quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Estabelecimento de Pan-choens no nº 4 do Tanque dos Mainatos: 1881

O bacharel António Marques de Oliveira, procurador dos negocios sinicos, por Sua Magestade Fidelissima que Deus Guarde... faço saber que os chinas Li On Iun e Leong Von Hin requereram licença pra fundar na casa nº 4 sita no Tanque dos Mainatos um estabelecimento de pan-choens... 
Excerto do edital publicado no Boletim do Governo em Novembro de 1881 assinado pelo procurador da Procuratura dos Negócios Sínicos, António Marques d'Oliveira.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Bond.. James Bond está de volta a Macau

Cena do filme da saga de James Bond 007 - The Golden Gun
Terminal marítimo de Hong Kong para Macau

Algumas das primeiras imagens que vão fazer parte do novo filme de 007 foram reveladas. Macau volta a entrar na trama e a acção desenrola-se outra vez num casino flutuante. Mas desta vez é Daniel Craig no papel do espião britânico que, segundo foi avançado, não deve ter pisado Macau, nem Xangai, onde também se desenrola a acção. A estreia está marcada para o final de Outubro.O primeiro Bond a pisar Macau foi Roger Moore. Agora, Daniel Craig, que protagoniza o agente secreto mais famoso de sempre, não passa pelo território, mas nem por isso Macau vai deixar de ser cenário e parte da trama do mais recente filme do 007, “Skyfall”. Várias imagens do novo filme, que é dirigido por Sam Mendes (de American Beauty, Revolutionary Road ou Jarhead) foram reveladas pela imprensa e mostram um pouco do que se pode esperar para o final de Outubro, altura em que deve estrear. As filmagens tiveram lugar na Escócia, Turquia, Xangai e Macau e numa ilha fantasma do Japão. Mas as duas cidades chinesas apenas terão servido como cenário, uma vez que ninguém do elenco principal terá pisado solo chinês.
Na cena de Macau, segundo foi avançado por jornalistas convidados a visualizar algumas das imagens nos estúdios de Pinewood, James Bond encaminha-se, a bordo de um barco, para um casino flutuante, numa altura em que fogo-de-artifício ilumina o céu. A cena foi descrita como contendo algum mistério e houve quem dissesse que o casino fazia lembrar “um reino de morte”.
Sam Mendes confirmou numa entrevista o regresso a algumas das personagens icónicas de 007. Por outro lado, este filme também deve ter mais humor do que as duas últimas películas. Em “Skyfall”, a lealdade de Bond a M, a sua superiora, interpretada nvamente por Judi Dench, vai ser posta à prova, uma vez que a chefe do MI6, os serviços secretos britânicos, vai ser perseguida pelo passado. Assim que o MI6 fica de baixo de fogo, o espião vai ter de encontrar e destruir a ameaça, sejam quais forem os custos pessoais. Daniel Craig regressa no estilo extravagante de “Casino Royal” e “Quantum of Solace”
Javier Bardem vai ser o vilão desta trama e vai interpretar o papel de Raoul Silva. O elenco conta também com Ralph Fiennes, Albert Finney, Ben Whishaw, Helen McCrory e Ola Rapace. E desta vez haverá não duas mas três bond girls: Naomie Harris, Berenice Marlohe e Tonia Sotiropoulou. O filme tem um orçamento de 200 milhões de dólares.
Este regresso a Macau dá-se após Roger Moore, que era na altura quem dava a cara pelo agente secreto em «The Man with the Golden Gun», ter sido filmado em acção, em 1974, no casino flutuante no Porto Interior e na Rua das Lorchas, quando ia à procura de um português chamado Lazar. Interpretado por Marne Maitland, este português seria o armeiro responsável pelo fabrico das balas douradas do assassino profissional Francisco Scaramanga.
Em Macau, 007 desloca-se num riquexó à procura de Lazar. Chegado a um dos restaurantes da zona da Rua das Lorchas interrompe a refeição de uma idosa e de duas crianças, que estavam à entrada, para saber se sabem ser ali que vivia o Lazar. É então que este personagem aparece do interior e convida o 007 a entrar. Após uma breve conversa sobre o negócio do português, este é logo interrogado sob ameaça de uma pistola. “Nunca vi Scaramanga”, afirma receoso, revelando depois haver uma entrega de balas. “Juro que não sei. As minhas instruções são para ir ao casino, jogar e desaparecer”, diz ao mesmo tempo que lhe mostra um maço de tabaco com cinco balas douradas.
A cena seguinte desenrola-se no casino flutuante, onde o inconfundível toque da campainha indicia que terminaram as apostas de mais uma ronda do “Big and Small”. Sentado frente à mesa de jogo está Lazar, que põe o maço de tabaco, por troca com o dinheiro (pagamento das balas), num cesto de vime que tinha descido do primeiro andar, amarrado a uma corda. O cesto de vime é puxado para cima, por um funcionário do casino. A pouca distância, Bond observa Andrea Anders (Maud Adams). Este, depois de recolher o maço de tabaco, dá uma gorjeta ao funcionário do casino e sai do local, em direcção a Hong Kong. E a viagem é efectuada no hidroplanador “Flying Sandpiper”, da companhia “Hong Kong Macau Hydrofoil Co. Ltd.”.
Artigo de Hélder Almeida publicado no JTM de 13-04-2012

