédito de um norte-americano que visitou Macau em 1902.
O blog Macau Antigo é provavelmente o maior acervo documental online sobre a história de Macau, disponível de forma gratuita, 24 horas por dia, em qualquer parte do mundo.
JTM: 25.02.2013 - ler parte do artigo aqui
Até agora foram publicados perto de 2500 posts e cerca de 20 mil imagens. Algumas das funcionalidades do blog: tradutor, pesquisa, subscrição de novidades, inquérito de satisfação.
Acessível em múltiplas plataformas, incluindo o facebook, o blog tem mais de 500 seguidores registados.
Obrigado pela preferência!
João F. O. Botas

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Excerptos de Filosofia Taoista: Silva Mendes, 1930

Os "Excerptos de Filosofia Taoista" (1930) da autoria de Manuel da Silva Mendes surgiram recentemente em anexo no livro "Meditações Orientais" (2004), uma colectânea de textos de Confúcio e de Lao-Tzé, numa organização de Loureiro Neves. O livro de Silva Mendes é de Setembro de 1930 e a sua derradeira obra a ser publicada. Morre em Dezembro de 1931.
Chuang Tzu e a Borboleta
Uma noite em que estive meditando,
Horas longas nas coisas deste mundo,
pouco a pouco me veio um sono brando
E um sonho tão jucundo que ninguém já teve, assim:
Sonhei que era uma lépida e elegante borboleta voando,
de pouso em pouso, sobre o néctar dulcíssimo das flores.
Tempos e tempos, uma vida inteira, andei eu
Com outras companheiras, numa doideira,
Na estação quente dos amores.
Tudo me parecia tão real, tal qual estou dizendo,
E até me lembro, que, numa tarde muito fria, quando sol procurava,
Um vento tão gelado de repente me assaltou,
Tão mal, tão mal, fiquei, que logo ali, sobre um jasmim, morri!
Despertei: e acordado, ainda insecto morto me julguei!
que sonhos tem a gente - extravagantes!
Sonhos?! - que fosse sonho, então acreditei,
Mas após muito cogitar vejo só um caso emaranhado!
Justifico: é que a minha convicção
De existir como insecto foi tão firme antes,
Como agora é a de ser de humana geração!
E, portanto: fui antes um homem que sonhava ser uma borboleta,
ou sou agora uma borboleta que sonha que é um homem?
Erro do intelecto?
Não sei...

Versão Poética (adaptada) de Silva Mendes, Excertos de Filosofia Taoísta, Macau, Escola de Artes e Ofícios - Tipografia do Orfanato da Imaculada Conceição, 1930
O poema está ainda, p.e., em "Pensar Azul", Manual de Filosofia, 11º ano.
NR: Chuang Tzu - filósofo chinês da Escola Taoísta que morreu cerca de 275 a.C

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Edifício das Repartições: 1951

O edifício das Repartições é de 1951 (como atesta a numeração romana) tendo sido em inaugurado em 1952 quando da visita do então ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues. Mais tarde foi Tribunal e actualmente existe um projecto para ser transformado em biblioteca. 
A estátua de Jorge Álvares foi encomendada em 1952 (decisão tomada aquanda da vista já mencionada) e inaugurada em 1954. A1ª fotografia é do final da década de 1950 já que do lado direito não existem ainda nenhuns edifícios. Desse mesmo lado, surgiria em 1961 o Solmar.
clicar nas imagens para ver em tamanho maior
O edifício quando funcionava como tribunal do final da década de 1990

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Regulamento do Campo da Caixa Escolar: 1924

Regulamento do Campo de Educação Física da Caixa Escolar (ortografia da época):
O Governo tendo entregue à Caixa Escolar de Macau, pelo diploma legislativo n.º 51, de 13 de Outubro de 1923, para campo de educação física da mocidade escolar, o campo de desportes de Tap-Siac, entende ser seu dever regulamentar o seu uso. De facto, o Estado tendo nas suas funções, e, entre elas, como principal, por ser fundamento de uma verdadeira democracia, a educação do povo, não pode desinteressar-se da maneira como um dos mais importantes ramos da educação, o que trata da cultura física, é dirigido. O contrário seria entregar a mocidade aos erros do primeiro mau instrutor e aos excessos sempre prejudiciais do seu temperamento juvenil, por natureza desregrado, apaixonado e excessivo nos exercícios e desportes que pratica.
Contam já os registos do desporte numerosos casos de hipertrofia cardíaca, lesões graves e até prematuras mortes pela tuberculose entre os mais exaltados, e alguns dos melhores, jogadores e atletas. Deixar repetir aqui erros que a experiência apontou, seria criminoso. Por estas razões, o Governador da Província de Macau, ouvido o Conselho Executivo, há por conveniente aprovar e mandar pôr em execução o Regulamento do Campo de Educação Física da Caixa Escolar, que faz parte integrante desta portaria e baixa assinado pelo Secretario do Governo. Cumpra-se.
Palácio do Governo em Macau, 28 de Fevereiro de 1924. O Governador, R. J. Rodrigues

