quinta-feira, 30 de março de 2017

Tratado das Cousas da China: excertos

Já antes referi o "Tratado em que se contam muito por extenso as cousas da China com suas particularidades e assim do reino de Ormuz composto por El R. Padre Frei Gaspar da Cruz da Ordem de S. Domingos".
A obra do missionário dominicano foi a primeira monografia impressa na Europa sobre o Celeste Império. Para além de sistematizar um conjunto de notícias que haviam sido recolhidas pelos navegantes portugueses ao longo de várias décadas de intensos contactos luso-chineses, transmitia também os resultados das indagações levadas a cabo pelo autor em Cantão, por ocasião de uma breve visita efectuada àquela metrópole.
Frei Gaspar da Cruz foi um dos muitos religiosos portugueses que no século XVI passaram pelo Oriente mas foi ímpar no relato que fez das suas viagens
Em 1548 ruma à Índia com outros companheiros e estabelece residências em Goa, Chaul e Cochim; visita Ceilão e parte para Malaca, onde em 1554 funda um convento da Ordem de S. Domingos; passa depois ao Cambodja em 1555-1556 (existe lá um monumento em sua homenagem) e, através do Laos, chega à China em 1556, primeiro Lampacao (uma ilha muito perto de Macau; ver mapa holandês de 1753 abaixo) e depois Cantão, tendo depois obtido autorização dos mandarins para se deslocar a Kuangtung. Entre 1557 e 1559 viaja de novo rumo a Malaca e em 1560 integra um grupo de dominicanos com destino a Ormuz para pregar o Evangelho. Em 1564 está em Goa donde acaba por partir com destino a Lisboa.
Nos anos seguintes, aproveitando elementos colhidos durante as suas deambulações asiáticas, dedicou-se à composição de um extenso Tratado das cousas da China até que contrai a peste vindo a morrer em Setúbal em 1570.  Nesse mesmo ano seria publicado em Évora o seu Tratado pelo impressor André de Burgos.
Em 2010 esta obra foi reeditada em versão modernizada e em formato de bolso.Frei Gaspar da Cruz apresenta uma imagem extraordinariamente positiva da China e dos chineses, que, no seu modo de ver, superam todos os outros povos asiáticos "em multidão de gente, em grandeza de reino, em excelência de polícia e governo, e em abundância de possessões e riquezas".
A obra tem múltiplas informações... inclui por exemplo, o primeiro relato detalhado sobre a técnica de fabrico da cerâmica pelos chineses que remonta à dinastia Tang (618-906).
Alguns excertos:
(...)
É a China terra quase toda mui bem aproveitada, porque, como a terra seja muito povoada, a gente muito em demasia e os homens gastadores – e tratando-se muito bem no comer e beber e vestir e no demais serviço de suas casas, principalmente, que são muito comedores -, cada um trabalha de buscar vida e todos buscam diversos modos e maneiras de ganhar de comer e como sustentarem seus grandes gastos. Faz ajuda muito a isto ser a gente ociosa nesta terra muito aborrecida e mui odiosa aos demais, e quem o não trabalhar não no comerá, porque comummente não há quem dê esmola a pobre. Pelo que se acertava algum pobre de pedir esmola a algum português e o português lha dava, riam-se os chinas dele, e zombando diziam: “Para que dás esmola a este que é velhaco? Vão ganhar!”
Somente alguns chocarreiros recebem prémio, [quando] subindo-se nalgum alto ajuntam gente e põem-se a contar patranhas para que lhe[s] dêem alguma coisa. Os padres e seus sacerdotes dos seus ídolos comummente são aborrecidos e desestimados, pelos terem por gente perdida e ociosa, donde os regedores não lhe[s] perdoam, mas por qualquer leve culpa lhe[s] dão muito açoite. Pelo que açoitando uma vez um regedor, diante [de] um português, um sacerdote seu, e o português dizendo-lhe porque tratava tão mal os seus padres e os tinham em tão pouco estima, respondeu-lhe: “Estes são velhacos ociosos e perdidos”.
(...)
Foram-se um dia uns portugueses nobres mostrar em Cantão um banquete que fazia um mercador rico e honrado, o qual foi para folgar de ver. A casa em que se dava era sobradada e muito linda, com muito galantes janelas e adufas, e toda era um brinco. Estavam as mesas postas em três lanços da casa, para cada convidado uma mesa muito linda e sua cadeira dourada ou prateada, e cada mesa tinha em fronte um frontal de damasco até ao chão. Nas mesas não havia toalhas nem guardanapos, assim porque as mesas são muito lindas, como porque comem tão limpamente que não têm necessidade destas coisas. Estava a fruta posta logo na borda de cada uma das mesas, toda posta em ordem, a qual era castanhas assadas e esburgadas, e nozes limpas e [d]escascadas, e cana-de-açucar limpa e feita em talhadas, e a fruta que acima dissemos que chamam líchias, grandes e pequenas, mas eram passadas. Toda esta fruta estava posta em castelinhos bem feitos, atravessada com pauzinhos muito limpos. Pelo que todas as mesas em roda, com estes castelinhos, ficavam como ornadas. Logo após a fruta estavam todas as iguarias postas em bacios finos de porcelana, todas muito bem aparadas e mui limpamente cortadas, e tudo posto em boa ordem. E ainda que iam ordens de bacios por cima doutros, todos estavam postos polidamente, de maneira que o que estava à mesa podia comer do que quisesse sem ser necessário tirar bacio nem mudá-lo.
 E logo estavam dois pauzinhos dourados muito galantes para comer com eles metidos entre os dedos; usam deles a modo de tenazes, de maneira que nada do que está à mesa tocam com a mão. E ainda que comam uma porcelana de arroz com aqueles paus, a comem sem lhe[s] cair grão. E porque comem muito limpamente sem tocar com a mão no comer, não têm necessidade de toalhas sem de guardanapos. À mesa lhe[s] vem tudo cortado e mui bem preparado. Tinham também uma porcelana muito pequena dourada, que leva um bocado de vinho, e só para isto há servidor à mesa. Bebem tão pouco porque a cada bocado de comer há-de ir bocado de beber, e por isso é tão pequena a vasilha.
Há alguns chinas que criam unhas muito compridas, de meio palmo até palmo, as quais trazem muito limpas, e estas unhas lhe[s] servem em lugar dos paus para comer.


