De todas as curiosidades que os macaistas possam offerecer aos observadores europeus, nada é de certo mais interessante do que a linguagem de que entre si se servem; é
uma espécie de dialecto em que, de envolta com portuguez
de 1500, andam locuções chinezas e phrases inglezadas.
Os homens, mais affeitos ao nosso convívio, pôde dizer-se
que faliam connosco um portuguez acceitavel, se bem que
a pronuncia venha affectada do descanso e adocicado de
que enfermam as línguas neo-latinas nos climas inter-tropicaes.
Entre elles, porém, e, sobretudo, na sociedade feminina,
é usada uma linguagem por extremo curiosa, que nós, europeus, mal podemos decifrar, mercê do que tem de ca-
prichosa e convencional.
Alem de algumas palavras muito adulteradas, outras de
pura phantasia, de locuções arrevezadas e de phrases de
convenção, entremettem as nhonhas e nhonhonhas nos seus
cavacos íntimos, gritinhos, risos, exclamações, etc, que
tornam de um cunho completamente original o seu papêa,
como ellas dizem.
A conjugação dos verbos é de uma singeleza e ratice
dignas de menção.
Pega-se de um verbo e toma-sè um modo, um tempo
e pessoa, que o uso adoptou por acaso, ou capricho; com
esta palavra e o auxilio das três partículas yd, tá e logo»
obtêem-se todas as flexões.
Por exemplo: do verbo ser toma-se são. E assim se diz:
no presente lá são; no pretérito, já são; no futuro, logo
são. Isto para todas as pessoas do singular e plural. (...)
Os géneros são quasi sempre trocados, ou escolhidos
á tôa. Assim se diz : vos otro nam quero pô sua pé meu
casa (você não quer pôr os seus pés na minha casa).
Muitas vezes o não é substituído por minca, dizendo-se:
são nunca? (é ou não verdade?). Ou ainda: Nunca bom
joga (não é bom jogar).
Duas pessoas, que se encontram, perguntam uma á outra e respondem reciprocamente: qui nova di vós ? (como está?) — bom, brigado; e seu filo, fila? (bom, obrigado; e
seus filhos?).
Querendo perguntar o que diz você? expressar-se-hao
por esta forma: qui cusa vós otro fala?
Se, por exemplo, pretenderem referir-se à mulher do
juiz, dirão: juiz sua mullé qui laia di boniteza! ia mulher
do juiz é muito bonita).
— Qui foi ellijá fala? (o que é que elle disse?), etc, etc.
Para dar melhor idéa d'esta ingreziada transcreveremos
para aqui parte de uma carta, que em Macau corre impressa, e que já vimos também publicada algures, sem
que nos lembre onde.
«Macao 5 de outubro de 1869. Minha querida Chencha. Gomo vos logo querê sabe tudo novidade di Macao,
por isso qui eu já pedi com sium sium, parcêro di jogo,
pra trazè tudo novidade di fora pra eu pôde escreve pra
vôs. Macao agora já tá muto mudado; já nam têm inveja
di Eropa. Pra tudo rua san carreta, san cavallo; di tanto
qui já têm, nam têm lugar pra guarda, maio parti fica
pinchado na mco da rua de S. Lourenço. Agora tá fazê ung-a casa, qui laia di grande, na horta
di governador, tamên pra guarda carreta e cavallo. Ólá
um pôco, minha Ghencha, fazê palácio na cidade pra cavallo, tudo pobre pobre vai para pra casinha di campo!
Agora tá com força di prepara pra recebe príncipe de In-
glaterra. Já pedi cum sium Garlito pra dá moda pra fazê
ung-a cadera pra carta príncipe. Querê cadera que têm
quatro pinga pra oito commendadô pra carta aquelle bemaventurado príncipe, pra
vosso tio pôde entra na numero. Nosso governador logo vae fica na casa vasio de sium
Lorenço pra dá palácio pra príncipe. Nosso juiz tá perto vae já pra Goa. Coitado di vello, já
soffrê ung-a moléstia ben di grande, que escapa morre. Notro tempo pescaria são na agu salgado; agora são
na agu doce. Quí sabe qual o brajero aquelle qui já inventa que na Praia Grande tem pescaria de pece pedra,
aquelle rapaz di botica di Neves, já cae na calote di vae
pesca á note fronte di sua botica. Pincha linha cae na seco;
emquanto tá safa linha . senti comedura; quando puça,
apanha ung-a casta di susto, qui laia di grandeI
Sao uma rato ganchado na anzol. Tudo vez qui eu sae na janella intopá com ung-a offi-
cial di vapor, qui casta di chistoso, historero, sevandizio,
qui mas nan pôde ser. Como já são hora di vem tudo parcero di jogo, eu já
nam pôde escreve mas novidade. Adeus, minha querida Chencha, Deus conserva saúde
pra vos e pra vosso Abelardo. Eu, vosso tio, tia, tia, tio
João, tudo manda muto lembrança. Vossa tia e amiga Paschoela».