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Auto-retrato e trabalhos de Chinnery

Este auto-retrato de Chinnery faz parte do espólio de José Maria (Jack) Braga que está na posse da Biblioteca Nacional da Austrália. Os desenhos de Chinnery que ilustram este post foram feitos por volta de 1837.
George Chinnery (1774-1852) é considerado o mais influente pintor ocidental do século XIX no Oriente. Nasceu em Londres e ainda muito jovem revelou possuir talento artístico. O seu avô fora calígrafo. Em 1791 - tinha ele 17 anos - um retrato da sua autoria foi seleccionado para uma exposição na Real Academia de Belas-Artes de Londres. No ano seguinte entrou para a Academia. Depois mudou-se para a Irlanda e em 1802 viajou para a Índia onde se destacou como retratista e ganhou bastante dinheiro.
Foi a partir destas pinturas a óleo que Chinnery se tornou famoso naquela parte de mundo. Após ter vivido 23 anos na Índia partiu e rumou a Macau. Chegou em 1825 e li viveu os seus últimos 27 anos de vida. Durante este período, também viveu em Cantão e Hong Kong e também ali fez trabalhos.
Fascinado com a vida de Macau em meados do século XIX desenhou e pintou a paisagem e as suas gentes de uma forma ímpar e ainda hoje reconhecida.
Chinnery vivia sobretudo como retratista. Era essa a sua maior fonte de receitas. Numa altura em que a fotografia ainda não existiam os mais abastados faziam questão de ter um retrato seu ou da família. Chinnery tinha uma técnica e habilidade invulgares de observação. Diz-se que desenha as pessoas num determinado local e a paisagem envolvente era desenhada em casa através da memorização. Para além dos retratos fazia ainda trabalhos em aguarelas. Deixou ainda muitos esboços com cenas de rua, imagens do quotidiano. Alguns críticos até consideram estes os seus melhores trabalhos.
Graças a ele e ao trabalho que deixou pode hoje saber-se a configuração de certos edifícios que só aparecem descritos em textos. Ainda em vida a sua reputação foi enorme e granjeou inúmeros discípulos. Entre eles contam-se Watson, Marciano Batista e Lam Qua. Seguiram o mestre de tal modo que ainda hoje muitos quadros são atribuídos a Chinnery mas, na verdade, ninguém tem a certeza (ele não os assinava), e podem muito bem ser de um desses seus discípulos. É o caso da última imagem deste post.
Morreu a 30 de Maio de 1852, Chinnery na sua casa de Macau aos 78 anos. Foi sepultado no Cemitério Protestante de Macau, junto ao jardim Luís de Camões. O sua vida e obra foi desde logo homenageada com o nome “Rua George Chinnery” à rua onde o pintor teve a sua casa. Em chinês diz-se “rua Qiannianli”, o que significa literalmente “os proveitos que irão permanecer por mil anos”.
  Algumas das obras de George Chinnery podem ser vistas no Museu de Arte de Macau

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

VIII Fórum Internacional de Sinologia

De 21 a 23 de Fevereiro terá lugar em Leiria o VIII Fórum Internacional de Sinologia subordinado ao tema “China: Viajar no Tempo e no Espaço”. A iniciativa é do Instituto Português de Sinologia, Município de Leiria e Instituto Politécnico de Leiria.
O evento dirige-se não só ao público académico, como também aos entusiastas e curiosos da cultura chinesa. Tem entrada gratuita e está organizado em quatro grandes temas que abordam a “Poética”, a “Retórica”, a “Estética” e as “Grandes Viagens que fizeram História”. Paralelamente, em sessões alternativas, serão discutidos outros temas.
O VIII Fórum Internacional de Sinologia apresenta ainda exposições e sessões de cinema. No Museu da Imagem em Movimento, na Cerca do Castelo de Leiria, realiza-se um ciclo de cinema chinês com entrada gratuita. No mesmo local estará patente a mostra temporária de fotografia “Paralelo 30”, enquanto a Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira apresenta até ao final de Março a exposição “Viagem no tempo: a magia do pano batique na China”.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Governadores de Macau: livro


