sábado, 20 de outubro de 2018

Relações de Portugal com a China anteriores ao estabelecimento de Macau: 1ª parte

Ao aproximarmo-nos de 1999 é provável que a curiosidade sobre o que foi a presença histórica portuguesa na China vá crescendo. Nos termos da Declaração Conjunta luso-chinesa sobre Macau, de 1987, a 20 de Dezembro daquele ano, o exercício da soberania sobre o Território passará para a República Popular da China, concluindo-se assim um ciclo significativo da nossa presença no Extremo Oriente. Para o futuro, diz-nos a mesma Declaração Conjunta, que durante cinquenta anos se manterá em Macau inalterada a «maneira de viver» que lhe é própria bem como «os actuais sistemas social e económico». Além disso, Portugal poderá manter a sua presença cultural e civilizacional, prevalecendo-se de uma imagem favorável que soube criar e deixar na memória colectiva de tantas nações asiáticas.
O período de contactos com o Império do Meio que precedeu o estabelecimento de Macau - quatro décadas da primeira metade do séc. XVI- foram férteis em entendimentos e querelas. em convergência de interesses! conflitos: ensinaram a portugueses e chineses o «modus vivendi» que tornou possível Macau, e deram a conhecer a China ao ocidente europeu, pela primeira vez em tempos modernos. A sinologia, tal como é entendida hoje, nasce e apoia-se nos relatos, descrições, «enformações») daqueles pioneiros maioritariamente portugueses.
As décadas dos primeiros contactos entre Portugal e a China foram de busca de plataformas de entendimentos, com numerosos acidentes de percurso por vezes dolorosos e com episódios em que se insinuou o aleatório infeliz. No primeiro quartel do séc. XVI Portugal estava forte dos sucessos da gesta ultramarina, habituado a vencer, dominar, impelido pela dinâmica militar, religiosa e económica da expansão. A China, nesse tempo, vivia ainda a pujança da dinastia Ming; por pouco que navegadores portugueses e chineses se tinham encontrado na costa oriental da África, ou algures no mar Vermelho.  
Em começos do séc. XVI a China era ainda forte, xenófoba, imbuída da sua superioridade civilizacional. Eram inevitáveis os atritos. Só com alguma sorte - quanto foi precisamente esta que faltou - se poderiam ter evitado alguns lastimáveis episódios.
Jorge Álvares foi o primeiro português que chegou à China, em 1513; e Macau «nasce» por volta de 1555, dois marcos no percurso das relações luso-chinesas. Mas como balizas do primeiro período, afigura-se que deverão ser procurados outros factos, admitindo à partida que as arrumações possíveis são as que se quizer fazer, desde que contribuam para facilitar o estudo e compreensão duma época. Encontro essas balizas no Regimento de Almeirim, dado por D. Manuel a Diogo Lopes de Sequeira em 1508, ordenando-lhe a obtenção de informações sobre a China e os chineses; e no termo do período em apreço, o «Assentamento» de Leonel de Sousa, de 1554, através do qual negociou e acordou com autoridades chinesas interesses convergentes e abriu as portas ao estabelecimento de Macau.
Primeira Fase - Os pioneiros (1508-1522)
D. Manuel, ao dar as suas instruções a Diogo Lopes de Sequeira, baseava-se no que os portugueses tinham ouvido e aprendido no decurso da viagem à Índia de Vasco da Gama: a memória de «homens brancos», que umas oito décadas antes ainda comerciavam no oceano Índico. Eram os chineses que a essas paragens se deslocaram regularmente até à proibição imperial de os súbditos saírem do seu país. D. Manuel era minucioso nas instruções que dava a Lopes de Sequeira: «Perguntareis pelos chins, e de que partes vêem, e de quão longe, e de quanto em quanto vêem a Malaca, ou aos lugares em que tratam, e as mercadorias que trazem, e quantas naus deles vem cada ano, e pelas feições de suas naus, e se tornam no ano em que vêem, e se têem feitores ou casas em Malaca, ou em outra alguma terra, e se são mercadores ricos, e se são homens fracos, se guerreiros, e se têem armas ou artilharia, e que vestidos trazem, e se grandes homens de corpos, e toda a outra informação deles, e se são cristãos, se gentios, ou se é grande terra a sua, e se têem mais de um rei entre eles, e se vivem entre eles mouros ou outra alguma gente que não viva na sua lei ou crença, e se não são cristãos, em que crêem, ou a que adoram, e que costumes guardam, e para que parte se estende sua terra, e com quem confinam».
