terça-feira, 30 de outubro de 2018

“Descrição da Cidade do Nome de Deos da China” (1635) - Fortificações

Na continuação do post anterior, junto publico alguns dados biográficos sobre António Bocarro. Nasceu em 1594 e, depois de seguir estudos no colégio jesuíta de Santo Antão, embarcou para a Índia em 1622. Em Cochim teve problemas com a Inquisição, em virtude das suas origens judaicas, mas acabou por beneficiar da protecção de D. Miguel de Noronha, conde de Linhares, que tomou posse do governo do Estado da Índia em 1629 e que pouco depois o nomeou para o cargo de "cronista e guarda-mor" da Torre do Tombo de Goa. No exercício das suas funções, Bocarro preparou a "Década 13", extensa crónica dos feitos portugueses no Oriente entre 1612 e 1617, que pretendia continuar as obras de João de Barros e de Diogo do Couto, mas que permaneceu manuscrita na época. Além disso, redigiu também o "Livro das Plantas de Todas as Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental", onde se faz um levantamento exaustivo das possessões portuguesas no Oriente. Bocarro teve nesta obra a colaboração de Pedro Barreto de Resende, secretário do conde de Linhares, que se encarregou de elaborar o conjunto de desenhos que ilustram o livro.
Regressemos então à descrição das fortalezas de Macau feita por António Bocarro.
Forte de Sanctiaguo
No tocante às fortificações, tem esta cidade logo na entrada da barra hum forte, que chamão o forte de S. Thiago, que tem cento e sincoenta paços de comprido e sincoenta e sinco de largo, com que faz hũa fermoza plataforma, que fica alevantada do mar sinco braças, com hum muro fundado em vinte e oito palmos de largo e acabado em dezacete; e esta dita altura he ate os parapeitos, que levantão so três palmos da dita plataforma, com que não podem guardar a gente nem artelharia, fazendo conta de lhe porem cestões na occazião de brigua. Está no meyo desta praça hũa cisterna, aberta no concavo da rocha, capas de tres mil pipas de aguoa, de que tem a mayor parte. As cazas que lhe ficão nas costas, pella banda de terra, são bastantes pera alojar hum capitão com secenta homens e, aqui, por baixo do chão, estão cazas de monições e mantimentos. Na entrada que tem pella banda da varela está hũa caza de quatro aguoas, grande e fermoza. E tem esta praça outra que lhe fica por cima, peguado com ella, a que se tolhe por quinze degraos, onde também está artelharia, e numa e noutra he groça, e no andar de cima estão as ditas cazas de gazalhado pera capitão e soldados. Deste forte, que está
na praya, fica lançada hũa cortina de muro ao alto do monte, que acaba em hũa caza, onde, quando aqui vivia o capitão-geral, fazia corpo de guarda. (...)