"Governadores de Macau" é uma obra de Paulo Jorge Sousa Pinto, António Martins do Vale, Teresa Lopes da Silva e Alfredo Gomes Dias, com coordenação de Jorge dos Santos Alves e António Vasconcelos de Saldanha, numa edição de 2013 da Livros do Oriente.
O título Governador de Macau, criado em 1623, era dado a um oficial do Império português para a protecção e gestão executiva do território colonial de Macau. Era nomeado pelo Chefe de Estado (rei ou Presidente da República) de Portugal. Ao longo da presença portuguesa existiram 110, a esmagadora maioria militares.
O posto foi substituído pelo cargo de Chefe do Executivo de Macau a 20 de Dezembro de 1999, após a transferência de soberania (e da administração) de Macau para a China. Antes da criação do título de Governador, Macau era administrado e governado directamente pelo Leal Senado, a primeira câmara municipal de Macau e o símbolo da autoridade local.
“Governadores de Macau” biografa todos os capitães-gerais, governadores, encarregados de governo, governadores interinos e, ainda, conselhos de Governo.
O livro começou a ser escrito em 1997 mas só ficou concluído no ano passado. Duas razões explicam este longo parto. Por um lado, explica o editor Rogério Beltrão Coelho, “atrasos de vária ordem, que se prenderam basicamente com a instabilidade editorial em Macau após a transferência, levaram a que só em 2013 – assinalando os 500 anos da chegada de Jorge Álvares à China – o livro Governadores de Macau saia do prelo, como é de tradição dizer-se”. Não por acaso, certamente, os dois momentos correspondem a duas fases do seu próprio financiamento: a primeira, relativa à investigação e à produção dos textos, contou com o apoio da Universidade de Macau, do Instituto Politécnico de Macau e da anterior Fundação Macau; já a segunda, relativa à produção editorial e gráfica de “Governadores de Macau” teve o patrocínio da Fundação Jorge Álvares, Fundação Casa de Macau e Banco Nacional Ultramarino (Macau) [o atraso teve uma outra consequência: os textos estão escritos no português anterior ao acordo ortográfico]. Mas Beltrão Coelho também reconhece que “foi de todo prudente deixar que o tempo oferecesse o distanciamento que o saber histórico aconselha”. Até porque se o trabalho de investigação e de redacção até ao penúltimo governador estava concluído no início de 2000, “impunha-se algum distanciamento temporal relativamente ao consulado do governador que protagonizou o processo de transição e a transferência da administração para a China. Todos os governadores (em sentido lacto) deixaram em Macau uma marca (nuns casos muito suave, noutros muito profunda) do seu empenhamento e capacidade.
Porém, a História determinou que fosse o último governador a concluir projectos e estruturas novos ou herdados dos seus antecessores. As condições financeiras permitiram, em menos de dez anos, atingir metas e concretizar objectivos de forma a transferir para a República Popular da China uma Macau rica em infra-estruturas e preparada para entrar no século XXI. Por estas razões, o texto sobre este último governo resultou mais extenso do que a maioria dos anteriores”.  O editor garante que “ao longo das cinco centenas de páginas desta obra, desfilam, ordenadas cronologicamente, as biografias de todos os capitães-gerais, governadores, encarregados de governo, governadores interinos e, ainda, conselhos de Governo, que assumiram nas suas mãos os destinos da administração portuguesa de Macau, desde o século XVII até ao final do século XX” , mas esclarece que “não é uma História de Macau, mas apresenta-se como um esforço de síntese de uma realidade histórica complexa como é a de Macau, onde se cruzam os tempos e os ritmos das mutações que foram ocorrendo na China, em Portugal e no seu Império, e mais globalmente na Ásia Oriental», prometendo uma «uma interpretação globalizante de uma realidade social que se foi formando e desenvolvendo na península de Macau, no sul da China”. D. Francisco Mascarenhas (1623-1626) é o primeiro dos 155 biografados (...)
Excerto de artigo (em itálico) da autoria de João Paulo Meneses publicado no jornal Ponto Final de 18.2.2013
Palácio do Governo no final do séc. XIX
Excerto de uma notícia da agência Lusa de 16.2.2013
O documento que é agora apresentado "não faz apenas a biografia dos governadores mas também procura integrar a figura e a acção governativa de cada um deles ao longo dos séculos em várias dimensões", explicou à Lusa Jorge dos Santos Alves um dos coordenadores do livro "Os Governadores de Macau". "Os historiadores consultaram centenas de livros e arquivos, varreram uma série de arquivos de vários países, consultaram centenas de artigos dedicados não apenas à figura dos detentores do cargo desde o século XVII até 1999 e esse detalhado trabalho de investigação resultou numa síntese de divulgação séria", acrescentou o coordenador. Este trabalho de investigação relaciona os vários governadores (num total de 254 mandatos) com o estado das relações luso-chinesas desde o século XVII até ao final do século XX. 
O trabalho aborda também a História da China, "que condiciona muito a actuação dos governadores e o governo do território", e incluiu igualmente a história geral da presença de Portugal na Ásia e da presença ultramarina até 1974, cruzando-a com outros poderes coloniais europeus no Extremo Oriente. Segundo o coordenador, o "problema de quem trabalhou os séculos XVII e XVIII na Ásia" deparou-se com falta de documentação sobre parte dos governadores destes dois primeiros séculos de presença de Portugal em Macau. "Não havia documentação sobre o cargo, em que condições foi exercido e nem mesmo aquela questão tão simples sobre a data de nomeação e o final do mandato", explicou Jorge dos Santos Alves. Os quatro investigadores que participaram neste trabalho: António Martins do Vale, Paulo Sousa Pint, Teresa Lopes da Silva e Alfredo Gomes Dias consultaram oito arquivos de três países: Portugal, Espanha e Índia (principalmente o arquivo de Goa) numa ação coordenada por Jorge dos Santos Alves e António Vasconcelos de Saldanha. 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Duas cartas: 1621 e 1629