Nestas pormenorizadas instruções reais estava a iniciativa, o ímpeto para os primeiros contactos com a China. Diogo Lopes de Sequeira viajou para o Oriente em 1508, chegando a Malaca no ano seguinte; mas não conseguiu obter as informações pedidas e voltou a Portugal. Em 1511, a conquista de Malaca por Afonso de Albuquerque proporcionou o estabelecimento de contactos entre a sua armada e os juncos chineses ancorados no porto. Os contactos foram favoráveis e Albuquerque pôde escrever a D. Manuel que «os Chins servidores são de Vossa Alteza e nossos amigos»
Transparece nesta afirmação o mesmo intuito de dominação que estava nas entrelinhas do Regimento de Almeirim. D. Manuel certamente considerava a possibilidade de «conquista» da China ou parte dela, e essa intenção, ainda que não expressa, subsistiu até ao termo desta fase. Anos mais tarde, alguns prisioneiros portugueses arquitectavam ainda planos de tomada militar de cidades e províncias. Coube a Jorge Alvares, escrivão da Feitoria de Malaca, a histórica missão de ser o primeiro português a pisar terras chinesas. Em finais de 1513, aportou à ilha de Tunmen, o Tamão das nossas crónicas. Ali deixou um padrão com as armas de Portugal.
As viagens à China continuaram depois: Rafael Prestrelo, seu irmão Bartolomeu, Fernão Peres de Andrade, Jorge Mascarenhas e outros. Eram os pioneiros, na sua maioria portugueses. Fizeram a «veniaga», aprofundaram os contactos e conhecimentos com o mundo chinês. Chegava o momento de enviar uma embaixada ao Imperador, devidamente credenciada com cartas do Rei de Portugal. Tal incumbência recaiu em Tomé Pires, o primeiro embaixador de Portugal que foi à China. Esta missão vem a redundar em fracasso, em parte por culpa dos portugueses, em parte por pouca sorte no encadear dos acontecimentos. Não se sabe muito sobre Tomé Pires. Figura modesta, como lhe chama Armando Cortesão, filho do boticário de D. João lI, e seguindo o mesmo ofício do pai, andaria pelos quarenta anos quando partiu para a índia em 1511. Em Malaca, onde estava no ano seguinte, foi «escrivão da feitoria, contador e veador das drogarias». Deixou-nos a Suma Oriental, o mais antigo relato português do Oriente. Diz-nos Gaspar Correia, nas Lendas da India, que o Governador-Geral Lapa Soares de Albergaria, em 1516, «despachou Fernão Peres de Andrade para a China, como vinha ordenado; e mandou com ele um Tomé Pires, filho do boticário de el Rey dom João, que era muito de sua amizade, e por ele ser homem muito prudente, e muito curioso de saber todas as coisas da India». Fernão Peres de Andrade fora enviado por D. Manuel como Capitão-Mor de uma armada que da índia seguiria para a China, levando lá um embaixador, que o Governador Soares de Albergaria designou na pessoa de Tomé Pires. Chegaram a Cantão em 1517, e o embaixador, acompanhado de cinco portugueses, um persa lusitanizado, doze moços e cinco intérpretes, ficou em terra, em casas fornecidas pelas autoridades chinesas. Ali permaneceram mais de 15 meses, aguardando autorização para se dirigirem à Corte. Fernão Peres de Andrade, deixada a embaixada instalada em terra e feitas as habituais trocas comerciais, fez uma proclamação pública antes de partir, convidando os chineses que tivessem queixa de qualquer português a se lhe dirigirem, para desagravo. Tal provocou o melhor dos efeitos na população e autoridades chinesas. Tomé Pires e a comitiva tiveram autorização em 1520 para seguirem para a Corte, que nessa altura estava em Nanquim. Aí, lê-se num documento, «vimos o rei em pessoa, que andava folgando, [ ... ], nos fez honra e folgou de nos ver, e jogou com Tomé Pires às távolas por vezes estando nós ao presente; assim nos mandou banquetear com todos os presentes».
Este harmonioso estado de coisas estava a chegar ao seu termo. A actuação menos louvável de alguns portugueses e certos acontecimentos infelizes iam lançar as relações luso-sínicas na sua fase mais conturbada e violenta. (continua)
João de Deus Ramos in IDN - Revista Nação e Defesa; Ano XV; Nº 53 Janeiro-Março 1990

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