quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Memória sobre a destruição dos piratas da China: 1824 e 1835


O primeiro escrito impresso de José Inácio de Andrade foi publicado em 1817, não assinado, na liberal Mnemosine Lusitana e trata do tema do que viria a ser o seu primeiro livro: "Memória sobre a destruição dos piratas da China de que era chefe Cam Pau Sai* e o desembarque dos ingleses na cidade de Macao e sua retirada", 1824.

Este livro viria a ser revisto e aumentado pelo autor, sendo novamente impresso em 1835 sob o título de "Memória dos feitos macaenses contra os piratas da China e da entrada violenta dos ingleses na cidade de Macao."  
Para se perceber o contexto destas obras importa referir o seguinte...


Em "An Historical Sketch of the Portuguese Settlements in China", de 1832, Anders Ljungstedt, negava que Portugal possuísse a soberania sobre Macau; era uma pedrada no charco e agitou consciências ao mais alto nível não só em Macau como em Portugal. Em 1835, José Inácio de Andrade escreve a "Memória sobre a Destruição dos Piratas da China e o Desembarque dos Ingleses na Cidade de Macau e Sua Retirada". Depois disso o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal mandou o seu embaixador na França, o Visconde de Santarém, aprofundar os estudos sobre o direito do estabelecimento dos portugueses em Macau resultando a obra «Memória sobre o Estabelecimento dos Portugueses em Macau» em 1852.
Excertos da "Memória" de José Inácio de Andrade:


Por morte de Afonso de Albuquerque, em 1515, succedeu-lhe no governo da India Lopo Soares de Albergaria: no principio do anno de 1517, mandou este uma esquadra de nove embarc, em 1515, succedeu-lhe no governo da India Lopo Soares de Albergaria: no principio do anno de 1517, mandou este uma esquadra de nove embarcações commandadas por Fernão Peres de Andrade, levar ao Imperador dos Chinezes o Embaixador Thomé Pires, como El-Rei D. Manoel lhe tinha ordenado.
Por motivo de grande temporal arribou a frota a Malaca, e só pôde sair daquelle porto, para estrear as quilhas portuguezas no mar da China, em Junho do mesmo anno. Já os nossos sabiam, pela amisade contrahida em Malaca, com os Chinezes, a que rumo lhe demorava Cantão: foram ás ilhas visinhas daquella cidade por onde enviaram o nosso Embaixador á côrte. Quando alli aportou o nosso Andrade, achou uma frota Chineza destinada a combater os piratas, que infestavam aquelles mares. Sendo Fernão Peres de Andrade benefico e destemido, anniquillava preversos, e attrahia qual iman os discipulos de Confucio. Largou aquelle Imperio deixando nelle as cem trombetas da fama apregoando sua magnanimidade.
Do meu arco possante
Hoje o famoso Andrade
Alvo será: seu nome triunfante
No porto surgirá da Eternidade.
Assim que largou de Cantão chegou alli Simão de Andrade, com outros: procederam de forma, que perderam, em credito, tudo quanto Fernão Peres tinha adquirido. Usaram tão grandes violencias, que os Chinezes resolveram tratalos como a piratas. Equiparam grande frota, e cercaram os portuguezes por todos os lados. Se não fôra um temporal, que abrio caminho por onde fugiram, ficariam todos prisioneiros.
Depois de tal desar das armas e da honra portugueza, chegou alli Afonso Martins de Mello, ignorando o que se tinha passado. Assim que os mandarins o descobriram reuniram a sua frota para atacalo. Martins de Mello, dizia-lhe, que ia levar paz e não guerra; mas estes só lhe respondiam por bocas de fogo. Travou-se o combate; os nossos succumbiram. Assim que Martins de Mello vio perdidos todos os recursos, cortou a linha inimiga como raio abrazador, e ganhou o mar largo, deixando os Chinezes pasmados de tal audacia. Foi preciso que os portuguezes com seu valor e prudencia, fizessem esquecer aos Chinezes a memoria do immoral Simão, para serem outra vez recebidos em seus portos.
Recuperada a boa fé entre as duas nações obtiveram os portuguezes, em recompensa de serviços prestados ao Imperio, o isthmo do Sul na ilha de Macáo, para levantarem casas, debaixo de certas condições; mas fizeram delle uma cidade a que deram o nome da ilha.
Foi no anno de 1557, que o Imperador da China concedeu aos portuguezes aforarem aquelle isthmo em premio de terem anniquilado a esquadra do pirata Chang-Silau.
Em 1584 prometteram os macaenses obediencia a Filippe II, porém a bandeira portugueza tremulou sempre nas fortalezas de Macáo. Em 1586 recebeu Macáo o titulo de cidade do nome de Deus na China, e todas as liberdades e preeminencias, que tinha a cidade de Evora, cujos foros se confirmaram em 1709. Em 1622 tendo Macáo apenas 80 portuguezes, e alguns cafres, foi atacado por 800 hollandezes: deixaram 500 mortos, e 100 prisioneiros; os restantes fugiram largando em nosso poder 8 bandeiras, armas e bagagens.Antes de fazerem o desembarque, pediram a dois navios inglezes, surtos na bahia, para ajudalos; estes não duvidaram, mas exigiam o fruto de todo o saque. Os hollandezes rejeitaram: julgaram muito excessiva a ambição dos inglezes.
De 1557 até 1625 foi Macáo governado pelos capitães de navios do Estado, que todos os annos iam de viagem ao Japão, e faziam escala naquella cidade. Com esses governadores teve prosperidade. Em 1626 foi de Goa para Macáo D. Francisco Mascaranhas para Governador com o titulo de Capitão Geral. Começou no seu governo a desintelligencia com o Senado, e a dissolução praticada pelos Governadores. Este foi grande assassino, grande roubador e forçador cruel das mulheres e filhas dos cidadãos. Levou os macaenses a tal desesperação, que o mataram, a fim de se verem livres de tão horrendo monstro.
Em 1641 chegou alli a noticia da feliz aclamação do Senhor D. João IV: os macaenses logo romperam os grilhões de Filippe, e mandaram grande donativo á capital do Rei legitimo. Em 1709 soffreram segundo Verres; Diogo de Pinho Teixeira; chegou a mandar bombardear o Senado, onde ferio e matou, por não consentir em suas prepotencias. Em 1726 chegou a Macáo o Embaixador Alexandre Metello de Sousa Menezes, mandado por El-Rei D. João V. ao Imperador da China. Os moradores daquella cidade cooperaram muito para sustentar-se o decoro nacional naquella embaixada. Em 1747 foi governar Macáo, Antonio José Telles: espantou os algozes do Imperio Chinez por suas crueldades. Levou aquelle estabelecimento aponto de perder-se.
Esta cidade celebre pela riqueza de seu trato, illustre pela fama de nossas victorias, é situada na latitude de 22 1⁄4 gráos ao Nórte do Equador, e 122.° ao Oriente de Lisboa. Seus habitantes pouco distam dos nossos periecos; motivo talvez por que o Padre Antonio Vieira disse: que a espada dos portuguezes tinha chegado, onde não alcançou a penna de Santo Agostinho. Tem de extensão a cidade pouco mais de uma legua. Do lado do Norte é defendida por grossa muralha guarnecida de fortins: e do Sul por tres fortalezas. A de S. Francisco na parte oriental da Praia Grande; a do Bom porto na ponta occidental e a de Sant-Iago que defende a entrada da barra: tem mais entre as primeiras duas, o forte de S. Pedro. No centro a fortaleza do monte domina toda a cidade. Além destas fortalezas tem outra sobre o monte da Sr.a da Guia, fora dos muros da cidade. As casas são bem edificadas, mas as ruas desiguaes. O porto é bom: podem entrar nelle navios em lastro de oitocentas tonelladas. Tambem podem surgir ao largo náos de 74. A povoação é de 20 mil individuos, a maior parte Chinezes.