Carta escrita em 1621 (64 anos após a provável data da fundação de Macau), pelo padre Gabriel de Matos, reitor do Colégio da Madre de Deus de Macau:
«Esta terra (de Macau) foi de El Rey da China e agora he del Rey de Portugal e dos Portuguezes q morão nella e o titulo por que he sua he por que os Mandarins de Cantaõ lhe derão e El Rey confirmou a data: consta isto primeyramente por tradicção e historias impressas. Contrataraõ os Portuguezes com os Chinas na ilha de Sanchoaõ athe o anno de 1553, e dahi, os mudaraõ para Lampacau no anno de 1555, e daqui os trouxeraõ para Macao no anno de 1557; no qual os Mandarins lhe deraõ este Porto para nelle tratarem, e como a homens que já conheciaõ havia annos por mercadores quietos e fieis, os admittirão ao commercio de Cantão, sendo Fernão Peres de Andrade q poz alli feitoria por el Rey de Portugal. Confirmou mais esta doação do porto e sitio da cidade o grande serviço q fizeraõ os Portuguezes ao Reyno, e foi destruir hum Ladraõ afamado q molestava a Cantaõ, e para este fim trouxeraõ para este porto mais perto de Cantaõ aos Portuguezes, como affirmaõ os antigos moradores desta cidade. E com este serviço ficaraõ mais arreigados nelle, e aos Mandarins grandes tão satisfeitos, q em agradecimento deraõ a cada hum dos Portuguezes huma chapa de ouro cõ letras a este proposito; e estes merecimentos assentarão nos livros do tombo da Provincia de Cantaõ e em muitas chapas, que diversos Mandarins grandes derão a esta Cidade e em diversas occazioens fizerõa mensaõ delles».
Segundo o padre Gabriel de Matos a autorização para a fixação dos portugueses em Macau ocorre em 1557 e  o Imperador da China confirmou a doação de Macau feita pelos mandarins de Cantão. Oito anos mais tarde, o procurador da Cidade de Macau, Cristóvão Ferreira, numa representação em nome do Senado, ao rei Filipe III, afirma que o porto e o sítio de Macau foram doados, por meio duma chapa, concedida pelo Imperador da China:
«A Cidade de Macao q por outro nome se chama a Cidade do nome de Deos -- por seu Procurador Christouão fr.ª (ferreira), homem q na guerra seruio muytas uezes de Capitão principalmente no cerco q os Olandeses lhe puseraõ no anno de 22 em q foraõ desbaratados, E em tempo de paz servio por vezes de vereador E Embaixador ao Emperador do Japão - representa a V. Mag.de como a ditta cidade por seus vizinhos auerem desbaratado ao Tiranno Chimcheo grande Pyratta da Costa do Reyno da China do anno de 1557 alcançou chapa daquelle grande Rey pera se lhe dar o porto E sitio de Macao em que oje viuem».

