Como é que iniciou este projecto de fazer a genealogia das famílias macaenses e o que o motivou?
-Vivi em Macau entre 1989 e 1991, tempo em que fui secretário-geral do Festival de Música de Macau, que faz agora 25 anos. Depois regressei a Portugal, mas já levava comigo o embrião desta investigação. Sou historiador de formação e já realizava os meus projectos de genealogia. Quando vim viver para Macau trouxe comigo alguma documentação para me entreter aqui. Aquela documentação deu-me para alguns bons serões, mas após algum tempo acabou e foi nessa altura que me lembrei do que haveria para fazer sobre Macau. É assim que esta investigação começa do zero. Inicialmente nunca me passou pela cabeça publicar fosse o que fosse, porque nunca pensei que a obra ficasse completa quanto mais que tivesse aquela dimensão. Porém, como já tinha um lote tal de investigação, propus-me a acabar... Mas, para isso precisava de fazer ainda muita investigação. Depois, falei com a Fundação Oriente, que vem a ser o editor do projecto e o apoia entre 1991 e 96, ano em que o livro é publicado. Nesse espaço de tempo vim a Macau todos os anos e a Hong Kong e viajei pelo mundo inteiro. A comunidade macaense é uma comunidade pluri-pátrias... Até em Singapura em Banguecoque existe.
-Foi difícil chegar às 440 famílias que catalogou?
-É fácil para quem sabe, pode é ser mais trabalhoso. Uma coisa é trabalhar uma comunidade toda na Ilha Terceira, onde vivo, em que me sento no arquivo e mando vir os livros e a investigação é feita na mesma mesa durante anos a fio, outra coisa é estar em Macau e ter metade da família em Hong Kong, em Xangai, um bocadinho no Japão e pelo resto do mundo... Isso é mais complicado, sobretudo naquela altura em que se tinha de ir aos locais e se escreviam cartas. Depois, os arquivos também estão em condições muito diversas. As igrejas de Macau têm-nos, mas nem todos estão em boas condições. Depois da recolha dos dados tive também de jogar com os milhares de datas que aparecem no livro, para que haja uma lógica de sequência de pais para filhos, e as pessoas possam compreender. O livro está de forma a que mesmo os que não têm formação histórica percebam a sequência familiar.
-Quais foram as reacções dessas pessoas com quem conviveu? Tinham consciência do que é ser Macaense?
-A reacção foi geralmente muito positiva e quanto mais longe estavam de Macau mais positiva era, curiosamente. Normalmente quem sai da sua terra preocupa-se mais com esta questão. Os que estão na terra acordam, vivem, nascem todo o dia macaenses, estão envolvidos nesta ambiência. Já os que vão cair num meio estranho têm necessidade de reivindicar a sua identidade e ao fazerem-no procuram as suas raízes macaenses.
-Mas, havia essa consciência do ser Macaense, do pertencer a uma comunidade que é metade chinesa e portuguesa?
-Havia. A parte portuguesa da sua identidade todos tinham [assente], mas em relação à parte não portuguesa havia alguma confusão. Uns diziam que eram chineses, outros que eram tailandeses, outros goeses. Às vezes, nem sempre era assim, o goês não era goês era timorense, e vice-versa. E nem sempre era assim porque a dominante portuguesa impunha-se, a outra era uma coisa mais exótica no seu ponto de vista, que entrava, mas essa noção acabava por se perder duas ou três gerações depois. O livro veio esclarecer bem essas origens.
-Então o que poderemos considerar um macaense?
-Para mim um macaense é acima de tudo alguém que pode até nem ser sempre de raiz portuguesa... Estou a lembrar-me de uma família de Raguza, que fica hoje na Ex-Jugoslávia. Embora de origem jugoslava, era uma família macaense pura, porque chegou a Macau e integrou-se numa comunidade local, de raiz e cultura portuguesa e tradição católica e isso é fundamental. Tem de haver é uma integração num espírito cultural português. O macaense tem um tronco comum que é o sentimento de pertença a esta comunidade, identifica-se com este território em qualquer parte do mundo.
-Descobriu raízes mais longínquas do que as que esperava encontrar?
