domingo, 3 de maio de 2009

Eurico Ferreira: 1928-2007

Eurico Ferreira nasceu em 1928 em Portugal. Foi para Macau como militar em 1951. Aí realizou a primeira longa-metragem do território, Caminhos Longos. Na década de 1960 foi para Moçambique e aí, em 1971, escreveu e realizou "O Zé do Burro", uma comédia musical.
A seguir apresento alguns textos de Eurico Ferreira escritos já na fase final da sua vida, quando regressou a Macau onde viria a falecer. Lê-los é ficar a conhecer 'de perto' a realidade de Macau da década de 1950. As imagens, também da época, servem de complemento.
Eurico Ferreira em Macau no ano de 2007 fotografado por António Falcão

(...) Eu havia recebido um postal do Ministério do Exército convidando-me para uma comissão de serviço em Macau como sargento miliciano incorporado nas tropas que iriam render a guarnição daquela Província Ultramarina na China. Eu não fazia ideia nenhuma do que era Macau e não tinha intenção nenhuma de aceitar o convite, mas quando fui falar com o Sá por causa da sua atitude para com o Dr. José Manuel da Costa e ele me disse que tinha estado a pensar e resolvera não aceitar o apoio do Estado porque sempre lutara sem ajudas estatais, eu, de raiva, disse-lhe que ia aceitar o convite para ir para Macau. Talvez estivesse à espera que o César de Sá mostrasse algum arrependimento ou mostrasse alguma forma de querer chegar a um entendimento mas... Nada. Mostrou uma indiferença tal que eu saí da reunião e fui ao Quartel da Graça entregar a minha decisão para o convite que me haviam feito e aceitar a incorporação.No dia seguinte, quando o Sá soube disto disse-me com ar incrédulo - O quê? Você aceitou ser incorporado no exército para ir para Macau? E quando eu lhe disse que sim, respondeu-me - Você está maluco. Meteu-se no carro comigo e fez-se à estrada sem destino falando todo o tempo sobre as suas lutas, as suas frustrações e as suas paixões e afirmando que ia pedir a uns amigos que tinha no Ministério do Exército para anular a minha aceitação. Com a conversa acabámos por ir parar a Portalegre. Regressámos, e o Sa não conseguiu nada com os seus pedidos. Fui incorporado e embarcado no navio Índia, que fazia a sua viagem inaugural com dois mil homens a bordo a caminho de Macau para render a guarnição militar que tinha naquela terra prestado serviço durante o período da guerra com o Japão.

Tai Loy no Porto Interior
Ténis militar ca. 1950
É difícil imaginar a vida a bordo de um navio transformado em transporte militar que empreende uma viagem a partir de Lisboa em direcção a Macau passando pelo Canal do Suez, viagem essa que duraria aproximadamente um mês. Quando chegámos ao Cairo já estávamos todos ansiosos por ir a terra. Não fomos autorizados. Limitamo-nos a ver o deserto a partir do convés do nosso navio e depois entramos no Golfo de Aden. Um mar sereno, azul a perder de vista. Nem uma onda nem uma réstea de vento. Parecia que navegávamos num espelho azul. Um calor insuportável. A bordo andavamos em peito nu e o comandante de bandeira ordenou que fossem montadas no deck mangueiras que deitavam água bombeada do mar, uma espécie de chuveiros que sempre ajudavam um pouco a combater o calôr insuportavel. No meio daquele deserto um dia passou por nós um outro navio de carga e passageiros que trazia na ponte de comando duas raparigas. Imagine-se o que foi ver o nosso navio, o Índia, todo inclinado a bombordo com perto de dois mil homens ao longo da amurada dando um grito entusiástico quando as duas raparigas no outro navio acenaram para nós. Aquela visão depressa passou ficando apenas um risco branco naquela superfície azul assinalando a passagem do outro navio. Depressa voltaram também os confrontos entre os homens a bordo que ja não se podiam ver uns aos outros. Aquilo era como uma prisão ou talvez pior porque não havia nada para fazer.A chegada a Singapura era a grande esperança.Quando chegámos, ficámos