quarta-feira, 29 de março de 2017

A bebida do 'imperialismo'

A estreia da Coca-Cola na China deu-se em 1927 mas as vendas seriam terminadas em 1949 com a subida ao poder dos comunistas. Foi por esta altura que surgiu em Macau a Coca Cola...
Após 30 anos de interregno, em Janeiro de 1979, com o reatamento das relações diplomáticas entre a China e os Estados Unidos, chegaria a Pequim (oriundo de Hong Kong) o primeiro carregamento de 3 mil caixas com garrafas de Coca-Cola, a bebida-símbolo do imperialismo e do modo de vida do capitalismo ocidental tão rejeitado pelo poder político na China. Tendo por base um acordo assinado em Dezembro de 1978 (Mao Tse tung morrera em 1976 sendo sucedido por Deng Xiao Ping) a empresa estava autorizada a vender o produto, mas apenas a estrangeiros e restringida a certos locais como alguns hotéis em Pequim, Xangai e Guangdong. Depressa a situação iria alterar-se.
Imagens 1950/60: Largo do Senado, Rua do Campo e Largo da Companhia de Jesus
A verdade é que desde sempre ficou entre o povo chinês a sede pela bebida. A designação Coca Cola tem tradução em chinês (mandarim) por (kekou kele- 可口可乐), o equivalente a alegria deliciosa.
Não obstante as dificuldades iniciais, aos poucos a marca foi singrando no mercado chinês e em 1983 abriu a primeira fábrica na China (Guangdong). Em 1984, quando o presidente norte-americano, Ronald Reagan, visitou a China já a revista Time colocara na capa da edição de 30 de Abril uma fotografa que ficaria para a história... a de um chinês com uma garrafa da conhecida marca na mão tendo como fundo a grande muralha... Actualmente a China representa o 3º maior mercado da Coca Cola no mundo.

terça-feira, 28 de março de 2017

Limites marítimos

Neste Mapa da Divisão Administrativa da RAEM, publicado no Boletim Informativo 2016/01 da Direcção dos Serviços de Assuntos Marítimos e de Água, (ex-Capitania dos Portos de Macau) surge o limite marítimo de Macau. Trata-se de uma questão que nunca obteve consenso entre Portugal e a China e que ao longos dos séculos originou vários incidentes.
Sem que ambas as partes se entendessem quanto aos limites marítimos, no Porto Interior, por exemplo, aceitava-se como correcta a divisão das águas mais ou menos a meio do curso de água.
Na década de 1950 ocorreram vários incidentes. Num deles, um militar português que praticava vela acabou preso pelas autoridades chinesas por ter entrada em águas territoriais da RPC. Noutro caso, em Maio de 1952, soldados chineses estacionados junto à Porta do Cerco, disparam sobre um barco de pesca que tinha alegadamente violado as águas territoriais chinesas; um canhoneira chinesa que se deslocou para o local julgou estar a ser atacada por uma lancha da Polícia Marítima e Fiscal (PMF) de Macau, que navegava nas imediações, e na confusão houve uma intensa troca de tiros entre ambas as partes. A notícia correu mundo e foi até bem longe. Eis os títulos de vários jornais na época: “Firing on Macao Border Reported in Hong Kong”, no The New York Times de 23 de Maio de 1952; “Macao Incident Denied”, no The Daily Telegraph de 24 de Maio de 1952.
Voltando à ilustração... Esta surge depois de no final de 2015 o Conselho de Estado da China ter aprovado o novo mapa da divisão administrativa de Macau que determinou que o território passe a ter sob sua jurisdição 85 quilómetros quadrados de áreas marítimas.
Sugestão de leitura:
“Negociações e Acordos Luso-Chineses Sobre os Limites de Macau No Século XIX” (IIM, 2010) de António Vasconcelos de Saldanha.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Uniformes Comissariado de Polícia de Macau: 1931

No B.O. n.° 14, de 1 de Abril de 1916, publica-se a Portaria n.° 52 que autoriza a admissão dos oficiais e praças que foram recolhidos das repartições dos serviços de polícia, para, sob as ordens do Administrador do Concelho (Comissário), constituir a secção do comissariado especialmente destinada à Polícia de Segurança. 
No B.O. n.° 15, de 10 de Abril de 1920, surge o novo regulamento do Comissariado de Polícia, que insere definitivamente a Polícia de Segurança no Comissariado da Polícia, definindo as missões gerais e a estrutura de topo do Comissariado.
Em Junho de 1931 é publicado no Boletim Oficial o Plano de Uniformes do Pessoal do Comissariado de Polícia de Macau.
Era constituído - Pessoal Privativo - por Chefes, sub-chefes, guardas (1ª, 2ª e 3ª classe), Auxiliares (1ª, 2ª e 3ª classes) e Agentes da Polícia Administrativa e Investigação Criminal.
Do Pessoal Militar faziam parte Oficiais, Sargentos, Cabos e Soldados.
O tecido dominante era a sarja e a cor o azul ferrete (quase preto). Existiam diferentes tipos. Os chefes, por exemplo, tinham 5 tipos de uniforme, de acordo com a época do ano e a ocasião (instrução, passeio, formaturas ou serviço).
 Barrete, trunfa (usada pelos guardas "menores") e capacete, este último igual ao usado no exército
 Fig. 9 e 10: dólman
Capote e  talim, cinturão, polainas e botas
 Distintivos de Graduação