O Governo é o Senado composto de dois Juizes ordinarios, tres Vereadores, um Procurador, e um Escrivão. O Governador militar ou Capitão Geral, e o Ouvidor, são chamados ao Senado, quando ha negocios politicos, ou de fazenda. Neste caso preside no Senado o Capitão Geral, e tem voto de qualidade. A tudo o que é relativo ao governo municipal preside o Vereador do mez.
Os macaenses são tão zelozos das suas liberdades, que até na meza das sessões do Governo tiraram ao Presidente a regalia de ficar isolado no extremo della. Sendo nove os membros, collocaram a meza dentro de uma tribuna de modo, que ficam tres de cada lado; a frente é livre para entrar e sair.
Sobre a meza descança um extremo da vara da Justiça, e o outro fica encostado na parede por cima da cabeça do Ministro: um delles (Lazaro da Silva Ferreira) assombrando-se com ella tocou-lhe de proposito para a fazer cair, e mandou-a tirar, dizendo lhe ferira a cabeça. Os Senadores mandaram por-lhe um gancho no extremo, e uma argola na parede para segurar assim a insignia da Justiça. Outro dia o Ministro ao entrar tocou-lhe para caindo lançala fora: ficou surpreso ao ver, que estava segura. O Vereador do mez tirou-o do embaraço dizendo: -Tributamos tão grande respeito a nossos maiores, que não podemos prescindir deste seu costume; e presamos tanto a V. S.a, que para não o ferir a vara da Justiça mandamo-la segurar.
Ha um Bispo, e um Batalhão de naturaes de Goa, commandados por Officiaes macaenses; guarnece as fortalezas, e faz as rondas da cidade. Seus rendimentos são os direitos da Alfandega.
As minhas viagens á China deram-me occasião para conhecer os descendentes dos honrados portuguezes, que no tempo do nosso captiveiro debaixo do pezado grilhão dos Filippes tiverão a constancia e valor de conservar illesos os foros nacionaes naquelle canto do mundo. Ainda que logravam a amizade dos Chinezes, só tinham seus braços para se defenderem das nações da Europa, que alli foram atacalos. A historia diz pouco ácerca dos grandes feitos macaenses daquella época.Apenas dessas grandes acções ha hoje pintadas algumas mais notaveis na Sé e Senado de Macáo. Tudo o mais se tem perdido com os heróes, que tão dignos eram de memoria eterna.
Em 1808 foram os macaenses atacados por tal forma, que a não terem herdado o valor de seus maiores, de certo succumbiriam. Fui testimunha de feitos mui gloriosos. Os portuguezes nesta época mostraram-se grandes nas armas, e na politica; nas armas pelo valor com que tomaram a grande esquadra de Campau-sai, na politica, pelo bem que se houveram com os Chinezes e Inglezes. Salvaram Macáo de nadar em sangue; acreditaram-se com os primeiros; e foram uteis aos segundos. Deixarei tão nobres acções no esquecimento á maneira de nossos maiores? Não: farei diligencia para as transmittir á posteridade. Se não forem uteis aos presentes, se-lo-hão por certo aos vindouros. Não ha cousa mais capaz de fortalecer nossas almas, do que as proezas de nossos avós. Julgo de obrigação referilas a nossos nétos.
Macáo é monumento precioso da gloria portugueza. Fernão Peres de Andrade, foi quem primeiro immortalisou os portuguezes naquella parte do mundo. Ver-se-ha firmado pela mão dos Chinezes, que ainda temos grande consideração naquelle imperio.
Contendo esta memoria dois objectos differentes, julguei a proposito lançalos em separado; ainda que um principia antes e acaba depois do outro. Pegaram os macaenses ás mãos com os piratas em 1805: A esquadra ingleza aportou em Macáo a 18 de Setembro de 1808, e saiu a 10 de Dezembro do mesmo anno. O Tratado entre o Governo Chinez e o Macaense, para a completa derrota da esquadra de Cam-pau-sai, foi assignado em 23 de Novembro de 1809, e concluido tão importante negocio em Abril de 1810. Para o leitor vêr sem custo as grandes difficuldades, que em Macáo se venceram, dividirei, esta memoria em duas partes. Tractarei na primeira da extincção dos piratas. Cousas ha nesta parte, que se fossem praticadas em tempos mais tenebrosos, seriam tidas por milagres, sendo só o esforço de almas valorosas que mandaram seus braços com a penna e espada obrar taes prodigios. Na segunda fallarei da invasão dos inglezes em Macáo, da sua e nossa conducta, assim como da politica Chineza, e do final resultado. (...)