Corsário dos Sete Mares


"O Corsário dos Sete Mares - Fernão Mendes Pinto" é o título do mais recente romance histórico de Deana Barroqueiro 'especializada' no período dos Descobrimentos Portugueses. O livro, editado em Outubro de 2012, será apresentado em Macau pela autora no âmbito da 2ª edição do festival literário “Rota das Letras”, de 10 a 16 de Março. O evento inclui conferências e debates, uma feira do livro, exposições de artes plásticas, concertos e projecção de filmes e a presença de vários autores da literatura lusófona e chinesa contemporâneas.
Para Deana Barroqueiro F. M. Pinto "foi o pretexto e ponto de partida para eu contar os descobrimentos no Oriente, completando a minha saga dos portugueses, iniciada com O Navegador da Passagem – Bartolomeu Dias (África e Brasil) e continuada com O Espião de D. João II – Pêro da Covilhã (até à Índia)."
Em 1555 Fernão Mendes Pinto escreveu a carta - enviada para Goa - considerada a "Certidão de nascimento de Macau". Ou seja, o nome do território é mencionado pela primeira vez.A 23 de Novembro desse ano será a vez do padre Belchior Nunes Barreto enviar uma outra carta para Goa a partir de Macau.
Sinopse: Fernão Mendes Pinto é o exemplo vivo do aventureiro português do Século XVI, que embarcava para o Oriente com o fito de enriquecer. Curioso, inteligente, ardiloso e hábil, capaz de todas as manhas para sobreviver, vai tornar-se num homem dos sete ofícios, sendo embaixador, mercador, médico, mercenário, marinheiro, descobridor e corsário dos sete mares – Roxo, da Arábia, Samatra, China, Japão, Java e Sião – por onde, durante vinte anos, navegou e naufragou, ganhou e perdeu verdadeiros tesouros, fez-se senhor e escravo, amou e foi amado, temido e odiado. Herói polémico e marginalizado, Fernão participa em campanhas de paz e guerra, da Etiópia à China, sendo também um dos primeiros portugueses a visitar o Japão, onde introduz os mosquetes ali desconhecidos e fica nas crónicas locais como o noivo do primeiro matrimónio de uma japonesa com um ocidental. Através de Fernão Mendes Pinto e dos testemunhos das personagens com quem se cruza, na sua peregrinação pelo Oriente longínquo, a autora faz ainda a narrativa dos principais episódios da grande saga dos Descobrimentos Portugueses, como as conquistas de Goa e Malaca, o heróico cerco de Diu ou as campanhas do Preste João na Etiópia. Em sete mares se divide o romance, por onde o leitor, na pele das personagens, fará uma intrigante viagem no Tempo, ao encontro de si próprio e de mundos e povos antigos, tão diferentes e ao mesmo tempo tão semelhantes, uma peregrinação na busca incessante de fortuna, encarnada na demanda da mítica Ilha do Ouro.
Em exclusivo para os leitores do blog Macau Antigo aqui fica um excerto do capítulo XVI "Mar da China" (o 4º de um total de 7) que relata o encontro de Fernão Mendes Pinto com Vasco Calvo, durante o exílio na Muralha da China
XVI – Onde houver mel, haverá formigas (malaio)
[A carta] do rei de Malaca Mahamed Syah, trazida por Tuão Hasan Mudelyar, seu embaixador, que foi dada ao Filho do Céu, dizia:

“Os Folangji ladrões com coração grande vieram a Malaca com muita gente e tomaram a terra e a destruíram, e mataram muita gente e a roubaram, e outra cativaram, de que o rei que foi de Malaca tem o coração triste e anojado. Com grande medo tomou o selo do rei da China e refugiou-se no Bintão (1), donde está; e os seus irmãos e parentes fugiram para outras terras. O embaixador do rei de Portugal que está na terra da China é falso, não vem de verdade, que vem para enganar a terra da China. Para o rei da China fazer mercê ao rei de Malaca, este, com coração enojado, manda presente, pede ajuda e gente para lhe ser tornada sua terra”.
Do Lichao Shilu (Crónicas Verídicas da Dinastia Li - Coreia)

“No dia Wushu da décima segunda lua (1522), o intérprete Li Shuo apresentou um memorial ao Trono com informações recolhidas na corte chim:
A nação dos Folangji foi sempre impedida pelo reino de Malaca, de modo que desde a fundação da grande dinastia Ming, nunca teve contactos com a China. Agora os Folangji, após terem destruído Malaca, vieram pedir o “fom” (2) à China. O Tribunal dos Ritos estudou o caso e deliberou: Não se pode autorizar o pedido de um reino que tomou a liberdade de exterminar outro que foi nomeado pela nossa corte como tributário. O seu pedido de ir em audiência à corte foi recusado. Ficaram hospedados na pousada oficial com os mesmos tratamentos e privilégios das outras nações. Essas gentes cuja fisionomia se assemelha à dos japoneses, usam roupas e comem comidas não muito civilizadas. Para os chins, são pessoas nunca dantes vistas”.
– Como foi que vos cativaram?