ancorados ao largo de umas ilhas e para ir a terra era preciso tomar uma lancha. Aliás entre as ilhas circulavam montes de lanchas porque nelas estavam instaladas várias empresas e a sua ligação com as outras era feita com essas lanchas. Grande desapontamento. O Cônsul de Portugal veio a bordo e disse que não podiamos ir a terra porque precisamente nesse dia os revoltosos da Malásia que queriam a independência da Inglaterra, iriam desencadear um ataque terrorista contra os ingleses e nós não poderíamos ser envolvidos nisso. Foi um choque terrível. Todos desataram a protestar e alguns até ameaçaram deitar-se ao mar e nadar para terra (o que não seria nada fácil dadas as distâncias). Então o Cônsul prometeu que iria ver o que se poderia fazer e por volta das quatro e meia da tarde voltou com a notícia de que tinha chegado a um acordo com os revoltosos que protelaram a sua revolta para depois da meia noite e assim poderíamos sair e ir para Singapura em grupos de cinco, fardados, estando de regresso ao navio à meia noite desse mesmo dia.Assim foi. Visitei Singapura, frequentei com os meus companheiros um cabaret onde dançámos até perto da meia noite e conheci um polícia à paisana inglês que se intitulava a si mesmo como o Charlie Chan de Singapura. O Charlie Chan era um famoso detective de ficção do cinema. À meia noite estava o pessoal todo na formatura a bordo para se fazer a chamada e faltava um sargento. Ficámos todos de baixo de grande tensão. Por volta da uma da manha ouvimos no escuro da noite o ruído de uns remos de uma lancha que se aproximava do nosso navio. Era o meu companheiro que chegava. Ele subiu pela escada de corda lançada do convés e quando chegou ao nível onde estavamos todos perfilados na formatura, olhou para nós e largou uma gargalhada. O comandante de bandeira deu ordens imediatamente para que ele fosse preso e fechado no porão. E lá ficou até chegarmos a Hong Kong. Em Hong Kong fomos divididos em grupos e enviados para Macau. Finalmente chegávamos ao nosso destino.
Tap Seac cerca de 1950

Como facilmente se poderá imaginar, depois de uma viagem de um mês em direcção a uma terra sobre a qual nada sabia e onde teria de ir viver, a minha mais urgente preocupação, lógica para um jovem de vinte e três anos naquela situação era se haveria raparigas. Assim, a primeira coisa que fiz após a minha chegada a Macau foi correr para a Messe de Sargentos, tirar a farda, vestir-me à paisana e sair para a rua numa missão de prospecção. Deparei logo a atravessar a rua na Praia Grande com uma jovem extremamente elegante com uma cintura incrivelmente fininha uma saia branca que lhe dava pelo joelho e uma blusa vermelha. Eu fiquei a vê-la afastar-se e pensei cá para mim - Bem... Não estamos mal. Cerca de uma semana depois, ia eu na rua com um colega meu, sargento, quando passamos diante de um café e sentadas numa mesa estavam duas jovens. O meu companheiro cumprimentou uma das jovens e a outra era aquela que eu havia visto a atravessasr a rua quando cheguei. Então perguntei ao meu amigo se a conhecia e ele disse-me que sim porque aquela rapariga era amiga da sua namorada. Perguntei-lhe pois se me podia apresentá-la. Ele respondeu que sim e voltámos para trás até ao tal café. Daí resultou que fiquei a conhecer a tal moça que eu vira pela primeira vez ao chegar a Macau e daí resultou também que me apaixonei por ela, começámos a namorar e acabámos por ir viver juntos. Como é natural ela acabou por engravidar e eu quis casar com ela mas não me foi permitido pela tropa que só me permitia o casamento se tivesse vinte e cinco anos. E assim nasceu o nosso primeiro filho que só pode ser registado como nosso filho quando nos casámos pela Igreja dois anos depois. Mas, entretanto, muita coisa se tinha passado. Veio a Macau o Primeiro-ministro, Sarmento Rodrigues (Nota minha: foi em 1952 e era o Ministro do Ultramar), fazer uma visita e trouxe com ele