in "Macau e os seus habitantes", Bento de França, 1897
Patuá: enquadramento
Na Idade Média, quando mercadores de várias regiões do
Mediterrâneo procuraram estabelecer relações comerciais com outros
povos, tornou-se necessária a prática de uma língua mista, simplificada,
à qual se deu o nome de “língua franca”. Mais tarde os portugueses, ao
entrarem em contacto com povos das mais diversas etnias, tiveram
necessidade da simplificação da língua. Também os missionários quando
foram para o Oriente, “sequiosos de almas para Jesus”, procuraram tornar
a fala mais simples. São Francisco Xavier pregava em crioulo e
recomendava aos religiosos que falassem em português “como lo falan losesclavos”.
Em Macau, quando os portugueses ali se fixaram, segundo Graciete Batalha assegura, a língua já havia deixado de ser língua franca, ampliada por vários vocábulos e atingido um certo estado de fixação fonética, morfológica e sintática, mantendo-se por trezentos anos, até que começou a desarticular-se, no século XIX.
O dialeto macaísta, chamado também “patuá”, ou “patoá”(do fr. “patois”), tem muita relação com os dialetos de outros povos, como de Malaca e Timor, pela proximidade relativa da Malásia e pela influência do grande número de escravas malaias e timorenses, que nos últimos séculos serviam as famílias macaenses. Muitos vocábulos de origem malaia foram introduzidos no território, desde o início do estabelecimento dos portugueses em Macau.
Além das relações comerciais que se estabeleceram com outros povos, os portugueses casavam-se com mulheres de Malaca e da Índia, pois, por serem considerados “diabos estrangeiros” pelas chinesas, não se casavam com elas. Por esta razão seria impossível um substrato chinês para o crioulo macaísta, acrescentando-se também que o contacto com a comunidade chinesa era apenas tolerado, dadas as dificuldades impostas pela Porta do Cerco.
O “Papiá Kristang”, importado de Malaca, reforça-se durante a ocupação desta cidade, pelos holandeses, em meados do século XVII, quando várias famílias foram para Macau. Das 1.169 palavras estudadas no Glossário do Dialecto Macaense e no Suplemento ao Glossário, Graciete Batalha destaca 194 de origem malaio-portuguesa e malaia contra umas 140 de importação chinesa antiga, uma vez que o “Papiá Kristang” esteve sujeito também a empréstimos do chinês. Também na estrutura gramatical do “patoá”, se registra identidade com o malaio, por exemplo, na reduplicação vocabular para se formar o plural: “criança-criança” (as crianças).
Uma boa parte do vocabulário macaense é de origem indiana: “alua” ou “aluá”(doce), “jambo” ou “jambolão” (fruta), “copo-copo” (borboleta). Mas a base foi sempre a língua portuguesa da 2a. metade do século XVI e do século XVII. Podem ser notados termos antigos ao longo dos séculos, tais como: “asinha” (depressa), “bredo” (hortaliça). É de notar, no entanto, ausência de termos relacionados com a agricultura e horticultura, visto que o pequeno solo de Macau nunca se prestou ao cultivo da terra. Vocábulos relacionados com a culinária, porém, são bastante expressivos quanto ao número. Confira-se:
“badji” ou “baji” (arroz pulu, isto é, gomoso, com coco e açúcar); “chutney de peixe” (à base de cebola, açafrão e coco ralado, muito picante); “chauchau pele” ou “tacho” (cozido preparado com galinha, chouriços, presunto, chispe (pé de porco), carne salgada, duas qualidades de couve, cogumelos e nabos); “fartes” (bolinhos de farinha, ovos e mel): “minchi” (carne picada).