– Vossa mercê esteve em Pequim com Tomé Pires? Como vos foi lá?
– Contai-nos tudo, por vossa vida, que nunca se soube ao certo o que vos aconteceu.
Falavam, atropelando-se uns aos outros, com a alegria dos antigos tempos de liberdade e sonhos de fortuna, que renasciam no lar de Vasco Calvo, cuja esposa e filhos os recebiam com amor de mãe e irmãos. Este encontro de portugueses à sombra da Grande Muralha da China parecia tão improvável que Fernão o tomava por milagre ou feitiço. Era como se o Destino, ao tecer as teias das suas mesquinhas existências, houvesse determinado aquela encruzilhada nos caminhos das suas desventuras, para que os nove náufragos ali viessem achar a única pessoa capaz de lhes desvendar o mistério da embaixada que há duas décadas os chins mantinham secreto e os portugueses desesperavam de conhecer.
Contemplando as filhas de Calvo, Ana de dezoito anos e Isabel de quinze (ou Meng e Lijie, respectivamente, porque os nomes portugueses apenas se usavam em casa), moças de gracioso e honesto parecer que os serviam com modos de donzelas bem-nascidas, Fernão sentiu o espinho da saudade cravar-se fundo no seu coração. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas quando ao gentil quadro se veio sobrepor a imagem de Huyen, a cativa cauchim que ficara na memória dos homens de Faria como a Noiva Roubada, mas que para ele fora muito mais do que isso e, embora tentasse olvidá-la, a sua perda era-lhe insuportável.
Momentos antes, ao ouvi-las tanger e cantar, ora sós, ora a quatro vozes, acompanhadas por Gaspar, um pensamento tentador quase o fizera esquecer os males presentes. O seu patrono Pero de Faria tinha casado com uma gentia a quem muito amava e lhe dera numerosa prole, não pensava sequer em regressar a Portugal; Tomé Pires e o próprio Calvo desposaram mulheres chins, criaram filhos e alcançaram a paz. Também ele iria viver o resto da sua vida em Quansy, portanto, não seria de estranhar se lhes seguisse o exemplo e tomasse uma daquelas duas moças por esposa, se o pai lha quisesse dar apesar de não possuir nada de seu.
Fechou os olhos aterrado não pela visão do seu futuro ao lado de uma formosa mestiça, mas por se dar conta que estava a desistir de regressar a Portugal, ao aceitar com resignação a ideia de ficar para sempre na China. Ergueu-se do banco num impulso de fugir para os matos, onde poderia gritar os seus medos em solidão, porém a voz de Calvo prendeu-o de novo ao lugar.
– Tomé Pires foi boa escolha para embaixador porque, apesar de não ser fidalgo, era um letrado de natural discrição, muito hábil e aprazível a negociar. Sempre curioso em inquirir e saber cousas, acabara de escrever a sua Suma Oriental que, como ele mesmo me disse, era a primeira relação dos lugares do Oriente, portanto estava bem talhado para levar a cabo a sua missão. E a prova maior do seu valor foi que Zhengde, antes de ler as malfadadas cartas, folgou de o ver e fez-lhe muita honra e até jogou com ele às tabulas, estando toda a embaixada presente, a quem mandou banquetear por três vezes com os seus grandes.
– Recebimento deveras espantoso! – exclamou Vicente. – Que lástima terem caído em desgraça!
– O Filho do Céu entregava-se mais aos prazeres e vícios do que aos negócios do Império, preferindo frequentar os bordéis e passar meses seguidos no palácio Pao Fang, a Casa do Leopardo, que mandara construir fora da Cidade Púrpura Proibida para dar os seus banquetes e ter conversação com as suas concubinas e favoritos. Quando recebeu a nova do embaixador, preparava-se para fazer uma entrada triunfal na cidade, como comandante dos exércitos que nunca havia chefiado, para festejar como sua a vitória do general Wang Yang-ming sobre uma revolta encabeçada pelo príncipe de Nanquim. A vinda dos estrangeiros seria mais um incenso à sua gloriosa pessoa, por isso decidiu recebê-los, contra o conselho do seu general que não confiava nos folangji e pôs um espião no albergue onde pousavam, para ver como eram as suas armas e copiar os arcabuzes.
Calvo sentia, pela primeira vez em muitos anos, o coração aliviado do peso da solidão e do desterro. Poder falar em português a compatriotas que lhe bebiam as palavras dava-lhe um novo alento. Com um fundo suspiro de satisfação, retomou o relato:
– Zhengde fez outra cousa de pasmar: entrou nos paraus dos portugueses, mandou abrir todas as arcas, tomou os vestidos que lhe pareceram bem e fez mercê a Tomé Pires, dizendo-lhe que fossem a Pequim que os despachava… Contudo foi a partir daí que as desgraças começaram, primeiro com a morte de um companheiro durante a travessia das montanhas e depois com as cartas dos mandarins de Cantão e Nanquim, relatando os abusos de Simão d’Andrada.