domingo, 26 de março de 2017

Postal com legenda errada

Postal nº 94 de uma vasta colecção editada pela Livraria Po Man Lau. Tem como título "Um trecho do Porto Interior visto da Penha", mas de facto a legenda não corresponde à imagem onde temos uma vista da baía da Praia Grande vista da Fortaleza do Monte na década de 1930/40 vendo-se a Sé, Hotel Bela Vista, Leal Senado, Igreja Sto. Agostinho e Hotel Central, a Penha, etc...
(clicar na imagem para ver em tamanho maior)

sábado, 25 de março de 2017

O clã Lou

No final do século XIX um comerciante chinês iria marcar de forma decisiva e a vários níveis a vida em Macau, tal foi a sua influência. Refiro-me a Lou Wa Sio, mais conhecido po Lou Kao, nono filho do clã Lou, originário de Xinhui, na província de Guangdong, muito perto de Macau.
No território deixou como legado uma mansão com marcas do período da dinastia Qing, na Travessa da Sé (imagem ao lado), e um dos jardins mais bonitos e mais chineses de Macau, feito à imagem e semelhança dos da cidade de Suzhou, e que acabaria por receber o nome do seu primogénito, Lou Lim Ieoc.
A mansão, com traços chineses e alguns elementos da arquitectura occidental, foi construída por volta de 1889 e era conhecida pela designação Salão do Ouro e dos Jades (Kam Yuk Tong).
Mas as marcas do legado não se ficam pelo património edificado. Lou Kao foi também um dos primeiros magnatas da indústrias do jogo.
Nos filhos vai deixar a semente da intervenção política. Lou Lim Ioc chegou a ser membro do Leal Senado e Lou Yi Ieoc (o terceiro filho) foi também um dos apoiantes da causa de Sun Yat-sen, o fundador da República na China em 1911. Em Macau Sun teve outros importantes apoios, como foi o caso do amigo Francisco Hermenegildo Fernandes e dos governadores Álvaro de Mello Machado (1910-1913) e Carlos da Maia (1914-1916).
Carlos da Maia e Lou Lim Ioc lado a lado em Macau em 1915
“É com verdadeiro prazer que venho exprimir-lhe os meus sinceros agradecimentos pela extrema bondade que testemunhou, em repetidas circunstâncias a todos os meus amigos políticos, sobretudo durante os últimos acontecimentos que tiveram lugar não longe de Macau. Não tenho palavras para vos expressar o reconhecimento profundo que dedico a tantos testemunhos de simpatia da vossa parte. Transmitindo-vos assim esses sentimentos, eu estou certo de ser o intérprete fiel de todos os republicanos chineses. Formulo ardentes votos, meu caro Governador, para que a ordem e a paz sejam rapidamente restabelecidas na China, a fim de que nós possamos, com a ajuda e o exemplo da República Portuguesa, instaurar na China os princípios e as bases de uma administração que traduza as aspirações do povo”.
Rotunda Carlos da Maia em Macau. Década 1920

sexta-feira, 24 de março de 2017

Ian Fleming e o Central hotel


"(...) 1928 when the nine-story-high Central Hotel, the largest house of gambling and self indulgence in the world, was constructed . It is a nine-story skyscraper, by far the largest building in Macao, and it is devoted solely to the human vices. It has one more original feature. The higher up the building you go, the more beautiful and expensive are the girls, the higher the stakes at the gambling-tables, and the better the music. Thus on the ground floor the honest coolie can choose a girl of his own class and gamble for pennies by lowering his bet on a fishing rod contraption through a hole in the floor on to the gaming-tables below. Those with longer pocket can progress upwards through various heavens until they reach the earthly paradise on the sixth floor. Above this are the bedrooms."
O excerto é retirado do livro de Ian Fleming (1908-1964) intitulado "Thrilling Cities" e editado pela primeira vez em 1963.
Na obra do criador de James Bond estão 13 artigos ilustrados sobre outras tantas cidades que ele visitou (seis na europa e sete no resto do mundo, incluindo Macau) publicados primeiramente no jornal Sunday Times entre 1959 e 1960.
O que o autor - que voltaria a inspirar-se em Macau para a saga de James Bond - não refere é que quando foi inaugurado, em Julho de 1928, este hotel de 9 pisos e 80 quartos chamava-se Presidente e só depois foi rebaptizado de Hotel Central. No início da década de 1940 seria restaurado passando a ter mais alguns andares. (foto ao lado). Funcionou até ao início da década de 1960, reabriu na década de 1980 mas seria sol de pouca dura. Actualmente o edifício ainda existe - fica a meio da Av. Almeida Ribeiro - tendo sido noticiado por diversas vezes que se equaciona a sua reabertura.

quinta-feira, 23 de março de 2017

Ferreira do Amaral e o jogo

Nome controverso na história de Macau, Ferreira do Amaral foi  governador entre 1846 e 1849, ano em que seria assassinado. A estátua que evocava a sua memória no território por ali esteve entre 1940 e o início da década de 1990, altura em que foi levada para Portugal, no bairro da Encarnação, Lisboa (foto abaixo).
Ferreira do Amaral seria o único a ser morto no exercício do cargo e à época teve um desempenho exemplar na perspectiva do mandato político com que chegou investido pelo governo português: afirmou a soberania nacional acabando com as alfândegas chinesas, instaladas desde 1688, e recusando de pagar o foro do chão, um tributo que datava de 1573. Será ainda sob o seu governo que as ilhas da Taipa e Coloane passam a ser ocupadas.
Odiado pelos chineses como exemplo do pior colonialismo e mais ou menos ignorado pelos portugueses, a verdade é que a história não se apaga... Do seu tempo resta ainda em Macau o nome na toponímia local e uma pedra gravada que assinala o provável local da sua morte, na zona do bairro Iao Hon, perto do templo de Lin Fong (imagem abaixo tirada na década de 1970).
Um facto que passa muitas vezes despercebido é que foi Ferreira do Amaral a dar os primeiros passos para a legalização do jogo em Macau. O primeiro regulamento (incluindo a taxação) sobre a lotaria Pacapio é de 1846/47 e o do Fantan surge em 1849.