-Estas discussões filosóficas sobre o que é um macaense são as discussões modernas. Os homens do século XVIII não se preocupavam com isso, instalavam-se e queriam ganhar a sua vida. Se eu estava à espera? Uma investigação depende sempre exclusivamente da existência ou não de boa documentação e este tipo de investigação incluiu documentação como os chamados registos de casamento, de baptismo e de óbitos que existem nas igrejas, que eram obrigadas a fazer esses registos desde o século XVI, do Concílio de Trento. Aqui não há registo nenhum dos séculos XVI e XVII, no entanto, havia cá gente. Muitas vezes o que consegui foi chegar lá pelas famílias que vieram para aqui no século XVIII. Encontrei, por exemplo, um indivíduo cujo registo mostrava que era natural de Portalegre, da freguesia de S. Tomé. Encontrei em Portalegre o registo e consegui recuar mais algumas gerações em Portugal.
-Passados quase 12 anos desde a criação da RAEM, o papel dos macaenses ainda está muito acentuado?
-Estive aqui pela última vez em 1999, mas acho que a antiga comunidade macaense está mais pequena e os seus contornos estão menos definidos. Isto porque primeiro são muito mais móveis. Em segundo lugar, há muitos portugueses em Macau, mas ao contrário do que acontecia há 100 anos já não estão preocupados em casar numa comunidade específica e isso não enriquece aquilo que se chamava os macaenses. Os macaenses têm características específicas, como o Patuá, a sua própria culinária e essas coisas têm de continuar a subsistir para que se diga que uma comunidade é macaense. As comunidades no estrangeiro mantêm a sua própria culinária, falam patuá, embora este vá acabar. Quando deixar de haver gente a falar acaba, porque não é uma língua escrita.
-Tem-se feito um esforço neste sentido até com a tentativa de candidatar o Patuá a Património Imaterial...
-Seria muito interessante. A sensação que tenho é que o patuá vivia de uma comunidade estável que entre si falava patuá, fazia os seus teatros, brincadeiras de Carnaval e tinha os seus poemas. Quando a sociedade se internacionaliza demasiado, essas línguas que são muito pequenas, tendem a perder-se.
-Mediante esse cenário qual será o papel dos macaenses no século XXI e a sua projecção?
-É um pouco difícil responder a isso, mas penso que os macaenses têm a título individual de afirmar-se numa comunidade que é avassaladoramente diferente. É uma comunidade muito pequena, hoje serão um por cento e um por cento em qualquer comunidade como se impõe? Impõe-se pelo seu nível intelectual, é a única maneira, porque se a comunidade macaense ficar reduzida a um pequeno grupo de cidadãos, esse grupo acaba diluído. A comunidade tem de se afirmar pela cultura, mantendo-a viva através das suas tradições, exposições, dos seus artistas, bem como através das suas organizações, como é o caso do Albergue, manter os vínculos com o passado.
-Nesse sentido, como vê o projecto da casa museu macaense...
-Isso seria importantíssimo. Os americanos têm um arquivo que é Old China Hands, que é um nome que os anglo-saxónicos chamavam aos antigos habitantes da China, que eram da Inglaterra e América, como grandes comerciantes, e nesses arquivos preservam a memória das pessoas que lá viveram. Aqui temos o próprio Arquivo Histórico de Macau, que é uma memória da presença macaense e portuguesa em Macau, mas um museu dessa natureza também me parece muito interessante. E é pela cultura que se vai lá, porque em matéria de milhões hoje em dia com o sector do jogo são fortunas que se jogam aqui, e diante disso o macaense é nada. Agora, pela cultura pode ser tudo.
-Estudou outras descendências portuguesas. Como é que podemos definir o estado da influência portuguesa no mundo hoje em dia?
- Acho que ainda é imensa. Se não olharmos numa perspectiva de comparar com a Inglaterra, em que há países inteiros a falar inglês, veremos que há um português sempre algures e nos sítios mais espantosos. Vamos a uma cidade grande ou pequena do Japão e temos lá descendentes dos macaenses, que são talvez dos portugueses os mais espalhados. À volta do globo inteiro encontramos macaenses e gente muito distinta não só do ponto de vista intelectual, mas intelectual. Encontramos macaenses na nova Zelândia, o senhor Bernardo d ‘Eça que não fala uma palavra de português, mas continua a escrever o nome com o “ç” contra tudo, porque não há na língua inglesa o “ç”. Há gente de sangue macaense um pouco por todo o mundo a ilustrar o nome macaense. São poucos, mas são bons. Os que estão em Macau têm de ilustrar o seu nome e, fazendo isso, a sua história e a sua presença.
Entrevista de Fátima Almeida publicada no JTM de 3-11-2011