segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O caso da rua Volong - scenas da vida colonial

(...) O enredo dos romances de San Bruno deve muito à tradição romântica, mas o desfecho da história mostra as consequências de deixar as emoções dominar o intelecto. Em O Caso da Rua Volong, é a paixão do Conde de Palhais pela enigmática Miss Grace, portuguesa mascarada de americana, vítima de uma indiscreção do próprio Conde em Lisboa, e que o seguiu ao Oriente com a intenção de recuperar o seu amor. Poderíamos estar em plena comédia shakesperiana, se não fosse que o romance acaba numa tragédia melodramática. Tal como o herói de Jaime do Inso, Miss Grace se rende às atrações do Oriente na pessoa de Mansilla, elegante cavalheiro hispano-americano nos serões da alta sociedade de Macau, mas que na realidade é nacionalista filipino, e contrabandista de armas sem escrúpulos. Mansilla encarna as forças anárquicas e exóticas que atraem e destroem: «Sorria-se para mim, cravando no meu olhar atónito, o seu olhar fascinador, donde sentia, mau grado meu, irradiar uma força magnética poderosíssima. Como estava belo!» (Bruno, 380-1).
Tal como no romance de Jaime do Inso, o processo é gradual, descrito como uma luta entre a atração física e emocional, estado depravado, por um lado, e uma consciência do dever nacional por outro: «Não podia continuar a deixar-se prender daquele olhar, que parecia um estilete que a perfurava numa morbida embriaguez, dando-lhe a sensação nitida da aventura do amor... E uma esperança tremeluziu no fundo negro da sua alma cativa, e veio refrescar-lhe como um bálsamo brando, a ardência dolorosa dos seus pensamentos. Era portuguesa de alma forte! Não devia deixar-se estar em obediência a ninguém» (Bruno, 388).
A rua do Volong
Tal como na literatura do século 16, em que a irresponsabilidade moral podia levar a consequências negativas políticas, as acções destes dois personagens rebaixam a posição do poder colonizador perante os seus rivais. A atração de Miss Grace pelo nacionalista filipino enfraquece a hegemonia ibérica na região, facilitando a entrada em cena de outras potências como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. Ao desnacionalizar-se para reaver seu amor, torna-se politicamente perigosa. O Conde, ao apaixonar-se por uma estrangeira (embora estrangeira falsa), também se torna vulnerável a forças anti-portuguesas - como o jovem herói de Jaime do Inso, esquece a mãe-pátria, o que o conduz a outras tentações perigosas do Oriente: o jogo e o ópio. Na realidade, em O Caso da Rua Volong, como aliás nos outros romances de Emílio de San Bruno, um dos temas constantes é o da segurança imperial. A vulnerabilidade do império português em relação à influência estrangeira ou às ambições territoriais da Grã-Bretanha, refletem as preocupações de muitos intelectuais portugueses do período pós-Ultimato (o caso de escritores como Jaime do Inso e Emílio de San Bruno). Nos romances africanos deste último, a soberania portuguesa é ameaçada pelas companhias concessionárias inglesas no Vale do Zambeze ou por aspirações coloniais, também inglesas, na área do Congo. Em O Caso da Rua Volong, a rivalidade britânica se manifesta de outra forma, em termos linguísticos e de influência política sobre o imperador chinês.
A decadência de Macau no fim do século 19, reflete a decadência da China dos últimos anos do regime monárquico. Uma é o espelho da outra nas palavras de um dos personagens: «Os portugueses e os chineses, têm a mesma moral. Viajei na América, conheço o sistema inglês dos Straits e vi que no carácter e na política os chineses e os portugueses pouco diferiam...» (Bruno, 351). Na grande luta entre a Europa e a Ásia que tanto preocupava Jaime do Inso, A China está ganhando em Macau, uma China arcaica e anárquica, victoriosa no enclave porque permitida pela letargia a decadência de Portugal: «Em baixo a procissão chinesa continuava a desfilar com o mesmo pitoresco exotismo de há mil anos./ Era bem a China impenetrável, retrógrada, rotineira, insubmissa à febril civilização ocidental, mas já minada no antigo respeito à lei pela anarquia latente entre os mandarins do Império./ Como a arcaica civilização chinesa se achava bem dentro da ronceira e velha colónia de Macau!» (Bruno, 142).
Como colonialista, e autor de um romance que ia concorrer para o prémio da Agência Geral das Colónias, San Bruno nao podia acabar num tom tão pessimista. Como o seu contemporâneo, Jaime do Inso, cujo livro também ganhou um prémio da Agência, concluiu positivamente o seu romance, recorrendo a uma técnica já conhecida dos românticos: o narrador se distancia do período em que se desenrolou a acção da história, ao informar os seus leitores que o manuscrito tinha sido achado num velho baú. Refere, portanto, a uma situação que já não existia: «Hoje, Macau, já difere, em civilizado confôrto, e em adequadas obras de fomento, do daquele tempo, em que o autor dos folhetos coloniais por lá andou» (Bruno, 413-4). San Bruno escrevia quando a ditadura de Salazar estava-se consolidando, criando as condições para a imposição da lei orgânica que ia entrar em vigor no império a partir da década de 30.
Excerto de artigo da autoria de David Brookshaw

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