Depois que no seculo XVI os piratas foram destruidos, tentaram formar novo partido; e pouco a pouco engrossaram seu numero e força de modo, que em 1805 estavam senhores de grande esquadra, bem guarnecida de artilheria, e com perto de quarenta mil homens de tripulação. Tendo morrido o Chefe dos piratas ficou sua mulher, não só herdeira do posto, mas tambem da sua audacia no exercicio da piratagem. Assim que tomou posse do commando de tão grande poderio, dividio-o em duas esquadras, e deu o commando dellas a dois parentes do marido, que mais se tinham acreditado debaixo das suas ordens. A primeira e mais possante coube ao celebre Apócha, que depois se chamou Cam-pau-sai, e onde sempre residio a viuva. Apau-tai foi commandar a segunda, composta de 130 embarcações, e com bandeira preta. Com tudo o magnanimo Arriaga, a quem nada parecia impossivel decidio o Governo macaense a tratar com o de Cantão, e fez-se a convenção seguinte:
O Governo das duas provincias de Cantão e Quang-si, e o de Macáo, igualmente convencidos da precisão, que tem de pôr fim ás invasões dos piratas (os quaes sem temor infestam os mares, que cercam estas duas cidades) de restituirem a publica tranquillidade, e as relações commerciaes, formarão uma guarda costa, combinando a força dos dois governos: para esse fim nomearam os seus plenipotenciarios: Cantão, os mandarins de Nam-hay, Shon-key-chi, de Hiang-sam, Pom, e o da Caza branca, Chu: Macáo ao Conselheiro Arriaga, e ao Procurador do Senado, José Joaquim de Barros; os quaes depois de terem respectivamente communicado os seus plenos poderes, e discutido a materia, concluiram e ajustaram os artigos seguintes:
1.º Haverá uma guarda costa, de seis navios portuguezes, combinada com uma esquadra imperial; cruzará seis mezes, desde a bocca do tygre á cidade de Macáo, a fim de embaraçar que os piratas não entrem nos canaes, que até agora tem infestado.
2.º O Governo chinez obriga-se a contribuir com oitenta mil taés para ajudar o armamento dos navios portuguezes.
3.º O Governo de Macáo fará logo cruzar os dois navios, que tem armados, e apromptará com brevidade os quatro restantes.
4.º Ambos os Governos devem ajudar-se em tudo o que for a bem do cruzeiro, o qual não se estenderá além dos pontos determinados.
5.º As presas seram repartidas entre os dois Governos.
6.º Quando a expedição finalisar serão restituidos aos macaenses os seus antigos privilegios.
7.º As partes contractantes obrigam-se a cumprir tudo quanto se estipulou nos mencionados artigos sem alterar cousa alguma, e a consideralos como ratificados em virtude de seus plenos poderes.
Macáo 23 de Novembro de 1809. (...)


* Este pirata surge, consoante as fontes, com as mais variados nomes: Kam Pao Sai, Cang-Pau-Sai, Chang-Pau Sai, Cam-Pao-Tsai, Cam-Po-Sai, Apo-Sai, Apochai, Cam-Pau- Sai, Cam-Apó-Chá, etc...
Na edição de 1835 Inácio de Andrade reproduz a resposta do Senado ao envio da primeira edição:
“O Senado recebeo com satisfação a vossa memoria, por ver nella immortalisados os feitos macaenses, na estincção dos piratas, que infestavam o nosso arquipelago. Em verdade vós ornasteis o vosso e o nosso quadro com as flores e bellesas de Camões e dos Andrades. O Senado não perderá occasião, em que vos possa ser util em reconhecimento de tão precioso presente. Cartorio do Senado, 16 de Novembro de 1826″.

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