Um destes dias numa visita a um alfarrabista em Lisboa encontrei, entre outros, o livro “Amores e Viagens de Pedro Emanuel” da autoria de Joaquim Paço D’Arcos. Calhou-me a quarta edição de 1945 (a primeira é de 1935). Folhas amareladas e com espaço para dedicatória, mas não tive sorte. Estava em branco… Ainda assim, uma preciosidade de um autor cuja veia literária despertou precisamente em Macau, cujas primeiras impressões não foram as melhores. “A cidade sobre todas linda, a pérola cobiçada do Oriente, onde os meus dias teriam que decorrer; o seu bairro chinês pareceu-me aldeola cotejado com o de Hong Kong; o burgo português deu-me o aspecto de vilória de província, transplantada para sob aquele sol ardente. (…) Nem as colinas viçosas, nem as estradas. Serpenteando à beira-mar, nem as sombras seculares das árvores que abrigaram Camões, me reconciliaram com o forçado degredo”. Joaquim Belford Correia da Silva, filho do governador de Macau (1918-1923), Henrique Correia da Silva Paço d’Arcos, publicou duas obras com temas macaenses: "Amores e Viagens de Pedro Manuel" (1935) e "Navio dos Mortos e outras Novelas" (1952).
No primeiro título o protagonista é um chefe da polícia secreta de Macau que era também capitão de piratas nos mares da China. A segunda obra conta a história da filha de um rico chinês residente em Macau, assassinada pelo marido que não admitia que a sua mulher herdasse a fortuna do pai. O navio, que fazia o transporte de mortos chineses do estrangeiro, trouxe os corpos de ambos, pois o marido, condenado pela justiça inglesa, morrera na forca. Ao “Navios dos Mortos” o Times Literary Supplement referiu em Agosto de 1995 que se tratavam de “novelas que têm marca cosmopolita e recordam as de Somerset Maugham”. As obras são de ficção mas os locais e até algumas personagens são reais. Caso do padre Jerónimo, por exemplo. Numa entrevista em 1968 o próprio afirmou: “Existem determinadas figuras humanas que podem ter indirectamente inspirado algumas personagens da minha obra, mas profundamente modificadas. Se há algumas que dão traços de pessoais reais, são pessoas diferentes que nós depois mesclamos e transformamos inteiramente. As nossa figuras são criadas de imaginação, embora reflectindo aspectos da forma humana à nossa volta”. Neto do primeiro conde de Paço d’Arcos e irmão do segundo Conde, nasceu (1908) e morreu em Lisboa (1979). Conhecido como Joaquim Paço d’Arcos, foi um dos escritores portugueses do século XX mais traduzidos no estrangeiro: Brasil, Alemanha, Espanha, Finlândia, França, Inglaterra, Itália, Polónia, Roménia, Suécia, Estados Unidos, Rússia…). No The Penguin Book of Modern Verse Translation (1966) podem encontrar-se dois dos seus poemas.
Partiu com apenas quatro anos para Angola (1912) com os pais e, depois, para Macau (1919) e Moçambique, onde exerceu funções de secretário e chefe de gabinete de seu pai, governador entre 1925 e 1927. A viagem até Macau fez-se via S. Francisco e depois rumo a Hong Kong em 1919 no navio “Persia Maru” e de Hong Kong para Macau na canhoneira “Pátria”, a 22 de Agosto de 1919. “Demandei Macau em noite negra de tufão, na companhia do padre Jerónimo, ao qual fiquei talvez devendo a vida, pelas promessas que fez ao bom Deus se nos salvasse.” Ficaria até 1922. Chega com 11 anos e estuda no Liceu (então no Tap Seac) tendo colaborado no jornal da escola “A Academia”. Um dos professores do liceu foi o padre José da Costa Nunes que viria a ser bispo de Macau e que lhe terá dito da sua especial vocação para a escrita. Segundo Monsenhor Manuel Teixeira, Joaquim “estudava pouco e lia muito, enfolgando-se, sobretudo, nos romances de Camilo”. Nos três anos vividos no território vai muitas vezes a Hong Kong e a Cantão. Em 1925, com apenas 17 anos, está em Moçambique onde é secretário do seu pai (governador da província), regressando a Lisboa dois anos depois até que ruma ao Brasil onde vive de 1928 a 1930 como comerciante (antiquário) e jornalista. Regressa a Lisboa e em 1931 era chefe de repartição da Companhia Nacional de Navegação. Já em França, em 1933, escreve o seu primeiro romance, Herói Derradeiro. Após uma segunda permanência no Brasil, é nomeado em 1936 chefe dos Serviços de Imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros, cargo que ocupa até 1960, tornando-se igualmente, a partir de 1944, director da Trans-Zambezia Railway. Foi ainda presidente da Direcção da Sociedade Portuguesa de Escritores e membro da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses. Foi ainda membro do Pen Club, da Société des Gens de Lettres de France e sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras.