terça-feira, 21 de março de 2017

Camilo Pessanha no 150º aniversário do seu nascimento

Neste Dia Mundial da Poesia ocorre-me o nome de Camilo Pessanha. E evocar Camilo Pessanha é falar de Macau. Este ano celebra-se o 150º aniversário do nascimento do poeta (1867-2017). Aqui no blogue exisem dezenas de posts sobre o tema. Para este escolhi uma curiosidade pouco conhecida e uma das várias iniciativas que assinalam a efeméride.
Curiosidade: 
A 19 de Março de 1913, o conservador do Registo Predial, Camilo d´Almeida Pessanha, solicitou ao governo de Macau para continuar em funções no território desistindo da promoção a Juiz de 1.ª estância alegando razões de saúde. Pessanha fora nomeado juiz da comarca em Moçambique por Decreto de 23 de Janeiro de 1913. Por decreto de 22 de Março de 1913 o governo português deferiu a pretensão de Pessanha (no que foi apoiado pelo então governador de Macau) que ficaria até aos resto dos seus dias (1926) a viver em Macau.
Iniciativa: 
a Imprensa Nacional Casa da Moeda editou uma "Agenda 2017 Camilo Pessanha 1867-2017" com coordenação de Ana Paula Laborinho e ilustrações de Carlos Marreiros.

segunda-feira, 20 de março de 2017

Foto-Legenda: aterros da Praia Grande na década 1950

Zona de aterros já consolidados na Praia Grande, no que corresponde às áreas ocupadas pelos actuais hotéis Lisboa e Grand Lisboa. Nesta época, década de 1950, os arruamentos eram recentes e iriam dar acesso sobretudo a um pequeno bairro residencial - Mata e Oliveira - que surgiria muito perto do início da rua do Campo e ao edifício do Liceu inaugurado em Outubro de 1958.
Clicar na imagem para ver em tamanho maior

domingo, 19 de março de 2017

Morreu Rui Afonso, advogado e antigo deputado (1947-2017)

Licenciado em Direito desde 1971, Rui Afonso morreu na passada sexta-feira em Lisboa com 70 anos, vítima de doença prolongada. 
Passou a residir em Macau desde 1982 onde começou por ser assessor jurídico do governo local e em 1985 fundou o escritório de advogados e notário com o seu nome.
Foi também Director dos Serviços de Administração Pública e Função Pública do Governo de Macau (1984-1985), deputado nomeado na Assembleia Legislativa de 1984 a 1997, membro do Conselho Superior de Justiça de Macau, de 1992 a 1999, foi ainda Vice-Presidente do Conselho Consultivo da Lei Básica. 
Em 2006, o português recebeu uma medalha de mérito profissional do Governo de Macau.
Para Frederico Rato, colega de profissão, enquanto deputado Rui Afonso "deu valiosa contribuição para a modernização e localização do sistema jurídico de Macau"   sendo "pioneiro na abordagem do modelo político-constitucional e jurídico-administrativo português para Macau e sua projeção no período de transição". Aidna em declarações à agência Lusa afirmou que como diretor dos SAFP, contribuiu para "pôr ordem num setor fundamental da política do estado para o território".
Jorge Neto Valente, presidente da Associação dos Advogados de Macau, sublinha que, nesta função, Afonso "modificou muita coisa, contribuiu para o rejuvenescimento da administração", e, como deputado, "contribuiu para produzir legislação que ainda hoje está em vigor". "Na Assembleia éramos colegas de bancada, mesmo ao lado. Sempre tive as melhores relações com ele, era um colega de muito bom trato. Era capaz, um jurista subtil, fino", recordou o também antigo deputado à agência Lusa.


sexta-feira, 17 de março de 2017

Anúncios no jornal A Voz de Macau: Janeiro 1932

Seis anúncios publicados no jornal a Voz de Macau - Diário da Manhã em Janeiro de 1932. Da mercearia "Aurora Portuguesa" com chouriço, linguiça, azeite, conservas e vinhos diversos, ao BNU "banco emissor das colónias" com "operações bancárias de toda a espécie", passando pelo "Paquete Directo para Lisboa" da "mala alemã Lloyd" representado em Macau pela agencia A. A. de Mello. Na verdade não era uma viagem directa para Lisboa, mas a capital portuguesa era o porto do dentino final, algo raro na época como se pode verificar pelo anúncio da empresa concorrente, a Messagerie Maritimes, cujo vapor Sphinx fará viagem também a partir de Hong Kong mas apenas até Marselha...
Destaque ainda para a "tonificante, saudável, referigente" Watsons Tonic Water que acompanhava bem com "lime juice ou gin" e para a Macao Store News que ao contrário do que o nome parece indicar, não vende livros ou jornais, mas sim "amendoas, nozes, avelãs (...), perús, carneiros, patos bravos e lagostas". 
 A Watson's foi criada em Hong Kong em 1841 ainda sob o nome de Hong Kong Dispensary.  Só a partir de 1858, com a chegada do farmacêutico britânico Alexander Skirving Watson, é que passou a usar a actual designação, A. S. Watson. Quando a empresa celebrava o centenário deu-se a invasão de Hong Kong pelas tropas japonesas o que provocou o encerramento da actividade. A reabertura ocorreria após o final da Guerra, em Setembro de 1945.
Em 1963 a empresa foi adquirida pelo Hutchison Group e ainda hoje lhe pertence.
Em Macau a marca é conhecida sobretudo pela água vendida sobre o mesmo nome e pelos supermercados Park'n'shop (1972) que chegariam a Macau no âmbito da expansão das actividades do grupo no território na segunda metade da década de 1980. Em 2016 celebrou 175 anos de actividade com mais de 12 mil lojas no mundo.

quinta-feira, 16 de março de 2017

Arquitectos (edição 163) e Francisco Figueira

Em Setembro de 1996 o jornal Arquitectos - da Associação dos Arquitectos Portugueses - dedicava pela segunda vez uma edição a Macau. Do número 163 fizeram parte artigos de Eduardo Lima soares, Francisco Caldeira Cabral, Luís Gouveia Durão, Francisco Figueira (1934-2009), Mário Duque e Maria  José de Freitas.
 