Baluarte de Nossa Senhora do Bom Parto
O outro baluarte he de Nossa Senhora do Bom Parto, hum baluarte pequeno, em forma de triangulo, capas de jugar dez ou doze peças de artelharia.  (...)
Baluarte de Nossa Senhora da Penha de França
Em Nossa Senhora da Penha de França, que fica num monte superior a este, está tambem feito hum baluarte pequeno, onde estão dous sagres de metal, que tira cada hum com bala de sete libras de ferro. (...)
Baluarte de Sam Francisco
O baluarte de Sam Francisco, que está em forma oval, tem seis peças de metal […] Ao pe deste baluarte de Sam Francisco está hũa plataforma onde está hũa culebrina, que tira trinta e sinco libras de pilouro de ferro, a mayor peça que há nesta cidade. (...) Na praya grande está hũa plataforma, que tem hum terço de canhão de metal, que tira bala de dezoito libras de ferro. (...)
Baluarte de Nossa Senhora da Guia
O monte de Nossa Senhora da Guia he o mais alto que há nesta cidade, por cuja cauza se fas no cume delle hum baluarte, que tem sinco peças. (...) Estão em cima neste monte cazas pera se poder alojar hũa companhia de soldados e também cisterna de aguoa mas, como fica cavaleiro ao forte de Sam Paullo, tem-se por milhor arraza-lo, como se pos ja em preço com os chinas, que se obrigão a o fazer por sete mil taeis. (...)
Forte de Sam Paullo
A força de mais concideração e importancia que ha nesta cidade he a de Sam Paullo, vivenda dos capitães-gerais, chamada por outro nome a Madre de Deos,'que he hum monte natural, eminente e cavaleiro a toda a cidade onde, no cume delle, está feito hum muro, começado no alicerce em vinte palmos de largura, com pedra marmor, ate que saye em sima da terra em altura de seis palmos, donde comessa a ser só de terra e qual, misturada com algũa palha batida com batedores tam fortemente que fica fortissimo, e pera a bateria muito melhor que se fora de pedra, porque não o abala tanto (sendo que fica tão dura a parede desta terra e qual, como se fazem todas as cazas nesta cidade, que, pera lhe abrirem as janelas despois de feitas, o fazem com muitos picões de ferro, com grande força e trabalho). Vão os ditos muros estreitando, pella medida de seu escarpe, ate ficarem em quinze palmos de groçura em sima, no andaimo dos parapeitos.
A altura deste muro he de sincoenta palmos, que he o mesmo que sinco braças. Está feito o dito forte em quadro perfeitamente, ficando-lhe em cima hũa praça de cem paços de cada lado, e tantos tem de comprimento cada lanço de muro, que vão a fazer nos quatro cantos quatro baluartes em forma de espigão como da planta se vê. Fica mais em cima, no meyo da dita praça, a que sercão quatro renques de cazas, hũas em que morão os Gerais e as tres pera os soldados, hũa torre cavaleira de tres sobrados, que em cada hum tem artelharia, em a qual e nos ditos quatro baluartes estão repartidas dezoito peças de artelharia de metal, toda groça. (...)
Tem este forte à porta, da banda de dentro, hum corpo de guarda. E por hũa e outra banda se sobe ao monte, que fica igual com o muro, e, no concavo delle, estão abertas cazas de munições, que tem bastantes pera qualquer guerra (mas não pera hum serco de mais de dous annos, a respeito da muita polvora que gasta esta artelharia groça, posto que podem ter materiais de que a vão fazendo, pellos muitos que há na terra). (...)
De mantimentos não he tão provida esta cidade, com aver na terra dentro muitos e bons e baratos, porque, como os esperamos da mão dos chinas, em tendo qualquer sentimento de nós logo no-los tolhem, sem terem aquelles moradores modo pera os irem buscar a outra parte, avendo-os em Cochimchina, que está de Machao cem legoas ao sudueste, e tambem algum nas muitas ilhas que sercão a pininsula onde está a cidade, de que as mais são abitadas, porem o que tem he so gado, porquo, galinhas e marrequas. (...)
Os muros que tem esta cidade estavão quazy acabados por Dom Francisco Mascarenhas, o primeiro capitão-geral que teve e que lhe fez as mais destas obras, porem os chinas, como são tão desconfiados, fizerão derrubar grão parte delles, dos que estão pera a banda da terra, que hião correndo do dito forte de Sam Paullo, parecendo-lhes que contra elles he que se fazião; e assy ficarão só as que correm em frente do mar e da banda do poente e hũa tranqueira na praya de Cassilhas, onde dezembarcou o inimigo quando cometeo esta cidade. A altura destes muros he de duas braças ate os parapeitos e a largura fica sendo nelles de oito palmos, advertindo que, como o chão por onde vay correndo não he todo igual senão em partes dece e sobe, tambem assy fica sendo o muro, hora mais alto ora mais menos, pera ficar por sima correndo todo ao nivel. He feito da mesma materia que temos dito, de terra e qual entresachada algũa palha, e tudo muito acalcado, com que são muito fortes. Na plataforma que tem na praya grande está hum terço de canhão de dezoito libras e, noutros dous baluartes, hum chamado Sam Pedro, dous sagres cada hum, de bala de sete libras e, noutro chamado Sam João, hum terço de canhão de dezoito libras e hũa meya culebrina bastarda de oito, tudo pilouros de ferro. (...)
Em toda a dita artelharia referida tem mais quatro trabucos de metal de vinte e sinco libras cada hum, tres peças de ferro de sete libras, sinco falcões de bronze, tres berços de bronze, dous falcões de ferro, hum trabuco de ferro, que estão pera se porem onde for necessario. Ha na dita cidade de Machao setenta e tres peças de artelharia (afora muitas de particulares e de Sua Magestade) de ferro, que está feita. (...)
Porque tem esta terra hũa fundição das milhores que ha no mundo, assy de bronze, que antigamente tinha, como de ferro, que o Conde de Linhares Vizo-Rey lhe mandou fazer, onde se está sempre fundindo artelharia pera todo este Estado, em preço muy acomodado, que he o de que tem mais necessidade, donde todo elle se provera, a estar dezempedido o estreito de Sincapur, que continuamente nas monções está sercado dos olandezes, como atrásfica dito.
Toda a dita artelharia que tem esta cidade e obras de muros e fortes fez ella à sua custa, sem a Fazenda Real entrar nisso com couza algũa, em tempo que a viagem de Japão corria quazy por sua conta e particularmente os dereitos que chamavão o caldeirão, que são oje a oito por cento de todas as fazendas que vão pera Japão, e antiguamente erão a tres e a quatro, e ainda assy lhe rendião muito. ”

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