o produtor Ricardo Malheiros e um operador de câmara para documentar essa viagem. Quando o Ricardo Malheiros me encontrou ficou muito surpreendido. Ele conhecia-me dos tempos da Cinelândia onde assistira a várias demonstrações promocionais feitas por mim. Então teve a ideia de ir pedir ao Comandante Militar que me dispensasse dos meus serviços na secretaria do Quartel General, onde fora colocado, para ir trabalhar com ele nuns quantos trabalhos documentais a que estava entregue. Assim foi. Fiz um documentário sobre os Correios de Macau, onde também na altura fiz um grande amigo que era funcionário daquela organização - o Rui Senna Fernandes. Também fiz um outro documentário inesquecível sobre o enterro do pai do Ho In, um milionário associado do Dr. Pedro Lobo que naquela altura era talvez o homem mais poderoso de Macau. Aquele desfile prolongou-se por horas na Almeida Ribeiro. Incorporou quase todas as bandas chinesas do território e até talvez da China e de Hong Kong. Só carpideiras desfilaram perto de quatrocentas. Ao longo da Avenida homens em bicicletas andavam para trás e para diante distribuindo lai sis, isto é, pequenos envelopes vermelhos com dinheiro. O caixão transportado por mais de vinte homens era um monumento em madeira trabalhada com quase dois andares de altura. E com tudo isto tive de ir frequentemente a Hong Kong para revelar os filmes fazer as cópias de montagem, sonorizar e finalmente fazer as cópias finais, Hong Kong tinha uma indústria de produção de filmes próspera e activa e, Macau... Nada. Os Estúdios dos Shaw Brothers produziam um filme de vinte em vinte dias que estreavam em Hong Kong, nos seus cinemas de Singapura e nos cinemas do Brasil dedicados às comunidades chinesas. Os Wader Studios também tinham uma produção regular de filmes de Karaté e não só. Havia ainda vários estúdios de som e salas de montagem disponíveis. (...)Eu dizia muitas vezes porque é que Macau pode ser uma Las Vegas e não uma Hollywood? A ilha da Taipa era um descampado e eu sonhava que ali poderiam ser construídos grandes estúdios capazes de dar grandes contributos para a cinematografia chinesa e até talvez, também, para a cinematografia macaense.

Casino do Hotel Central
Aquela tropa em que eu fora incorporado tinha por missão substituir a guarnição de Macau que aqui permanecera durante a guerra. Na realidade, ao que parece, quando o Japão declarou a guerra, o Governo Português previu que as tropas japonesas avançariam pela China dentro e chegariam até Macau e Hong Kong. Previa-se uma carnificina. Assim, foram as cadeias, mobilizaram todos os presos de delito comum e trataram de os enviar para Macau como guarnição militar deste território. Quando chegámos para os substituir, encontrámos um ambiente de cortar à faca. Um dia entrei num café que estava cheio de gente. Minutos depois olhei à minha vcolta e estava sozinho. Na Almeida Ribeiro, quando descia a avenida todos os chineses atravessavam a rua para sair do meu caminho. O capitão Aranda, famoso capitão de engenharia andava pela cidade num jeep sem carroçaria e sentado num caixote. Subia e descia escadas e por vezes até entrava em lojas. Contavam-se as mais estranhas histórias sobre a vida em Macau durante a guerra. Passara-se fome (na verdade morrera-se de fome), comera-se carne humana e Macau chegara a ter um milhão de habitantes, mais do que Lisboa que só tinha seiscentos mil. Porém os japoneses nunca entraram em Macau. Respeitaram sempre a nossa soberania. Estas histórias foram-me confirmadas pela mimha mulher que aqui vivera durante todo esse tempo. Um dia, nas Portas do Cerco, surgiu um general japonês todo armado de pistola à cinta, a querer entrar. Havia ordens expressas para não deixar ninguém armado em Macau e a sentinela disse-lhe exactamente isso. O general desatou a rir às gargalhadas e disse - Você sabe quem eu sou? Eu sou o Comandante de todas as tropas em redor de Macau.