Recorro a uma edição de 2014 do Jornal Tribuna de Macau para assinalar o aniversário do nascimento do arquitecto Francisco Figueira (1934-2009) que teve um papel fundamental nos "primórdios da defesa do Património de Macau", um processo iniciado na década de 1970 e que culminou em 2005 com a UNESCO a classificar o Centro Histórico de Macau como Património da Humanidade.

Na foto gentilmente cedida por Armindo Ferreira, na altura relações públicas do Centro de Informação e Turismo (CIT) surge na Fortaleza do Monte uma delegação de sete peritos da Associação de Turismo da Ásia Pacífico (PATA), chefiada pelo coronel Adnan (2º da esquerda), uma “autoridade” na protecção do património. A convite do CIT, a comitiva veio elaborar um estudo sobre medidas para preservar o património histórico, cultural e arquitectónico de Macau. Na foto podemos ver ainda (da direita para a esq.) Armindo Ferreira, Rufino Ramos (técnico do CIT) e Francisco Figueira, das Obras Públicas.Ao longo de uma semana, os peritos visitaram os principais pontos de interesse histórico e arquitectónico e realizaram “intensas” reuniões de trabalho, muitas vezes com o “valioso ‘input’” do padre Manuel Teixeira, contou Armindo Ferreira, frisando que o relatório definiu as “principais premissas” na área patrimonial para assegurar “uma acção contínua e sustentada” com vista a “preservar a memória de Macau”. Há mais de três décadas, foram assim tomadas as primeiras medidas nesse sentido, sendo que ao longo dos anos “imensa gente” também contribuiu para que Macau conquistasse o reconhecimento da UNESCO, acrescentou.
Armindo Ferreira recorda ainda uma nota “curiosa”: já nessa altura, Francisco Figueira propunha a criação de uma zona pedestre na Praça do Leal Senado e posteriormente o fecho da Avenida Almeida Ribeiro ao trânsito. A ideia causou “tremenda celeuma”, sobretudo junto dos proprietários de espaços comerciais da zona, porque as pessoas costumavam parquear os carros quase à porta das lojas e restaurantes. A Praça apenas seria fechada ao trânsito nos anos 90, uma década após ter sido autorizada a construção do edifício residencial e silo automóvel nas traseiras do edifício do Leal Senado, por não estarem ainda previstas as zonas tampão do Património. Tal medida “amarfanhou da pior forma possível” o Leal Senado e a Praça, lamentou.
FF, primeiro da esquerda, em Janeiro de 1986, no 3º aniversário do Instituto Cultural de Macau. 
Ainda na foto, Adelina de Sá Carvalho, o comendador Alberto Dias Ferreira e Jorge Rangel.
Francisco Figueira faleceu em 2009, aos 75 anos, mas o mérito da sua obra continua a ser amplamente enaltecido. Em 1976, participou na preparação da primeira lista do inventário do património e, em 1982, assegurou para Macau o prémio “PATA – Annual Pacific Heritage Contest”, pelo projecto de conservação do conjunto do Jardim Lou Lim Ioc e casas da zona do Tap Seac. Assumiu depois as funções de primeiro chefe do Departamento do Património Cultural do Instituto Cultural, organismo que, já sob a liderança de Ung Vai Meng, recordou Francisco Figueira como “uma personalidade pioneira na preservação do património cultural”, tendo contribuído de “forma decisiva” para acções que conduziram à inscrição de Macau na Lista do Património Mundial.

quarta-feira, 15 de março de 2017

Álvaro de Melo Machado: 1883-1970


Oficial da Marinha Portuguesa - chegou à patente de comandante - Álvaro Cardoso de Melo Machado (Moçambique 1883 - Lisboa 1970) foi nomeado governador interino de Macau em Dezembro de 1910. Tinha apenas 27 anos e foi o mais novo de sempre a ocupar o cargo onde se manteve até 1913, sendo exonerado a seu pedido em Março.
Era então tenente quando em 1911 fundou em Macau o primeiro grupo de escoteiros em território português, inspirado no que já existia em Hong Kong. "- Como eu era governador de Macau, protegia muito os rapazes. Pessoa que ali caía eu dizia-lhe logo: - Você tem de me ajudar nos Escoteiros! – Arranjei-lhes material e barracas e outras coisas".  Com a colaboração da filha do comissário da alfândega chinesa, foram constituídas duas patrulhas de escoteiras e duas de escoteiros.
Regressado a Lisboa em 1913, Melo Machado empenha-se na formação de um grupo de escoteiros na capital, que viria a ser o 2º Grupo da Associação dos Escoteiros de Portugal (AEP), e fundou ainda a Associação dos Escoteiros de Portugal, a mais antiga colectividade juvenil portuguesa activa, da qual foi o primeiro Escoteiro-chefe-geral.
Em Maio de 1933, quando já era administrador delegado na Companhia do Caminho de Ferro de Benguela, foi nomeado para formar a Comissão de Defesa do Porto do Lobito. Em 1936, foi eleito para o posto de secretário geral da Direcção da Sociedade de Geografia de Lisboa, e, em 1955, passou a fazer parte do Conselho Directivo da Gazeta dos Caminhos de Ferro. 
Primeiro grupo de escoteiros de Macau
Foi agraciado em 1919, com o grau de Cavaleiro, em 1920 como Comendador da Ordem Militar de Avis; em 1926, grau de Cavaleiro da Academia Francesa, atribuído pelo Governo Francês, e em 1938, foi distinguido com o grau de Grande-Oficial da Ordem Militar de Cristo.
Chegou a Macau pela primeira vez como oficial do cruzador D. Amélia, no Extremo Oriente (1906-1909). Era um republican dos sets costados e pertencia à maçonaria. Em 1909 ainda como 2º tenente, é ajudante de campo do governador Eduardo Marques (monárquico convicto), sendo secretário-geral interino em 1910, até ao momento em que é nomeado governador interino de Macau, a 17 de Dezembro de 1910, na sequência da queda do regime monárquico em Portugal.
Publicou vários trabalhos sobre a telegrafia sem fios, tendo proferido várias palestras no Grémio Militar e um relatório sobre a sua administração, como governador de Macau, que serviria de base à obra “Coisas de Macau”. Publicado em Portugal, em 1913, o livro é considerado um manifesto crítico sobre a forma como Portugal administrava Macau.
Excerto:
"(...) Está-se na avenida da praia grande, a curva naturalmente graciosa como poucas, que a bordo se avistou. A rua é larga; de um lado contornada por uma muralha contínua, onde as ondas vêm bater salpicando as árvores desenvolvidas e frondosas que a acompanham, e do outro por uma longa fila de casario onde se destacam a residência do Governador, o edifício das repartições públicas e algumas casas de arquitectura chinesa.(...) A cidade tem aqui um aspecto muito diferente. Acabou a aglomeração de gente e desapareceram as lojas e os toldos sujos; apenas alguns peões passam descuidadamente, um ou outro vendedor circula procurando atrair as atenções dos moradores ocultos e os jerinkshas particulares, puxados a dois culis em trajos coloridos, rodam silenciosamente e ligeiros no leito macio da avenida plana (...)"