– Então o principal culpado sempre foi ele! – bradou Vicente. – Era de natural muito arrogante, sem cuidar com quem estava a tratar.
– Para piorar o negócio, em Pequim, estava à espera do Imperador um enviado do rei de Malaca com uma missiva do seu soberano e sobrinho a pedir socorro para expulsar da sua terra os folangji que lha tinham roubado. Zhengde leu todas estas queixas e acusações, antes de Tomé Pires lhe poder entregar as cartas de Fernão d’Andrada e do rei D. Manuel com o seu presente, assim como uma do mandarim de Cantão, escrita quando os lauteaas ainda estavam de bem com os portugueses.
– Tanto os portugueses da embaixada como os que vinham fazer veniaga foram acusados de espionação – disse Vicente. – Diziam que vínhamos espiar a terra para a tomarmos, como tínhamos feito na Índia e em Malaca, além de sermos tão selvagens que comprávamos e furtávamos crianças, filhos de pessoas honradas, para os comer assados.
– Calai-vos, por Deus, que estais sempre a interromper! – protestou Borralho, com impaciência. – Vasco Calvo foi testemunha de ver, ouvir e sofrer, deixai-o contar a história miudamente, já que nenhum de nós a sabe tal como se passou!
O anfitrião fez um gesto apaziguador e retomou o seu relato:
– A partir de então, foi o fim da embaixada! O presente foi tido por mesquinho e as cartas do capitão-mor e do rei de Portugal julgadas falsas e traiçoeiras, porque os seus línguas ou iurubaças não as leram e, em vez de fazerem uma traslação fiel, escreveram-nas ao estilo destes reinos, mudando a substância delas sem nada dizerem ao capitão-mor e a Tomé Pires.
“No seu traslado diziam que o rei dos folangji vinha oferecer páreas (3) ao Filho do Céu e pedir para ser seu vassalo e levar mercadorias boas e ricas para o seu reino, porém, quando os mandarins do Conselho do Imperador abriram as cartas originais, entregues por Tomé Pires, viram que a sua substância era muito diferente. A diferença das cartas e o pedido de concessão de uma casa em Cantão para uma feitoria dos portugueses confirmaram aos mandarins as suspeitas de que tínhamos vindo com falsidade espiar a sua terra e assim o escreveram ao imperador.
Os quatro iurubaças foram descabeçados por terem saído sem licença das terras do Império e trazido os perigosos folangji, os seus servidores foram dados como escravos aos mandarins e as suas mulheres vendidas em Cantão como fazenda de traidores. O imperador mandou ainda arrasar a fortaleza de pedra que Simão Peres construíra e o lugar onde viviam os portugueses, defendendo os chins de fazerem tratos connosco e ordenando-lhes que expulsassem todo o estrangeiro que viesse fazer veniaga, sem o seu selo de vassalagem. O embaixador e a sua comitiva foram mantidos sob vigilância e proibidos de se acercarem sequer do palácio para fazerem as cinco mesuras de obediência, zumbaias necessárias para um embaixador ser admitido à sua presença e ter despacho.
Por desgraça, Zhengde morreu sem ter dado despacho à embaixada e, com a sua morte, todos os negócios do Império cessaram e nenhuma decisão foi tomada enquanto o seu sucessor não se sentou no trono. Assim, no dia vinte e dois de Maio, sem nunca terem sido recebidos no palácio, Tomé Pires e os seis portugueses que restavam do seu séquito foram enviados para Cantão com toda a sua fazenda e o presente que o imperador recusara. Chegaram no dia vinte e dois de Dezembro, já sem Francisco de Budoia que morreu pelo caminho e foram metidos numas casas, onde estiveram durante trinta e três dias muito vigiados, sem poderem sair ou falar com alguém, sobretudo com estrangeiros. Com a subida ao trono de Jiajing, então com treze anos, confirmou-se a perdição da embaixada por ordem dos mandarins”.
A voz de Vasco Calvo embargou-se com as penosas recordações.
– Foi então que vossa mercê se encontrou com os da embaixada? – perguntou Fernão. – Como veio para cá com tamanho risco?
– Em Malaca não se suspeitava de nada, porque os lauteaas de Cantão, ainda em vida de Zhengde, se apressaram a prender todos os portugueses que por lá andavam, para não poderem avisar-nos. Por isso, em Junho desse mesmo ano de vinte e um, eu e o meu irmão Diogo viemos com alguns navios a Tamão, onde nos montaram uma cilada e fiquei prisioneiro com outros que desembarcaram.
“Cada vez que chegava um dos nossos navios, os mandarins enviavam recado para os portugueses virem a terra fazer veniaga e, mal os incautos punham o pé na praia, logo os prendiam com as suas fazendas. Pela calada da noite, para que os não sentissem, vinham em batéis ao navio, que tomavam às mãos, matando o capitão, os seus oficiais e os mercadores; furtavam as mercadorias e levavam os sobreviventes para os troncos, com as cabeças e as naturas dos mortos às costas, como troféus.