A sentinela ligou para o Palácio do Governo e então o Dr. Pedro Lobo mandou que o carro do Governador com a sua bandeirinha oficial fosse as Portas do Cerco buscar o tal general. Assim ele entrou, armado e tudo, e nessa noite foi ao Casino do Fu Tak Yam, hoje Hotel Central, tomou o elevador no rés do chão e quando chegou ao terceiro andar a porta do elevador abriu-se e diante dele estava um chinês com uma pistola que lhe deu três tiros na cabeça.O resultado de tudo isto foi que os japoneses exigiram que fosse preso o assassino do seu general e o Governo de Macau acabou por prender um chinês dizendo que tinha sido ele. À boca pequena, o que se dizia entre a população, era que o general tinha sido morto por um polícia com ordens do Governo de Macau e que aquele chinês estava combinado para dizer que tinha sido ele. Porém os japoneses exigiram que lhes fosse entregue o assassino e isso complicou tudo. Assim o Governo de Macau concordou em fazer a entrega mas, por azar, durante a operação o preso tentou fugir de forma violenta e teve de ser abatido. E foi esse cadáver que foi entregue. Ora durante o meu período de tropa sucederam algumas coisas que muito me assustaram. Eu prestava serviço na Secretaria do Quartel General e um dia soubemos que tinha havido um tiroteio nas Portas do Cerco e entrámos de prevenção. Assim, por volta das nove horas da noite começámos a ouvir metralhadoras a fazer fogo e tiros esporádicos e a certa altura até ouvi um canhão a disparar. Fui à janela da secretaria e vi na encosta da Ilha da Lapa, pertencente à China um grande clarão ao mesmo tempo que ouvia o estrondo de uma peça de artilharia a fazer fogo. Pensei - Estão a bombardear Macau e fiquei à espera de ouvir, como já vira em diversos filmes, um assobio seguido por uma explosão. Mas isso nunca chegou a acontecer. De repente tudo parou e ficou um silêncio expectante. Um pouco depois recebemos ordem de sair para a rua e apagar as luzes da via pública a tiro. O que se dizia era que o Quartel General dera ordens à Melco para apagar todas as luzes da cidade mas esta recusara-se a fazê-lo. Assim, se não apagavam a bem teriam de ser apagadas a mal. Ainda fui encontrar colegas meus do Quartel da Administração militar muito entretidos na rua a fazer tiro ao alvo para apagar os candeeiros públicos.
O que nunca esqueci foram as palavras do Comandante Militar numa reunião com o Chefe do Estado Maior e que ouvi por acaso naquela altura, quando ia a passar no corredor do Quartel General. Dizia ele com voz irritada - Na guerra, mortes não se pagam com dinheiro, pagam-se com mortes.De qualquer forma não sei ao certo o que se passou e como foi resolvida a situação mas o certo é que as Portas do Cerco voltaram a abrir e recomeçou o intenso movimento logo pela manhã com os inúmeros comerciantes que traziam os alimentos para Macau. Não ouve mais incidentes fronteiriços. Naqueles tempos corriam imensas histórias em Macau que explicavam a nossa presença. Os navegadores portugueses haviam combatido nos mares da China contra os piratas de alto mar e assim tinham prestado tão bons serviços que a China, em sinal de gratidão, tinha oferecido a Portugal esta pequena península que com o tempo se tinha tornado num local de refúgio e um centro de comércio e de fé católica. Também num centro de turismo e de jogo. Uma história clássica era a do cerco dos holandeses que com a sua frota de navios ameaçara bombardear a cidade de Macau que tanto cobiçavam. Contava-se que sobre o Farol da Guia havia surgido uma Nossa Senhora que abrira o seu manto e com ele protegera a cidade. Contava-se igualmente que um frade na Fortaleza do Monte disparara um canhão cuja bala foi precisamente entrar na abertura para o porão do navio armazém de explosivos da frota holandesa e que ao explodir aniquilou essa frota libertando Macau da