terça-feira, 14 de março de 2017

Macau na China...

Não sendo uma designação muito vulgar, a verdade é que "Macau" dá nome a vários lugares no mundo - na China, no Brasil, em França, etc. - criando naturalmente alguma confusão, nomeadamente no que diz respeito à troca de correspondência a nível mundial.
Na edição de Novembro 1913 da "Revista Colonial - publicação mensal de propaganda das colónias portuguesas" uma pequena notícia tendo por base um pedido da 3ª Repartição da Direcção Geral das Colónias chama a atenção para esse facto e apela a que "se escreva sempre CHINA no endereço da correspondência para a nossa provincial de Macau".
Na época dava-se ainda o caso de a confusão ser ainda maior pelo simples facto de se utilizar também o termo "Macao".
Curiosamente, ainda na década de 1980, me recordo-me de me terem feito aviso semelhante: "Não te esqueças, escreve sempre Macau (na) China".

domingo, 12 de março de 2017

O Animatógrafo Macau e os "loucos anos 20"

Na edição de Macaenses de 13 de Outubro de 1920 podia ler-se “Desgraçada terra esta onde raras são as boas iniciativas que não baqueiam” a propósito do encerramento do Novo Teatro de Macau.
Dois anos depois abria ao público o Animatógrafo Macau, pelas mãos dum empresário da terra, Filipe Hung.
De acordo com um anúncio da época - imagem ao lado - era “o mais confortável salão cinematografico“.
Ficava na Rua do Hospital (corresponde à actual Rua Pedro Nolasco da Silva).
Os bilhetes da 1.ª classe custavam 20 avos (1.ª sessão) e 30 avos (2.ª sessão).  A 2.ª classe custava 10 avos (1.ª sessão e 2.ª sessão ). Para os “Praças sem graduação e crianças“ custavam 20 avos "só para a 2.ª sessão".
Desde o surgimento e massificação do cinema a população local tornou-se uma das mais entusiastas do mundo e existiram inúmeras salas ao longo do século XX.
Segundo Henrique de Senna Fernandes (HSF) “O mais remoto cinematógrafo de que temos notícia foi o «Chip Seng», situado na Rua da Caldeira (…). Outro cinematógrafo, também situado no dédalo do Bazar, era o «Tin Lin», no Largo do Hong Kong Mio que, em 4 de Fevereiro de 1909, como reporta «A Verdade» da mesma data, exibia, além de filmes, trabalhos de prestidigitação (…). 
O Teatro D. Pedro V também chegou a funcionar como sala de cinema na década de 1910, e havia ainda o Cinematógrafo Vitória (inaugurado em Janeiro de 1910 imagem abaixo) de que HSF se recorda assim: "Foi nele que se desbobinaram os melhores filmes mudos, não havendo outro cinematógrafo que se lhe equiparasse."
Na década de 1920 o cinema não era totalmente uma novidade mas era mais mudo que sonoro e, para além de Charles Chaplin, destacava-se o actor, realizador e produtor norte-americano, Douglas Fairbanks: “O êxito de Fairbanks era tão grande entre a rapaziada de Macau que, nos dias que se seguiam à estreia das suas películas, desapareciam dos jardins, hortas e quintais, pela cidade e fora de portas, todas as estacas de bambu, convertidas em espadas para a petizada se esgrimir em grupos rivais, com grande perigo para os olhos e desespero de jardineiros e horticultores que então abundavam nesta Terra do Nome de Deus”, palavras de HSF num livro sobre a história do cinema em Macau.