Além do malaio, termos do “canarim” (língua de Goa) foram adaptados pelos falantes do “patoá” de Macau, uma vez que a colônia esteve ligada administrativamente ao governo da Índia durante muito tempo. Acrescentem-se também alguns vestígios da língua espanhola, pela proximidade das Filipinas.O “patoá”, além de ter sido a forma de comunicação do dia-a-dia, registrou-se também na linguagem literária. José Baptista de Miranda e Lima (1782-1848), filho do primeiro mestre régio de Gramática Latina, além de ter exercido o magistério como seu pai, compôs alguns poemas satíricos no dialeto mcaense, como este do princípio do século XIX:
No mez de Agosto unga tarde dom-dom panno vai pescá minhas Pancha vai juntado Nhum Lourenço companhá Andá qui, andá minha Siára perna azedo bem cansado Nhum Lourenço sua estúrdia vai até Rede Chapado. (“unga” = uma; “dom-dom panno” = levando ao colo com todo o cuidado; “juntado” = juntamente; “perna azedo” = perna fraca; “estúrdia” = estouvado; “Rede Chapado” = lugar de Macau).
A primeira menção ao “patoá” teria sido de um autor chinês, Tcheng Ü Lam, na monografia sobre a cidade do Nome-de-Deus, que teve o título de Oi-Mun-Kei-Leok (Monografia de Macau, 1745-46), segundo Graciete Batalha. Tcheng Ü Lam coligiu informações sobre os moradores da cidade e sua bárbara linguagem, compiladas depois com a colaboração de Ian Kong Iâm, na monografia acima citada. Foi traduzida para o português em 1950, devido, principalmente a seu valor histórico.
O filólogo português Adolfo Coelho teria sido o primeiro a estudar o dialeto, ainda que em poucas páginas, em Os Dialectos Portugueses ou Neo-Latinos da África, Ásia e América. Leite de Vasconcelos também se preocupou com o dialeto de Macau numa comunicação durante o X Congresso dos Orientalistas (Sur le Dialecte Portugais de Macau. Exposé d' une Mémoire Destinée à la 10e Réunion du Congrès International des Orientalistes).
O macaense João Feliciano Marques Pereira, destacado orientalista, frequentou em Lisboa o Curso Superior de Letras, tendo sido aluno de Adolfo Coelho. Em Macau foi professor, deputado e jornalista. Editou a revista Ta-ssi-yang-kuo (Grande Rumo do Mar do Oeste), que contém artigos com o título Subsídios para o Estudo do Dialecto de Macau. Como estudiosa do dialecto, destacou-se também Graciete Nogueira Batalha, linguista formada pela Universidade de Coimbra, que viveu em Macau longos anos, publicando vários trabalhos. O “patoá” sobrevive na obra de José dos Santos Ferreira. Poeta e prosador tem numerosos escritos na “doce língu maquista”.
Em Macau, quando os portugueses ali se fixaram, segundo Graciete Batalha assegura, a língua já havia deixado de ser língua franca, ampliada por vários vocábulos e atingido um certo estado de fixação fonética, morfológica e sintática, mantendo-se por trezentos anos, até que começou a desarticular-se, no século XIX.
O dialeto macaísta, chamado também “patuá”, ou “patoá”(do fr. “patois”), tem muita relação com os dialetos de outros povos, como de Malaca e Timor, pela proximidade relativa da Malásia e pela influência do grande número de escravas malaias e timorenses, que nos últimos séculos serviam as famílias macaenses. Muitos vocábulos de origem malaia foram introduzidos no território, desde o início do estabelecimento dos portugueses em Macau.
Além das relações comerciais que se estabeleceram com outros povos, os portugueses casavam-se com mulheres de Malaca e da Índia, pois, por serem considerados “diabos estrangeiros” pelas chinesas, não se casavam com elas. Por esta razão seria impossível um substrato chinês para o crioulo macaísta, acrescentando-se também que o contacto com a comunidade chinesa era apenas tolerado, dadas as dificuldades impostas pela Porta do Cerco.
