sábado, 24 de março de 2018

"O Jogo" por Ninélio Barreira




Hotel Central
“De entre as muitas festividades que se celebram em Macau, uma das mais curiosas e que desperta a atenção geral, nela participando chineses e europeus é, sem dúvida, a do Ano Novo, designada por Sân-Nin em chinês. As festas do Ano Novo são móveis, uma vez que a tradição manda respeitar o ano lunar, a despeito de a China ter adoptado o calendário gregoriano, após a implantação da República em 1911.
Durante três dias Macau veste trajo de gala. Grandes arcos são erguidos nas ruas principais por onde tremulam bandeiras e largas faixas vermelhas com inscrições de grandes caracteres dourados. Os panchões estalam em longas fitas, enchendo o ar de fumo e cheiro a pólvora. Toda a gente vem para a rua usando roupas novas e fazem-se muitas compras que se trocam entre si, como prendas. E ninguém deixa de adquirir os lai-si – rectângulos de papel vermelho, onde se inscrevem saudações e frases auspiciosas.
Vamos apenas referir um outro aspecto que se integra nesta festividade e que diz respeito ao jogo. Note-se, todavia, que o jogo está de tal maneira enraizado nos hábitos chineses que é difícil encontrar outro povo que se assemelhe nesse aspecto. Desde o Mhá-jong – cujo batimento das pedras sobre as mesas que se ouve ao longo de todas as horas da noite, causando aos ouvidos do europeu recém-chegado um verdadeiro martírio que lhe perturba o sono das primeiras noites – o jogo das moedas que se lançam contra a parede, o das apostas dos caroços das tangerinas (muito da preferência dos vendedores e dos cules), o jogo das lotarias Pak-Kap-Piu, até dos jogos de casino – toda a gente joga, na rua, nas lojas, nos casinos e até nos templos os bonzos ocupam as suas horas de ócio… a jogar.
O chinês joga por instinto atávico; como se diz entre nós, o jogo ‘está-lhes na massa do sangue’. Dizia-me o Professor Luís Gonzaga Gomes que o jogador chinês não tem idade: jogam as crianças, as mulheres, os jovens e os velhos. Só não jogam as criancinhas de peito porque lhes falta o discernimento. Mas é durante aqueles dias do Ano Novo que o jogo nos casinos é permitido a toda a gente sem distinção.
Ao tempo, existiam apenas dois locais onde se praticava o jogo: o Hotel Central e uma casa na Rua da Felicidade. A elas, porém, não tinham acesso os magistrados, militares e para-militares e os funcionários públicos. Eram interditas também a pessoas de baixa condição social, como pescadores, vendedores ambulantes e mendigos. Mas nos dias festivos do Ano Novo tal interdição era suspensa. E para corresponder à invasão prevista, em vez das duas ou três salas habituais, armavam-se mesas de jogo em quase todos os andares do Hotel Central, ao tempo o mais alto edifício de Macau, com todos os seus pisos.
Gente vinda de toda a parte, das ilhas, da frota piscatória, de Hong Kong e até da China, da qual, aliás, nos separa apenas a Porta do Cerco, no istmo que liga Macau ao continente – dirigia-se para aquele Hotel e, durante três dias, muita gente havia que dali não arredava pé, se não para comer ou dormitar. O Hotel era, assim, autenticamente invadido por uma população ávida e sequiosa e não existia uma sala, uma mesa de jogo, que não estivesse permanentemente repleta.
“Vários tipos de jogo são ali praticados, mas o mais procurado, o mais popular e talvez o mais emotivo é, sem dúvida, o glu-glu. Vejamos em que consiste e do que se compõe.
Uma mesa grande, de cor esverdeada, em cujo tampo estão inscritos números que vão de 3 a 18. Um grosso traço divide os algarismos de 3 a 10 e de 11 a 18. Estas duas zonas são, respectivamente, o Siu (pequeno) e o Tai (grande). Uma campânula, três dados e uma campainha eléctrica. O processo mais simples de jogar (pois há muitos outros) consiste em apostar no ‘grande’ e no ‘pequeno’. Lançados os dados, a soma obtida decide a sorte. Quem apostou na parte que saiu, recebe a dobrar. Quem quiser pode arriscar exactamente um número, o que lhe dá menos probabilidades, como é óbvio, mas muito mais dinheiro… se acertar. Cada um dos dígitos tem prémios diferentes. Assim, se apostar no 3, no 7 ou no 18 – e isto são apenas exemplos, pois não tenho presente os prémios que correspondem a cada um deles isoladamente – receberá um valor bastante superior que, nalguns casos, vai até ao décuplo! Há ainda combinações de cores e uma determinada combinação que, quando sai, tudo o que está sobre a mesa fica para a ‘casa’.

Um outro jogo que atrai igualmente os curiosos e muitos jogadores e que se resume a um monte de botões, uma campânula e uma vareta de bambu é o fan-tân. Os jogadores dispõem-se à roda do banqueiro ou vão para o andar superior, cujo sobrado é aberto em cercadura onde há um gradeamento de madeira, em forma de balcão. Daqui fazem as suas apostas, lançando-as num cestinho preso a um cordel que sobe e desce que é manobrado por um auxiliar da banca. Feitas as apostas em 1, 2, 3 ou 4, o banqueiro destapa a campânula e munido da vareta de bambu, conta os botões, separando-os em grupos de quatro. Conforme restarem 1, 2, 3 ou 4 botões, assim se decide a sorte dos que apostaram, pagando três vezes o valor de cada aposta, aos que tiverem tido melhor golpe de vista, palpite ou sorte.”
Artigo da autoria de Ninélio Barreira publicado em 1957 no suplemento do Diário Popular; incluído no livro “Ou-Mun – coisas e tipos de Macau”, edição Instituto Cultural de Macau, 1994

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