sábado, 17 de fevereiro de 2018

O Ano Novo chinês na década de 1950

“Por entre o estralejar ruidoso e constante dos panchões e estalinhos, a que se junta o natural alvoroço dos dias festivos, surgiu na noite de 23 para 24 do mês de Janeiro (1.ª lua) o Novo Ano Chinês. Em Macau, onde a população china não dorme durante dois dias e duas noites, a festa, com a maioria dos estabelecimentos comerciais encerrados, é tradicionalmente rija e cheia de colorido, decorrendo num ambiente de euforia difícil de descrever.

Muita gente suspende o trabalho e, para alguns, é chegada a altura de receber o sonhado fau-hong – modesta compensação de um ano inteiro de labuta. Acertam-se as contas, pagam-se as dívidas, fazem-se compras, estreiam-se novas cabaias, visitam-se os parentes e amigos, trocam-se ofertas e os lai-si – pequenos sobrescritos vermelhos, simbólicos portadores da Felicidade, contendo alguns avos – andam de mão em mão. A todo o momento e por toda a parte, ouvem-se felicitações: – Kong-hei Fat-choi! E nesta frase usual, simples e expressiva, há um pequeno mundo de esperança e promessas. Há pelo menos, a ilusória mas sincera intenção de prognosticar auspiciosas riquezas e venturas perenes…
Embora a China tenha adoptado o calendário gregoriano desde a implantação da República, em 1911, os chineses continuam tradicionalmente a festejar o San Nin ou Ano Novo, pela contagem das luas, e daí ser, também, designado por Ano Lunar. Durante os festejos, o chinês obsequeia faustosamente os seus deuses, invocando a sua protecção; procura afugentar os espíritos malignos que povoam todas as habitações, e amedrontar os seres perniciosos que, porventura, intentem realizar os seus malefícios; e celebra o culto dos antepassados, além de prestar submissão ao chefe de família. E tudo isto realizado sob a forma de cerimónias solenes a que assistem todos os parentes, findas as quais se queimam mais panchões, se acendem pivetes e explodem os petardos, num crepitar incessante e atroador.
Depois, vem o abundante repasto, ofertado por intenção aos deuses e composto de mil e uma iguarias, que são saboreadas gulosamente e no meio do maior júbilo.
Com o advento do Novo Ano, verifica-se o regresso do ‘Deus Fogão’ – ‘o espião que tudo vê’ e que, sete dias antes, partira do seu nicho, na cozinha, a fim de, junto do ‘Soberano dos Céus’ (o Imperador Jade) relatar quanto observara, em cada casa, durante um ano inteiro. Assim, para evitar a coscuvilhice daquela divindade, cada família procura cativar as suas graças e obter a sua indulgência, ofertando-lhe bolinhos, velas e pivetes e ‘batendo-lhe cabeça’, chegando alguns a oferecer-lhe mel para adoçar os beiços, ou bebidas alcoólicas para lhe entorpecer a memória e lograr, deste modo astucioso e pueril, a omissão de algumas faltas que pesam nas suas consciências e pelas quais recebem o castigo de ‘Iôk-Uóng’ – o soberano hierárquico do ‘Deus Fogão’…
O chinês tem nesta época festiva a preocupação de vestir as melhores cabaias, calçar sapatos novos e melhorar as próprias refeições. Por outro lado, é tradicional a permuta de ofertas com parentes e amigos e ainda, a visita recíproca entre eles.
Nos pagodes e oratórios públicos, ardem pivetes, incenso e sândalo e, nesses dias, a afluência desusada dos devotos constitui um acontecimento espectacular, pelo movimento, diversidade e colorido das gentes. Ali encontramos um sortimento completo de acepipes, frutas, vinhos e carnes (ou simples punhados de arroz) votados às preclaras divindades e tendentes a aplacar as suas iras.
Cumpridas as formalidades rituais, toda a gente vem para a rua, a passear e a divertir-se ruidosamente.
Na Rua dos Mercadores e na das Estalagens, pululam os vendedores ambulantes das mais diversas e características prendas, não faltando os hon-pau, pequenos sobrescritos vermelhos, destinados a conter os lai-si e os calígrafos, vendendo os seus letreiros vermelhos de caracteres dourados com frases auspiciosas de prosperidade. Estes são colados nas paredes exteriores da habitação, nas portas e nos veículos, e as suas inscrições referem-se a votos de longa vida, mil e uma venturas, numerosa prole. Outras há que amaldiçoam os espíritos malignos. 
Uma nota pitoresca dos festejos do Novo Ano Chinês em Macau é a que se observa no Largo do Leal Senado onde a multidão se aglomera para a compra de flores e plantas. Há a convicção, entre os chineses, de que certas plantas têm o condão de atrair a Felicidade e, daí, a grande procura de determinadas espécies. Elegantes e graciosas chinesitas, vestidas a rigor nas suas cabaias estreitas e coloridas, de grandes aberturas laterais, passeiam e sorriem, por entre as bancadas floridas experimentando o odor perfumado dessas frágeis florinhas, tão frágeis e tão simples como elas.
Mas este ambiente festivo, de cor, aparato e movimento, estende-se por toda a cidade, desde as grandes avenidas aos bairros mais humildes. No Porto Interior, os juncos e tancares – embarcações que constituem residência flutuante e permanente – ostentam rubras bandeiras, e numerosos e berrantes letreiros vermelhos, com caracteres dourados. Durante três dias, toda a frota piscatória deixa a faina do mar: os barcos aproximam-se do porto e aglomeram-se ali, aos milhares. E os seus habitantes largam o labor quotidiano e vêm passar o Ano Novo à cidade. É assim o povo chinês, levando uma vida árdua, de intenso labor, procura nesta época, tirar partido desse esforço, entregando-se exclusivamente à folia, na vã quimera de melhores dias.”

Artigo da autoria de Ninélio Barreira, publicado no “Sábado Popular”, suplemento do “Diário Popular” (1942-1991), em 1957 e republicado no  livro “Ou-Mun – coisas e tipos de Macau”, edição ICM, 1994

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