quarta-feira, 6 de junho de 2018

O 'Tai Fong' de 1874


No final do século XIX o brigue português Concórdia, com capacidade para 226 toneladas, era presença assídua no porto de Macau fazendo transporte de passageiros e carga para Goa e Malaca.
No Boletim do Governo do Estado da Índia, de 1876, pode ler-se: "Administração geral dos correios, 8 de abril de 1876  O administrador geral, M. J, da Costa Campos. As malas para Macau, Singapura e Pinang pelo brigue Concordia fechar-se-hão nesta repartição no dia 19 do corrente às 3 horas da tarde".
Como era Macau nessa época?
Recorro ao "Macau Factos e Lendas" de Luís Gonzaga Gomes para responder...
"Corria, suavemente, o Outono, em Macau, no ano de 1872 (...) Vivia-se assim, despreocupadamente, pensando cada um em divertir-se da melhor forma que pudesse, sem precisar de pensar no dia de amanhã, pois o próspero negócio da emigração dava para que toda a gente andasse ocupada e passasse os dias sem problemas económicos que a atribulassem. Surtos no porto, viam-se três barcos de guerra nacionais, a corveta a vapor «Duque de Palmela», a escuna de guerra «Príncipe Carlos» e o vapor de guerra «Camões», além dos navios mercantes como a galera «Viajante» do comando de Francisco Jerónimo de Mendonça; a barca «Cecília» comandada por H. Mesquita e o brigue «Concórdia». Naves doutras nações demandavam também o nosso porto, como o vapor italiano «Glensannox», o vapor espanhol «Buenaventura», que sairia no dia 30, com destino a Havana, levando a bordo 84 colonos chineses, a galera da mesma nacionalidade «Alaveza», as barcas francesas «Blanche Marie» e «Veloce», os brigues «Maggie» e «Water Lily» e a galera «Star of China», que navegavam sob bandeira inglesa, a barca da confederação germânica «Vidal» e os vapores de guerra chineses «An-Lan», «Chien-Jui» e «Ngan-Tien» (...) As disponibilidades que abarrotavam os cofres do tesouro público foram, no entanto, bem aproveitadas, pelo inteligente governador, Visconde de S. Januário, de nome, Januário Correia de Almeida, bacharel formado em Matemática, que chegara a Macau, com o posto de capitão do Estado-maior, tendo exercido, anteriormente, o cargo de governador geral da Índia. (...)"
Até que em Setembro de 1874 um violento tufão atingiu Macau... O Concórdia foi uma das 'vítimas'...
Sugestão de leitura: O Maior Tufão de Macau, de Pedro Fragoso de Matos, Editorial Minerva, 1985


No livro "O Caminho do Oriente", da autoria de Jaime do Inso, editado em 1932, é assim relatada a passagem do tufão de 1874 por Macau...
Na fortaleza do Monte, e na Guia, tinha-se içado o último dos sinais de tufão, o peior, o mais terrível, constituído por uma sinistra cruz negra, que significa que o tufão está prestes a passar por cima de nós.
Ao mesmo tempo, ouviram-se os três tiros de prevenção, lúgubres, espaçados, ecoando pela cidade. Havia muito que as últimas lorchas tinham vindo acolher-se, como gaívotas de asas abertas, ao abrigo do porto interior, e que as pobres tankareiras fugiram aterradas ao grito de «Tai-Fong!» - grande vento! - puxando nervosas ao «Liu-Liu» em busca de uma doca, um recanto, onde pudessem aguardar com mais esperança a fúria da destruição.

A população marítima de Macau é importante, contando mais de cincoenta mil habitantes que, na maior parte, não têm outra habitação além dos seus barcos, alguns dos quais uns pobres esquifes, os «tankás» onde, num prodígio de arrumação, vive uma família completa - mãe, pai e filhos - com a sua cosinha, as suas esteiras, o seu altar.
Vem um tufão, e os pobresitos, que são aos centos, já sabem que alguns têm de ser sacrificados, pois que só por milagre escaparão todos àquela roleta da morte. A China, até no furor das tempestades manifesta o seu cunho inconfundível e aterrador. Um tufão, é qualquer coisa de estupendo, de monstruoso, a desafiar a estabilidade do mundo.
Desaparece a noção de segurança, e toda a Natureza se reveste de uma maldade tétrica e tão profunda que, ao pé dela, a tristeza que, mais ou menos, sempre paira no Oriente, chega a parecer uma alegria de invejar!
Com dias de antecedência, o terrível fenómeno meteorológico que, em geral, se forma muito ao largo, no Pacífico, vai dando sinal de si, por várias formas, ainda a centenares de milhas de distância. A temperatura subindo e que asfixia, a cor do céu em fogo ao pôr do sol, a convergência das nuvens altas, ou cirros, em forma de penas - os «rabos de galo» - a pressão atmosférica cujas perturbações nas marés se vão acentuando à medida que o tufão avança, a altura das águas e, até, o aparecimento do chamado «bicho tufão» - tudo constitui outros tantos sinais percursores da passagem de tão indesejável fenómeno.
Além disso, a atmosfera, e todo o ambiente, revestem um tal aspecto de quietação sufocante, como que uma pausa ameaçadora da convulsão que se prepara, que o tufão, por assim dizer, se pressente num mal estar que nos aflige.