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Mapa de origem chinesa: final séc. XVIII

Mapa de origem chinesa representando Macau e a zona costeira do Sul da China no final do séc. 18. É similar, na forma e no contéudo "aos seis mapas em Hai quo wen jian lu (Relatos de testemunhas das regiões costeiras) de Chen Luntong" feito em 1730.
A partir da leitura dos nomes dos lugares os especialistas conseguem datar a sua origem entre 1787 - 1820. Um texto introdutório afirma que ele foi compilado no interesse da defesa costeira. O mapa de pergaminho contém centenas de nomes de lugares e deve ser lido da direita para a esquerda. Notas intercaladas com intervalos irregulares nas rotas e roteiros marítimos. As distâncias são dadas em Li, uma medida que foi mudando ao longo dos tempos. A qualidade da caligrafia e da cartografia sugere que o mapa tenha sido feito para o imperador. Aqui é mostrada a foz de Zhu Jiang (Rio Pérola) e a área de Macau (ver imagem em baixo para maior detalhe).
O texto relata: "A região costeira de Xing Hui e Hu Men na província de Cantão consiste em um importante ponto estratégico, ao qual deve ser dada atenção suficiente à sua defesa. Esta região é fortemente infestada de foras da lei no interior do rio e piratas no mar que possuem livre acesso de navegação. Ela também compartilha uma fronteira com Macau, onde barcos e navios estrangeiros visitam frequentemente. Estes navios estrangeiros devem ser sempre vigiados. Macau é o mais antigo assentamento europeu na Ásia, criado em 1557 pelos Portugueses, que na época dominavam o comércio europeu com a Ásia."
Autoria atribuída a
Arthur W. Hummel (1884-1975) tendo sido criado entre 1787 e 1820. Texto e imagens disponibilizados pela Bilioteca Mundial Digital da Unesco