sábado, 11 de março de 2017

Camões em Macau: sim ou não

Edição de 1928 da Univ. de Coimbra da Autoria de Luis da Cunha Gonçalves
"Dos templos profanos portugueses dedicados ao culto da Pátria e ao culto do génio é sem dúvida um dos mais venerados o modesto jardim de Macau, chamado a Gruta de Camões. Nenhum português absolutamente, nenhum estrangeiro de mediana instrução vem a Macau, mesmo de passagem, cujo primeiro cuidado não seja o de irem em romagem a esse recinto sobre cujo solo é tradição que poisaram os pés do poeta máximo de Portugal – um dos máximos poetas de todo o mundo e de todos os tempos –, enquanto o seu génio elaborava algumas das estrofes de bronze dos Lusíadas. E a nenhuma deixa de invadir, apenas transporte o vulgaríssimo portal de quintalejo suburbano, que dá acesso ao local, um sentimento dominador de religiosidade, a todos impondo silêncio, como se do lado de dentro das duas insignificantes umbreiras de granito estivesse aquela tela que existiu à entrada da cartuxa do Bussaco, onde a pintura de um frade fitava imperativa, com o seu olhar imóvel, os que se aproximavam, erguendo verticalmente diante da boca o indicador da mão direita.
Tem-se debatido desde há anos a questão de se Camões residiu ou não em Macau, se esteve ou não preso no tronco da cidade, se aqui desempenhou ou pôde ter desempenhado as apagadas funções de provedor dos defuntos e ausentes. A polémica há-de decerto renascer mais animada algum dia; e provável é que o problema venha a decidir-se finalmente pela negativa.
É a sorte de todas as tradições consagradas. A crítica histórica, a história-ciência, positiva e experimental, vem fazendo tábua rasa de quando é anedótico e pessoal, das atitudes esculturais, dos gestos dramáticos, das frases eloquentemente concisas, em que tradições lentamente evoluídas, haviam definido, em termos quási sempre de inexcedível beleza, um carácter, um acontecimento ou uma época. Para só me referir à história literária, basta lembrar que, demonstradamente, Homero nunca existiu; e que, quanto a Shakespeare, se é, ao que suponho, incontestado ter havido no século XVI a XVII um actor inglês desse nome, não falta já quem lhe negue a autoria de todas e cada uma das tragédias que o mesmo nome imortalizaram e para apreciação de cujo valor não se encontra termo de comparação mesmo nas supremas criações do teatro grego clássico.
Mas discussões são essas de carácter puramente académico, só interessando à investigação erudita. Se as tradições estão bem arraigadas e vivas, não será a demonstração de sua inexatidão histórica que as poderá destruir. É que não foi nas dissertações dos sábios que elas germinaram e medraram, nem é delas, mas do sentimento popular, que tiram a seiva. A Ilíada e a Odisséia hão-de chamar-se sempre os poemas homéricos; e quando os infatigáveis sapadores que são os historiadores modernos chegarem à conclusão de que Shakespeare não existiu, ou de que não sabia escrever, nem por isso a série de assombrosas figuras animadas que, no Hamlet, no Macbeth, no Otelo, no Rei Lear, se estorcem nas grandes crises das suas paixões sobre-humanas, traduzindo, ampliadas até ao grandioso, todas as modalidades de afectividade, cessariam de construir a galeria das personagens shakespearianas.
Há, é certo, lendas e lendas, tradições e tradições: umas sublimes, outras grotescas. Estas são efémeras, aquelas eternas. Basta como exemplo da indestrutibilidade destas últimas o da lenda heróica da Grécia.
A vitalidade das tradições lendárias, ou quási lendárias, depende essencialmente de dois requisitos. É necessário que o objecto a que se referem se imponha pela sua grandeza à admiração contemplativa de todos os tempos. É-o igualmente que a própria tradição, nos diversos factores que a constituem, seja adequada a esse objecto. As tradições pertencem ao folclore, há nelas, preponderante, um elemento estético; e toda a obra de arte precisa, antes de mais nada, de ser bem equilibrada.
Quanto à grandeza gigantesca de Camões, e à da assombrosa epopeia marítima que culminou na formação do vasto império português do século XVI, estão acima de qualquer discussão. Resta apenas ponderar se Macau, esta exígua península portuguesa do Mar da China ligada ao distrito chinês de Heong-Shan, tem qualidades que a recomendem para assim andar associada à memória dessa epopeia e à biografia do poeta sublime que a cantou.
Ora essas qualidades tem-nas Macau como nenhum outro ponto do globo. Macau é o mais remoto padrão da estupenda actividade portuguesa no Oriente nesses tempos gloriosos. Note-se que digo padrão, padrão vivo: não digo relíquia. Há, com efeito, padrões mortos. São essas inscrições obliteradas em pedra, delidas pelas intempéries e de há muito esquecidas ou soterradas, que os arqueólogos vão pacientemente exumando e penivelmente decifrando, tão lamentavelmente melancólicas como as ressequidas múmias dos faraós.
A fatalidade do determinismo histórico fez que a colonização portuguesa quási exclusivamente se desenvolvesse a dentro dos trópicos, e, com exclusão de Macau, todas as colónias portuguesas, ou ex-portuguesas de clima relativamente temperado são situadas no hemisfério austral. Assim é Macau a única terra do ultramar português em que as estações são as mesmas da Metrópole e sincrónicas com estas. É a única em que a Missa do Galo é celebrada em uma noite frígida de Inverno; em que a exultação da aleluia nas almas religiosas coincide com o alvoroço da Primavera – Páscoa florida com a alegria das aves novas ensaiando os seus primeiros voos; em que a comemoração dos mortos queridos tem lugar no Outono. Mais ainda: em Macau é fácil à imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos frequentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas, das misteriosas inscrições chinesas, destacando a cada canto em rectângulos de papel vermelho, das águas amarelas do rio e da rada, onde deslizam as lentas embarcações chinesas de forma extravagante, com as suas velas de esteira fantasmáticas, e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão de terra portuguesa. Quem estas linhas escreve teve, por várias vezes (há quantos anos isso vai!), deambulando pelo passeio da Solidão, a ilusão, bem vivida apesar de pouco mais duradoira que um relâmpago, de caminhar ao longo de uma certa colina da Beira Alta, muito familiar à sua adolescência.
Ora a inspiração poética é emotividade, educada, desde a infância e com profundas raízes, no húmus do solo natal. É por isso que os grandes poetas são em todos os países os supremos intérpretes do sentimento étnico. Toda a poesia é, em certo sentido, bucolismo; e bucolismo e regionalismo são tendências do espírito inseparáveis. Notáveis prosadores (basta lembrar, dentre os contemporâneos, Lafcádio Hearn, Wenceslau de Moraes e Pierre Loti) têm celebrado condignamente os encantos dos países exóticos. Poeta, nenhum. Os poucos que vagueiam e se definham por longínquas regiões, se acaso escrevem em verso, é sempre para cantar a pátria ausente, para se enternecerem (os portugueses) ante as ruínas da antiga grandeza da pátria e, sobretudo para dar desafogo à irremediável tristeza que os punge. E se na reduzida obra poética colonial desses escritores – Tomaz Ribeiro, Alberto Osório de Castro, Fernando Leal (este último nascido na Índia, mas nem por isso menos exilado ali, português como era pelo sangue e pela educação) – se encontram dispersos alguns traços fulgurantes de exotismo, é só para tornar mais pungente pela evocação do meio hostil de inadequado pela sua estranheza à perfeita floração das almas – a impressão geral de tristeza – da irremissível tristeza de todos os exílios.
Veio toda esta divagação a propósito de dizer que ainda é Macau a única terra de todo o ultramar português em que se pode ter até certo ponto a ilusão de se estar em Portugal, essencial ao exercício por portugueses da sua especial actividade imaginativa... Para concluir, contra toda a tradição e contra toda a evidência histórica que tenha sido escrita ou concebida em Macau uma parte considerável da vastíssima obra poética de Camões? Seria verdadeira loucura.
Postal de Dezembro de 1960
O génio de Camões, alimentado embora exclusivamente da seiva que trouxera da Pátria – da imagem viva da sua paisagem, da lembrança minuciosa e fiel dos seus costumes, da sua história, das suas lendas, das suas crenças, da sua cultura científica e literária – tem pujança bastante para triunfar dos meios mais adversos, para resistir aos mais implacáveis factores de perversão e de atrofia. As suas composições são datadas (indirectamente datadas) dos mais diversos pontos e dos mais inclementes climas – da África e da Ásia, por onde no século XVI se estendia o imenso império português e se despendia a exuberante energia da raça portuguesa. Muitas das obras primas do seu lirismo, das mais tipicamente nacionais pelo acentuado tom elegíaco de que estão impregnadas, brotaram na Índia do seu coração saudoso: e uma delas, das mais comoventes e das mais conhecidas, nasceu entre essa penedia sinistra da costa do Mar Vermelho, dessas nuas penedias incandescentes, que escaldam os pés de quem ali desembarca, e parecem, vistas a certa distância, formadas de escumalha de ferro.
Mas a terrível acção depressiva do clima e do ambiente físico e social dos países tropicais, se não tiveram poder contra a assombrosa vitalidade criadora do poeta máximo, têm-no todavia, não só para esterilizar em cada um de nós outros, os pigmeus que a quatro séculos de distância o contemplamos, o pouco de aptidão versificadora que algum tivesse, mas ainda para destruir, mesmo nos melhor dotados, a comezinha parcela de imaginação de que é indispensável dispor quem intente evocar a estatura do gigante, o seu esbelto perfil e a sua figura augusta. E, pois que Macau, não só pelas suas condições climáticas mas também como mais remoto padrão da acção portuguesa na Ásia, é o palmo de terra mais próprio para essa evocação se fazer, natural é que, à semelhança do que sucedia com os mais célebres santuários pagãos, situado cada um deles em terra ilustrada por algum episódio da vida da divindade a que era dedicado, seja em Macau o santuário nacional – pan-lusitano – consagrado ao génio do poeta, e que a Macau a biografia deste particularmente se refira.
É a Gruta de Camões, com o seu cenário irremediavelmente mesquinho – mas suscetível, apesar disso, de correcção em muitos dos seus defeitos –, esse lugar sobre todos prestigioso, dedicado ao culto de Camões, que é também o culto da Pátria. Culto e prestígio que não podem extinguir-se enquanto houver portugueses; e enquanto não se extinguem, há-de ser verdade intuitiva, superior a todas as investigações históricas, que o maior génio da raça lusitana sofreu, amou, meditou, em Macau, aqui tendo composto, em grande parte o seu poema imortal, e que o local predilecto aos devaneios do seu espírito solitário era essa colina, então êrma, sobre o porto interior, junto das penhas com aparência de "dólmen" em cujo vão foi colocado há anos o seu busto, de proporções reduzidas, fundido em bronze."
Macau, Junho de 1924
Camões nas Paragens Orientais. Textos por Camilo Pessanha e Venceslau de Morais. Reedição anastática do opúsculo editado por Petrus em 1927. Fundação Macau e Instituto Internacional de Macau. 1999
Palacete da quinta da gruta de Camões e depósito de material de guerra no início do séc. XX

