No tempo em que as crianças brincavam na antiga colónia na praia de Hac-Sá, Francisco Ferreira era o guarda responsável pela segurança e manutenção daquela zona balnear. Conhecido como “o general”, Francisco Ferreira faz parte do imaginário dos que na altura tinham 14 ou 15 anos. É o caso de Aníbal Mesquita Borges, professor no Instituto Politécnico de Macau (IPM), que se recorda de um guarda diferente dos outros. “Não era nada rígido. Era um homem que eu considero como sendo um português de gema em Macau”, contou ao JTM. Apesar do “ar austero” que ostentava, Francisco Ferreira era “boa pessoa, com genuidade e simpatia, sempre disposto a ajudar o próximo”, recordou Aníbal Mesquita Borges.
“O general” também habita as memórias de Carlos Marreiros, director do Albergue SCM. “Recordo-me que era uma figura muito popular no imaginário infantil. Não tinha muito contacto, mas recordo-me de um homem discreto, respeitável, com uma impecável bigodaça, que ostentava há várias décadas”, lembrou.
Tendo pisado o território pela primeira vez nos anos 40, Francisco Ferreira chegou na qualidade de militar, tendo depois ingressado na Polícia de Segurança Pública (PSP), profissão que desempenhou até se reformar. Casado com uma senhora de nacionalidade chinesa e sem filhos, o percurso do homem conhecido por ajudar os outros chegou ao fim aos 87 anos. Foi de “condecorações ao peito”, como contou Carlos Marreiros, que Francisco Ferreira foi ontem a enterrar no cemitério junto ao Jardim da Esperança Pascal, na Avenida do Almirante Lacerda.
As medalhas que carregava ao peito sempre que havia um evento importante na PSP, bem como “o bigode com as pontas retorcidas, que mostrava autoridade”, como contou Domingos Sabugueiro, antigo comissário da PSP, acabaram por lhe dar a alcunha pela qual ficou conhecido, mas o início da carreira como militar é outra das explicações para o nome. Francisco Ferreira “veio para formar uma linha de defesa nas Portas do Cerco, integrado na chamada ‘companhia das metralhadoras”, disse Aníbal Mesquita Borges, mas foi na PSP que fez profissão e ficou conhecido por ajudar os outros. Teve “a missão de dignificar a presença portuguesa em Macau e o trabalho de toda uma vida que dedicou à PSP”, recordou o professor do IPM.
Porta do Cerco na época em que "o general" chegou a Macau |
Da época na praia de Coloane, guardam-se outras histórias. Domingos Sabugueiro conta um episódio em que o governador Garcia Leandro, numa festa de São Martinho da PSP, disse a Francisco Ferreira “ó rapaz, eu sou tenente-coronel, tu és general e eu é que tenho de fazer a continência a ti”.
Para António Rodrigues, antigo chefe da PSP, Francisco Ferreira foi como “um segundo pai”. Residente em Macau há 30 anos, recorda-se do homem com quem aprendeu “muitas coisas sobre a cultura chinesa”. António Rodrigues não esquece a “brigada do general”, nome pelo qual era conhecido o grupo de mendigos que Francisco Ferreira acolheu na antiga esquadra número dois na zona do Fai Chi Kei. “Ele tinha um amor àqueles homens...às vezes eram agressivos, assisti a muitas cenas em que ele foi agredido. No Natal e no Ano Novo Chinês visitava-os e costumava dizer-me “ó Rodrigues, eu não tenho filhos, eles são os meus filhos”, recordou.
Antes de vir para Macau, Francisco Ferreira chegou a ser dado como morto, após um problema de congestão, tendo estado dois dias numa morgue. O antigo chefe da PSP conta que “o general” de vez em quando recordava o episódio, dizendo: “eu não morro tão depressa, já morri uma vez e ressuscitei”.
Na zona do Fai Chi Kei, Francisco Ferreira era responsável pelo campo de futebol da zona, onde também tratava do equipamento dos jogadores da equipa de futebol da PSP. “Conheci-o quando entrei para a polícia nos anos 70. Trabalhei com ele na parte do clube de futebol da polícia, onde era um voluntário que ajudava os jogadores”, disse Herculano Ribeiro. O antigo comissário da PSP falou de um guarda, que, para além da farda que vestia, “era um tipo muito prestável, voluntário para tudo, que se integrou bem na comunidade chinesa”.
O desporto foi, aliás, outra das coisas que sempre esteve muito presente na vida de Francisco Ferreira. “Toda a vida colaborou nas iniciativas do Instituto do Desporto, no atletismo. Ia sempre com a mota a abrir caminho, uma pessoa com uma iniciativa fantástica”, afirmou Domingos Sabugueiro, de quem “o general” chegou a ser padrinho de casamento.
O seu espírito de ajuda foi também visível ainda no tempo em que Francisco Ferreira estava na esquadra do Fai Chi Kei. Isto porque o antigo polícia fez uma plantação de couves portuguesas atrás da esquadra, onde centenas de pessoas iam receber gratuitamente os legumes. Artur Maurício foi uma dessas pessoas. “Falava com ele um bocadinho e ele contava sempre uma história. Onde ele estava havia sempre alegria. Deixa muita pena”, contou.
Zona da Barra na década de 1960 |
O homem que permanece nas memórias de muitos foi “um dos portugueses da velha cepa”, como recordou Carlos Marreiros. Fez parte “dos que vieram fazer a tropa a Macau e ficaram, conheci muitos deles. Estes homens simples hoje estão esquecidos, e fizeram muito pelo português em Macau”, disse o arquitecto.
Artigo da autoria de A.S.S. publicado no JTM de 18-11-2011 a propósito do funeral (no dia anterior).
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