Içado o último dos sinais, e mesmo antes disso, tomam-se precauções especiais, tanto em terra como no mar.
Efeitos do tufão de 1874 na zona da Praia Grande

Portas e janelas são trancadas para evitar que o vento as abra, o que poderia acarretar sérios prejuísos como, por exemplo, fazer saltar os telhados, e chegam a apagar-se todos os fogos, pelo perigo de incêndios a que ninguém poderia acudir. A vida paralisa, as ruas ficam desertas à espera que o cataclismo passe e, para se fazer idéia da violência com o que o vento sopra, basta citar o facto sucedido uma vez, quando, tendo-se avariado as linhas telefónicas, foi preciso mandar um homem ao Monte, para onde teve de ir subindo de gatas, e onde chegou quási nu, porque o vento lhe tinha arrancado o fato aos pedaços!
No mar, paira sempre uma incerteza, - apesar dos cuidados, das amarras reforçadas e dos abrigos que se procuram - porque os golpes do tufão são traiçoeiros e difíceis de parar. Com a antecedência possível, arriam-se os mastaréus, ferram-se os toldos, etc., e tudo se fecha e amarra, ficando o navio preparado para receber um dilúvio. As máquinas prontas, um oficial - quando não é o Comandante na ponte, e tudo a postos como se fosse a navegar.
A passagem de um tufão que vai sendo assinalado dia a dia, e até hora a hora, pelos observatórios do mar da China, trás sempre uma perturbação considerável em todos os pontos por onde passa, e que é acompanhada de prejuísos de toda a sorte, inclusive nas vidas. Compreende-se pois, como a época dos tufões na China, de Junho a Outubro, não encontre paralelo nas nossas estações, e imprima mais um «fades» especial àquele clima, a que não faltam certos quadros duma grandiosidade tétrica.
Assim, uma vez, era em Cheong-Ma-Koc, no Rio do Oeste, e em véspera de tufão. O navio estava com os dois ferros, a meio do rio e em frente do pagode. Veio o pôr do sol e o céu tomou o aspecto mais fantástico que se possa imaginar. Não era céu, era um brazeiro, o poente a arder - uma loucura de fogo, uma fornalha incandescente, um vermelho de metal fundido ferindo a vista, desconcertando a imaginação!
Tenho visto muitos poentes lindos, emocionantes, desde os do Cabo da Boa Esperança, de reflexos típicos, nostálgicos, aos coloridos surpreendentes de Zanzibar, do Mar Vermelho, do Índico, até à delicadeza das cores do céu no Japão e à tristeza indízível de um sol de inverno na Sibéria; tenho visto no céu, maravilhosas pinturas de luz que chego a recordar com saudade, tanto elas me afectam e encantam.
Mas um pôr do sol assim, como aquele de Cheong-Ma-Koc - um quadro que tinha não sei quê de diabólico, de dantesco, línguas de fogo inverosimeis cobrindo três quartos do céu no maior incêndio imaginável, como se fosse o próprio céu a arder, irradiando cores impossíveis de reproduzir, que não há palavras que pintem, nem imaginação que possa fantasiar - um pôr de sol assim, nunca vi nem espero mais tornar a ver.

No dia seguinte, caiu a tempestade sobre aquelas terras da China, com todo o furor, e a velha Pátria, alterosa, sem que se lhe pudesse ter mão, foi garrando a pouco e pouco, e esteve em risco de ficar sepultada numa extensa várzea onde a água subiu tanto, que só restavam visíveis os últimos ramos das árvores. Com um trabalho insano para toda a guarnição, e com a ajuda das máquinas, lá se foi palmilhando mais para meio do rio, quando o vento permitiu, e sempre com um ferro no fundo. Só depois de passadas quatorze horas na ponte pude ver o navio, finalmente, em segurança, se bem que já muito a montante do pagode.


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