sexta-feira, 10 de março de 2017

1ºTenente Azevedo e Silva: Setembro de 1926


Já por aqui dediquei um post ao oficial da Marinha Azevedo e Silva. Nesta notícia do jornal O Combate (16.9.1926) refere-se a partida para Portugal do "distinto official" que serviu, entre outros, nas canhoneiras "Pátria" e "Macau".

quinta-feira, 9 de março de 2017

Moradia art-deco demolida

A moradia que pertenceu a Chui Tak Kei (1911-2017) na Av. Ouvidor Arriaga (nº 50) vai ser demolida e no seu lugar uma construção de 30 andares. É mais um exemplo da arquitectura art deco no território que desaparece. Os traços de modernismo estão bem patentes, das linhas rectas aos altos e baixos relevos, sendo que o exemplo mais antigo desta corrente arquitectónica no território que resistiu até aos dias de hoje é a moradia Skyline na Penha.
Fotos de 2016

Falecido em 2007 com 96 anos, Chui Tak Kei foi durante décadas o patriarca de uma das mais importantes famílias chinesas de Macau e um dos mais carismáticos líderes da comunidade chinesa do território. Empresário da construção civil, era presidente honorário da Associação dos Construtores Civis de Macau. Entre as muitas funções públicas que desempenhou, foi vice-presidente da Assembleia Legislativa (1976-1988), vários cargos no Leal Senado e foi membro da Comissão Preparatória da Região Administrativa Especial de Macau. Era ainda, pintor, calígrafo e filantropo e dominava a língua portuguesa.
Foi condecorado pelo governo de Macau com a medalha de Mérito Filantrópico e Cultural, a Comenda da Ordem do Mérito, Grande Oficial da Ordem do Mérito e a Medalha de Honra Lótus de Ouro (2007), a mais alta condecoração concedida pelo chefe do Executivo de Macau.