ameaça. Ora sucede que eu havia sido punido com cinco dias de detenção por ter ido para Hong Kong na altura das minhas andanças por causa dos filmes produzidos pelo Ricardo Malheiros, sem licença do Chefe do Estado Maior. Na verdade eu fui antes de receber a licença que já por várias vezes ele ma concedera. Mas quando ele soube que eu tinha ido antes de a receber, não a assinou, e assim fui apanhado em falta e castigado. Ainda apanhei mais cinco dias de detenção por ter saído do Quartel estando detido e fui transferido para o BC 2. Nesta Unidade o Comandante Barata descobriu que eu tinha jeito para o desenho e pintura e sendo ele o director do Clube Militar, passou a incumbir-me de todos os trabalhos de docoração daquele Clube quando havia festas. Assim, mandava-me chamar e dizia - Ferreira vai haver um baile no Clube pelo Carnaval. O que você vai fazer para decorar as salas? E então eu punha-me a fantasiar. Dizia - Vou pintar uma grande máscara carnavalesca para pôr na entrada, vou pendurar montes de serpentinas no tecto e assim por aí fora. O comandante Barata punha à minha disposição todos os meios para fazer o meu trabalho, incluíndo pessoal auxiliar e viaturas e depois quando eu dizia que tudo estava pronto vinha verificar dizendo -Você disse que aqui ia pôr neste espelho um desenho de um casal a dançar. Eu alegava que tinha achado melhor fazer o desenho noutro sítio mas ele não ia em conversas e eu tinha de fazer aquilo que eu planeara. Desta forma foram imensas as decorações que fiz para aquele Clube até que já passados os dois anos a que era obrigado, pedi a minha passagem a disponibilidade. Mas isso é um novo capítulo na minha vida.
Durante este período de dois anos como militar em Macau, fiz vários amigos, como um cabo africano de Moçambique da guarnição das Portas do Cerco e que era filho de um régulo e o Director do Centro de Informação e Turismo que era o Silveira Machado. O Silveira Machado era também uma espécie de secretário do Dr. Pedro Lobo e tinha o seu escritório no Palácio do Governo logo à direita quando se subia a escadaria da entrada. Eu visitava-o frequentemente e tínhamos profundas conversas sobre a questão do cinema em Macau, do nosso atraso e como desta forma não daríamos contributos culturais tão proveitosos como poderíamos dar com essa forma de linguagem de massas. Havia tantas histórias interessantes a contar ao mundo, como a da luta dos nossos navegadores em favor de uma China rica e imensa. Como a história da resistência de Macau, a cobiça dos Holandeses. Enfim, como a história de Macau como local de refúgio durante a guerra do Japão. Disto tudo resultou que o Silveira Machado conseguiu o apoio financeiro do Dr. Pedro Lobo e formámos uma Sociedade chamada Eurásia Filmes da qual eram sócios além do Silveira Machado e eu próprio, o Professor Serra e o Comandante Dias da Silva, oficial da marinha responsável pelas lanchas da Polícia Marítima. O primeiro objectivo era fazer um primeiro filme de longa-metragem que pusesse Macau no mapa da cinematografia e pudesse futuramente servir de base para o estabelecimento da produção cinematográfica de Macau. O Professor Serra forneceu a história e eu forneci o script e a direcção do filme. Fui a Hong Kong buscar o operador de câmara, o Albert Young, com a sua Arri de trinta e cinco milímetros, e os actores consagrados Wong How, Chung Ching e Lola Young. Em Macau escolhemos o António Pedro para fazer o papel do Inspector da Judiciária que era um dos personagens da história e a Irene Matos que fazia o papel da filha do casal de refugiados de Xangai com que começava o filme a bordo do Tak San com um monte de refugiados de Xangai a caminho do seu refúgio em Macau.Desta forma arrancou a produção do primeiro filme jamais rodado em Macau - Caminhos Longos. Na realidade bem mais longos do que jamais supusera.