No Dicionário Cronológico de Autores Portugueses (Vol. IV, Lisboa, 1997) pode ler-se: “
Obteve diversos prémios literários, o primeiro dos quais coincidiu com a sua nomeação para o cargo de chefe dos Serviços de Imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros: foi o Prémio Eça de Queirós (1936), atribuído ao seu romance “Diário de um Emigrante” pelo Secretariado de Propaganda Nacional; o seu livro de novelas “Neve sobre o Mar” foi galardoado com o Prémio Fialho de Almeida, e a sua peça de teatro O Ausente obteve o Prémio Gil Vicente (1942); quanto ao Prémio Ricardo Malheiros, atribuído pela Academia das Ciências (…), o autor recusou-o devido aos termos em que se exprimia o relatório da comissão incumbida de o atribuir e que punha públicas reservas quanto à sua qualidade, designadamente pelo uso frequente de estrangeirismos.”
Romancista, dramaturgo, ensaísta e poeta, premiado diversas vezes, Joaquim Paço d’Arcos foi um caso de sucesso junto dos leitores nas décadas de 1940 e 1950 do século XX, em especial com o romance “Ana Paula”. O conjunto de obras que publicou sob o título genérico Crónica da Vida Lisboeta foi considerado por muitos críticos, quer portugueses, quer brasileiros, fundamental no âmbito da literatura portuguesa. Óscar Lopes escreveu que “
Quando se quiser ver a nossa época [anos 40 - 60] num cosmorama literário, tal como hoje vemos a época da Regeneração através de Camilo, Júlio Dinis ou Eça de Queirós, será preciso recorrer a estes romances de Paço d’Arcos quanto a determinados sectores portugueses.”
Na poesia, o seu livro mais conhecido é o “Poemas Imperfeitos”, de 1952. E também aí Macau marca presença nos poemas “Medo” e “Foi numa terra distante”. Após a sua morte, a 10 de Junho de 1979, caiu praticamente no esquecimento. Mas não totalmente, já que como o próprio afirmou “escrever é projectar-se além da vida”. E ele escreveu dezenas de obras: contos, romances, ensaios, teatro, poesia…
Nos últimos anos de vida passou para o papel as suas memórias e não esqueceu Macau, claro, onde viveu parte da juventude. Deixou três volumes prontos e certamente surgiriam mais, mas acabaria por morrer no ano em que foi editado o último (já depois de morrer). Para ele o que escreveu foram “pedaços de livros, predominantemente seus, e pedaços de vidas, em grande parte alheias”. Para Hernâni Cidade, os livros de memórias são “transparentes como vidraça sem cor”, referência à análise objectiva que fazia das figuras humanas características da sua época, em especial das mulheres. Essas figuras/pessoas pertenciam à alta e média burguesia, meios que Joaquim Paço d’Arcos conhecia bem. Aliás, na sua obra encontra-se muitas marcas da sua vivência pessoal.
Em 2008 no centenário do seu nascimento foi doado o seu espólio à Universidade Lusíada que já exibiu publicamente uma parte e que ficou responsável pela sua inventariação e conservação. Já no início deste ano o Círculo Eça de Queiroz organizou em Lisboa uma sessão para celebrar a reedição, num só volume, das “Memórias da minha Vida e do meu Tempo”. Na ocasião, Fernando Pinto do Amaral e Guilherme Oliveira Martins evocaram Joaquim Paço D’Arcos. Em Lisboa o seu nome ficou perpetuado numa rua.
Algumas das obras que deixou:
Romances: Herói Derradeiro, 1933. Diário dum Emigrante, 1936. Ana Paula: perfil duma lisboeta, 1938. Ansiedade, 1940. O Caminho da Culpa, 1944. Tons Verdes em Fundo Escuro, 1946. Espelho de Três Faces, 1950. A Corça Prisioneira, 1956. Memórias duma Nota de Banco, 1962. Cela 27, 1965
Contos e novelas: Amores e Viagens de Pedro Manuel, 1935. Neve sobre o Mar, 1942. O Navio dos Mortos e Outras Novelas, 1952. Carnaval e Outros Contos, 1958. Novelas pouco Exemplares, 1967.
Poesia: Poemas Imperfeitos, 1952.
Teatro: O Cúmplice: Peça em três actos, 1940. O Ausente: Peça em três actos, 1944. Paulina Vestida de Azul: Peça em três actos, 1948. O Braço da Justiça: Peça em nove quadros, 1964. Antepassados, Vendem-se: Peça em treze quadros, 1970.
Conferências e ensaios: Patologia da Dignidade, 1928. A Floresta de Cimento (Claridade e Sombras dos Estados Unidos), 1953. Carlos Malheiro Dias, Escritor Luso-Brasileiro, 1961. Algumas Palavras sobre a Missão do Escritor, 1961.A Dolorosa Razão duma Atitude, 1965.
Memórias: Memórias da Minha Vida e do Meu Tempo: 3 vols., 1973, 1976 e 1979.
Artigo da autoria de João Botas publicado no JTM de 25.09.2014