Os mandarins dividiam entre si os despojos das naus e as mercadorias, registando uma muito pequena parte do saque para o imperador, como se fora espólio de corsários. Condenavam à morte todos os portugueses, assim como os seus aliados e criados malaios ou siameses, vendendo as suas mulheres e filhos como escravos em outras terras, livrando-se assim das testemunhas dos seus roubos e crimes.
Vinte e três portugueses foram justiçados, cortados em pedaços: cabeça, pernas, braços, o tronco dividido ao meio pela barriga e as suas naturas cortadas e metidas na boca; outros foram mortos às frechadas pelas ruas, com muitos tangeres e festa, para que as gentes de Cantão vissem que não podiam fazer tratos com os nossos. Outros muitos morreram à fome e ao frio nas picotas. Foi durante as audiências do julgamento que me encontrei com Tomé Pires e os da sua comitiva, assim como com Cristóvão Vieira e mais três marinheiros de outras prisões. Estes encontros eram o nosso único consolo enquanto esperávamos pela sentença de morte”.
A voz quebrou-se-lhe de novo e as lágrimas correram-lhe pelo rosto. Embora a mulher e as filhas pouco entendessem do seu longo arrazoado em português, vendo-o assim afligido romperam em pranto, perante o silêncio comovido dos degredados que não achavam na sua própria miséria palavras de consolo para lhes dar. Calvo abraçou-as e, limpando as lágrimas, concluiu:
– Finalmente chegou a sentença que publicava que o embaixador e a sua gente só seriam livres de partir se os portugueses restituíssem Malaca ao seu lídimo rei, a quem a tinham tomado, como mostrava a carta do seu embaixador, o Tuão Hasan Mudelyar.
– Os chins queriam que entregássemos Malaca? Uma conquista que tanto sangue custou aos nossos?
– Uma condição impossível de satisfazer, nem mesmo para vos salvar!
– Nem nós contávamos com isso! – protestou Calvo. – Esperávamos, contudo, que el-rei e os Governadores tomassem em conta as nossas informações sobre o fraco poder de guerra deste povo e nos viessem libertar pela força. Isso não aconteceu e, ao fim de alguns anos de prisão e maus tratos, só eu e Tomé Pires sobrevivemos.
A noite cerrara-se em torno do lar acolhedor, onde durante algumas horas aqueles dez portugueses se esqueceram do degredo e da miséria, reinventando a sua pátria e o regresso ao seio da família para, reunidos à lareira, contarem as suas aventuras. Kexin e as filhas haviam acendido velas e candeias e a sua presença silenciosa, aliada aos sons familiares da casa – o roçagar dos panos, o tinir das porcelanas, os risos e correrias de crianças, o cacarejo das aves de capoeira – trazia-lhes paz ao coração, mitigando-lhes a saudade.
– Vede como o tempo passou sem nos darmos conta! – disse Vicente, preocupado, ao ouvir o som do gongo na torre próxima. – Como estrangeiros e degredados, é perigoso andarmos a horas mortas pelos caminhos.
– Tendes razão, é perigoso – assentiu Calvo. – Vinde de novo no próximo Domingo comer connosco e prosseguiremos com as nossas memórias. Vinde connosco dar graças a Deus por este encontro e por vos ter poupado a vida. Temos de orar em segredo por causa dos parentes da minha mulher, que são gente honrada mas gentia
A esposa tirou uma chave do molho que trazia preso ao braço e foi abrir as portas de um oratório, semelhante ao de Inês de Leiria, com um altar onde brilhavam uma cruz, dois castiçais e uma lâmpada, tudo em boa prata. O casal e os quatro filhos ajoelharam e de mãos erguidas oraram num português tão bem pronunciado como se fossem nascidos e criados em Alcochete, a terra de seu pai:
– Verdadeiro Deus, nós pecadores prometemos viver e morrer na nossa santíssima Fé Católica, como bons e verdadeiros cristãos, confessando e crendo na Vossa santa verdade, tudo o que tem e crê a Santa Madre Igreja de Roma, e destas nossas almas com Vosso precioso sangue remidas, Vos fazemos preito e menagem, para com elas vos servirmos toda a vida e na hora da morte vo-las entregarmos como a Deus e Senhor, cujas confessamos que são por criação e por redenção.
Atrás deles, também de joelhos, os degredados sentiam grande turvação, mesmo os de coração mais arisco, por verem em terra tão longínqua e sem conhecimento de Deus, dois meninos e duas donzelas a orarem com tamanho fervor. Com a devoção de quem presencia um milagre, acompanharam-nos no Pater Noster, Ave Maria, Credo e Salve Regina. Passava de três horas da manhã, quando regressaram à sua cabana, ainda mal refeitos da maravilha.
1) Pahag.
2)Vassalagem com pagamento de tributos à China.
3)Tributo pago por um soberano ou Estado a outro, em reconhecimento de vassalagem.