Textos do autor publicados em blog pouco antes de falecer em Macau e de um jornal local ter feito uma reportagem sobre "As sete vidas de Eurico" da qual transcrevo um excerto.

(...) Chegou a Macau sargento, em 1951, a bordo do Índia, embarcação que transportou dois mil homens, ao longo de um mês. “Não imagina o que era, todos aqueles homens juntos durante tanto tempo. Atrás seguia o Timor, com outros tantos tropas. Vínhamos substituir o exército português que esteve em Macau durante a guerra.” Mobilizou-se voluntariamente, quis bater o pé, “revoltei-me em Lisboa”, cidade onde nasceu e onde deixou o mundo do cinema, que então entrava numa nova era com as inovações que chegavam do outro lado do Atlântico.
Fiz o documentário, entretanto deu-se um acontecimento em Macau, um funeral majestoso, com todas as tradições chinesas, que foi o funeral do pai do Ho Yin. Fiz esse documentário também.Em Macau encontrou um “ambiente terrível, os japoneses não entraram cá mas as Portas do Cerco fecharam, havia muita fome e miséria”. As tropas que o Índia e o Timor vieram substituir também não deixaram a melhor imagem dos homens da então metrópole, conta, “a sensação que tive quando cheguei é que estava numa terra diferente, com uma cultura diferente e que tinha que conviver com um povo que mostrava receios, por causa do comportamento da tropa que cá tinha estado.” Mas em Macau encontrou também “a companheira de toda a vida”, um amor à primeira vista de quem teve cinco filhos, quatro nascidos em Macau, o último já num outro continente, “mas feito ainda cá”. E tropeçou, de novo, no cinema.
Dois anos feitos de Macau e de vida militar, “o Ministro do Ultramar resolveu vir cá e trouxe com ele um produtor de cinema, Ricardo Malheiros, e um operador de câmara, que vinham fazer a reportagem da viagem do ministro”. O encontro com o produtor português fez com que a vida desse nova volta, de regresso às imagens e aos sons. Foi dispensado da tropa e começou a trabalhar com Malheiros num documentário sobre os Correios de Macau. “Fiz o documentário, entretanto deu-se um acontecimento em Macau, um funeral majestoso, com todas as tradições chinesas, que foi o funeral do pai do Ho Yin. Fiz esse documentário também”.Em meados do século passado, a colónia portuguesa não dispunha de meios técnicos de montagem e começaram os primeiros contactos profissionais com Hong Kong. A colónia britânica caracterizava-se, já na altura, por ter “uma indústria de cinema altamente eficaz”, que Eurico Ferreira queria trazer para Macau. “Porque é que Macau não podia ser uma Hollywood? Porque é que não atraímos para Macau a indústria cinematográfica?”, defendia o produtor e realizador. “A Taipa não tinha nada, podiam ter sido construídos estúdios maiores que os de Hong Kong”.O sonho de Eurico Ferreira não era solitário mas, ainda assim, não teve pernas para andar. “Decidimos começar por fazer um filme para apresentar Macau, com histórias de Macau.” Constituiu-se uma sociedade, com várias pessoas residentes no território, “fui buscar actores a Hong Kong, outros formamos cá”. E aqui começa a história de “Caminhos Longos”. O argumento era baseado em acontecimentos reais do conflito sino-japonês.“
O filme começava com uma família de refugiados de Xangai que vinha de barco para Macau e ia adaptar-se a uma terra que não conhecia. Macau era, naquela altura, um porto de abrigo, entrava toda a gente, tinha as portas abertas”. Pelo meio, ainda a referência à vida boémia da cidade e a histórias verdadeiras de piratas de alto-mar, como a do “tancar chinês que tinha como característica um motor a diesel e que pertencia a um homem chamado Imortal, que era muito respeitado, um pirata que, durante a guerra com os japoneses, saía de noite e ia roubar os barcos que levavam os mantimentos e trazia-os para Macau, onde na altura se morria de fome.”