O “Papiá Kristang”, importado de Malaca, reforça-se durante a ocupação desta cidade, pelos holandeses, em meados do século XVII, quando várias famílias foram para Macau. Das 1.169 palavras estudadas no Glossário do Dialecto Macaense e no Suplemento ao Glossário, Graciete Batalha destaca 194 de origem malaio-portuguesa e malaia contra umas 140 de importação chinesa antiga, uma vez que o “Papiá Kristang” esteve sujeito também a empréstimos do chinês. Também na estrutura gramatical do “patoá”, se registra identidade com o malaio, por exemplo, na reduplicação vocabular para se formar o plural: “criança-criança” (as crianças).
Uma boa parte do vocabulário macaense é de origem indiana: “alua” ou “aluá”(doce), “jambo” ou “jambolão” (fruta), “copo-copo” (borboleta). Mas a base foi sempre a língua portuguesa da 2a. metade do século XVI e do século XVII. Podem ser notados termos antigos ao longo dos séculos, tais como: “asinha” (depressa), “bredo” (hortaliça). É de notar, no entanto, ausência de termos relacionados com a agricultura e horticultura, visto que o pequeno solo de Macau nunca se prestou ao cultivo da terra. Vocábulos relacionados com a culinária, porém, são bastante expressivos quanto ao número. Confira-se:
“badji” ou “baji” (arroz pulu, isto é, gomoso, com coco e açúcar); “chutney de peixe” (à base de cebola, açafrão e coco ralado, muito picante); “chauchau pele” ou “tacho” (cozido preparado com galinha, chouriços, presunto, chispe (pé de porco), carne salgada, duas qualidades de couve, cogumelos e nabos); “fartes” (bolinhos de farinha, ovos e mel): “minchi” (carne picada).
Além do malaio, termos do “canarim” (língua de Goa) foram adaptados pelos falantes do “patoá” de Macau, uma vez que a colônia esteve ligada administrativamente ao governo da Índia durante muito tempo. Acrescentem-se também alguns vestígios da língua espanhola, pela proximidade das Filipinas.O “patoá”, além de ter sido a forma de comunicação do dia-a-dia, registrou-se também na linguagem literária. José Baptista de Miranda e Lima (1782-1848), filho do primeiro mestre régio de Gramática Latina, além de ter exercido o magistério como seu pai, compôs alguns poemas satíricos no dialeto mcaense, como este do princípio do século XIX:
No mez de Agosto unga tarde dom-dom panno vai pescá minhas Pancha vai juntado Nhum Lourenço companhá Andá qui, andá minha Siára perna azedo bem cansado Nhum Lourenço sua estúrdia vai até Rede Chapado. (“unga” = uma; “dom-dom panno” = levando ao colo com todo o cuidado; “juntado” = juntamente; “perna azedo” = perna fraca; “estúrdia” = estouvado; “Rede Chapado” = lugar de Macau).
A primeira menção ao “patoá” teria sido de um autor chinês, Tcheng Ü Lam, na monografia sobre a cidade do Nome-de-Deus, que teve o título de Oi-Mun-Kei-Leok (Monografia de Macau, 1745-46), segundo Graciete Batalha. Tcheng Ü Lam coligiu informações sobre os moradores da cidade e sua bárbara linguagem, compiladas depois com a colaboração de Ian Kong Iâm, na monografia acima citada. Foi traduzida para o português em 1950, devido, principalmente a seu valor histórico.
O filólogo português Adolfo Coelho teria sido o primeiro a estudar o dialeto, ainda que em poucas páginas, em Os Dialectos Portugueses ou Neo-Latinos da África, Ásia e América. Leite de Vasconcelos também se preocupou com o dialeto de Macau numa comunicação durante o X Congresso dos Orientalistas (Sur le Dialecte Portugais de Macau. Exposé d' une Mémoire Destinée à la 10e Réunion du Congrès International des Orientalistes).
O macaense João Feliciano Marques Pereira, destacado orientalista, frequentou em Lisboa o Curso Superior de Letras, tendo sido aluno de Adolfo Coelho. Em Macau foi professor, deputado e jornalista. Editou a revista Ta-ssi-yang-kuo (Grande Rumo do Mar do Oeste), que contém artigos com o título Subsídios para o Estudo do Dialecto de Macau. Como estudiosa do dialecto, destacou-se também Graciete Nogueira Batalha, linguista formada pela Universidade de Coimbra, que viveu em Macau longos anos, publicando vários trabalhos. O “patoá” sobrevive na obra de José dos Santos Ferreira. Poeta e prosador tem numerosos escritos na “doce língu maquista”.