A meio do filme, o financiamento deixou de existir e houve necessidade de improvisar, cortar nas despesas maiores para poder levar a película à tela. “Deixámos de ter gravador de som, usei um gravador normal e sabia que ia encontrar dificuldades técnicas para poder fazer o filme. Peguei nos sons e medi as imagens, fui para Hong Kong, reproduzi o som até ficar mais ou menos com a mesma velocidade e passei para foto-sonoro. Consegui fazer uma primeira cópia do filme.” Os defeitos técnicos do filme eram bastantes, não dava para levar o filme para a Europa, mas em Macau a expectativa criada era muito grande, não fosse a cidade aparecer no cinema. “Caminhos longos” foi estreado no Vitória, que “já não existe, ficava ali quem desce a Almeida Ribeiro, logo a seguir ao Hotel Central, corria o ano de 1953 ou 54.”
Foi um sucesso, garante o produtor e realizador, não obstante alguns pormenores que queria rever numa segunda montagem, a ser feita em Lisboa. “Havia uma cena em que o polícia chegava a casa de uma das protagonistas do filme, ia tocar à campainha, a mão ainda ia no ar e a campainha já fazia trimm, trimm. A malta ria-se à brava.” Estes defeitos técnicos derivados da falta de material para sincronizar imagem e som nunca chegaram a ser corrigidos, outras histórias aconteceram, zangaram-se as comadres e o filme ficou esquecido algures na metrópole. Para a história ficou a aventura, a iniciativa, as novidades. “Os diálogos em chinês tinham legendas em Português e vice-versa,” recorda Eurico Ferreira.
Poucos anos depois, os acontecimentos do outro lado das Portas do Cerco e os ecos da Revolução Cultural fizeram o então funcionário das Finanças arrumar as malas e partir com a família já numerosa para outras paragens. Moçambique foi o destino e por lá ficou vinte anos, até voltar para Portugal. O cinema continuou a fazer parte do quotidiano, a par com as várias profissões que foi tendo, das Finanças ao controlo aéreo. Há três anos voltou para Macau, depois do maior elo à cidade do Oriente ter desaparecido, cinquenta anos passados do amor à primeira vista. “A minha mulher adoeceu e não resistiu, a minha filha vive cá e convidou-me para voltar.” Aqui sente-se bem, como acompanhou sempre o que há de mais novo publica as memórias num blogue, tem um quotidiano calmo num espaço da cidade quase esquecido. “Há pessoas que não conheço e que me sorriem,” ri-se. O “pouco de cantonense” que sabe chega para conversar, a cidade agrada-lhe, acolhe-o. “Quando vou ali na Avenida Almeida Ribeiro, quando estou ali no Leal Senado, estou a viver exactamente a cidade de Macau daquele tempo. Há coisas de Macau que estão exactamente como era. A única diferença é que, naquele tempo, eu ia à janela do quartel-general e via a ilha da Lapa mesmo em frente. Agora não vejo porque tem um grande prédio.” O crescimento da urbe não o atrapalha porque, sentencia, continua a ser espaço de “aglutinação e intercâmbio de culturas, sem as quais não existem ideias novas”.
"Zé do Burro" estreou em Janeiro de 1972 no Odeon em Lisboa
Excertos de um texto da autoria de Isabel Castro no Tai Chung Pou, versão portuguesa.

2 comentários:

  1. Muito obrigado ao blogger por trazer estas maravilhosas relíquias sobre a cidade e as gentes de Macau!
    Embora novo, embora tenha saído de Macau ainda mais novo, Macau é a minha terra e tenho um enorme prazer em ler estas memórias e ver estas fotografias duma cidade única no mundo.
    Sinceramente, obrigado

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  2. Paulo, obrigado pelas suas palavras. 'Apareça' sempre que entender; prometo ir vasculhando a memória, os livros, a net, os jornais... o que for preciso para esta 'redescoberta' de Macau.

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