domingo, 28 de outubro de 2012

D. João Paulino: 1852-1918

D. João Paulino de Azevedo e Castro (Lajes do Pico, 4 de Fevereiro de 1852 — Macau, 17 de Fevereiro de 1918) foi o 19.º bispo de Macau, tendo governado a Diocese entre 1902 e 1918.
Ca. 1900
D. José Paulino tomou posse da Diocese de Macau a 4 de Junho de 1903, data em que chegou a Macau. Naquele mesmo ano fundou a 17 de Julho de 1903 o Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau, o qual se manteria em publicação até à actualidade. Iniciou também uma enérgica acção pastoral, não só em Macau, mas em toda a vasta área do sueste asiático que então se encontrava integrada naquela diocese.
Visitou as missões do Estreito de Malaca e Singapura (cidade onde a 5 de Junho de 1904 abençoou a primeira pedra da Igreja de São José), Timor (1905) e Hainan (1906), áreas onde fomentou o zelo missionário e a criação de novas escolas e missões. No ano de 1906, fundou em Macau o Orfanato da Imaculada Conceição, que entregou à direcção dos Salesianos. O foi primeiro director do orfanato foi Luigi Versiglia (1873-1930), depois bispo titular de Carystus e vigário-apostólico de Shiuchow (hoje Shaoguan), mártir e santo da Igreja Católica Romana.
Reorganizou as missões católicas no então Timor Português, ao tempo parte da diocese de Macau. Dedicou-se com igual energia ao governo diocesano, criando novas missões, colégios e aulas no seminário, então o principal estabelecimento de ensino de Macau. Por várias vezes presidiu ao conselho governativo da Província de Macau, na ausência do governador. Outra das suas preocupações foi a delimitação das áreas sob jurisdição da diocese de Macau, em particular a delimitação entre a sua diocese e a Prefeitura Apostólica de Kuangtung (Cantão), não apenas nas áreas adjacentes, mas também nos territórios do sudoeste da China. A questão foi suscitada por solicitação do governo francês junto da Sagrada Congregação de Propaganda, já que os Governos de Portugal e da França estavam interessados na fixação de novas delimitações à diocese de Macau e Prefeitura Apostólica de Cantão, esta sob jurisdição francesa.
Estrada D. João Paulino (acesso à Penha) e o Tanque do Mainato
Neste processo conseguiu em 1908 o retorno à diocese de Macau, e por consequência ao Padroado Português no Extremo Oriente, da Prefeitura Apostólica de Shiu-Hing (hoje Zhaoqing), que havia sido sem sucesso permutada com a ilha de Hainan, devolvida ao domínio do prefeito apostólico de Cantão.
Ainda no âmbito da reestruturação da Diocese de Macau, em 1911 entregou a província de Heung-Shan à administração espiritual dos Salesianos e em 1913 repartiu a Prefeitura de Shiu-Hing entre os jesuítas e os sacerdotes diocesanos.
Interessou-se pelo o problema jurídico e espiritual do Padroado Português no Extremo Oriente, redigindo e publicando em 1917 a obra Os Bens das Missões Portuguesas na China. Também produziu e publicou uma vasta obra pastoral, incluindo numerosas provisões e escritos de natureza doutrinal, os quais foram reunidos e publicados postumamente por iniciativa da Fundação de Macau.
Na sua ida para Macau, D. João Paulino levou como secretário particular, o então seminarista José da Costa Nunes, seu conterrâneo da ilha do Pico, que haveria de lhe suceder no cargo e atingir o cardinalato.
Manteve sempre o desejo de regresso aos Açores, mas faleceu em Macau. Em 6 de Fevereiro de 1923 foram os seus restos mortais solenemente trasladados para a vila das Lajes do Pico, onde hoje é lembrado na toponímia e onde existe um monumento em sua memória. Também é lembrado na toponímia de Macau, na Estrada D. João Paulino.

sábado, 27 de outubro de 2012

Rumores em 1606

A expansão dos boatos que chegaram a sugerir, no início do século XVII, que a Espanha pensava invadir a China servindo-se de Macau como base das operações teve repercussões em Cantão. Durante o ano de 1606, altura em que se desenrolou todo este episódio, que nos últimos artigos vimos abordando, “em Cantão houve consequências desse ridículo boato já que, foi publicada uma ordem de prisão contra qualquer estrangeiro, sobretudo contra os Wo-seong (sacerdotes católicos); vigias dia e noite; encerramento de alguns portos; distribuição de armas ao povo; demolição de mais de 800 casas fora das muralhas de Cantão. O resultado de tudo isto foi a morte brutal que deram ao Irmão leigo Francisco Martins, S.J., que chegara de Siu-chau a Cantão, para conduzir a Pequim o padre visitador Alexandre Valignamo S.J.”.
Ilha Verde em 1844 por George West
O P. Mateus Ricci dá-nos mais uma achega sobre a questão: "Tinham os nossos tomado também uma ilha deserta, chamada Ilha Verde para construir uma capela e para recreio dos Padres, na qual se quiseram meter os mandarins, não permitindo que fizéssemos aqui casa grande. E enquanto tratavam de acomodá-la ao belprazer dos mandarins, um deles (segundo Pasquale D’Elia, era o doutor Ciamtascien (Chan Ta-hsien) de apelido Yun-cheng encarregado de Heong-sán de 1601 a 1605) que era de raça proveniente dos sarracenos ou maometanos, um dia em que todos os portugueses estavam na igreja numa grande festa, foi à ilha com os seus soldados e pôs fogo à casa, rasgando uma imagem de S. Miguel que lá estava. Estava lá um nosso Irmão (Ir André, japonês de Chikugo, encarregado da ilha Verde) que teve mão nalguns japoneses da nossa casa que vigiavam a ilha; quando não, teriam facilmente massacrado os chineses e até o seu capitão sarraceno. Mas, voltando o Irmão com a imagem rota à cidade, parecendo aos criados da nossa casa e a outros que isto era uma grande desonra à cristandade, lançaram-se com grande ímpeto sobre o mandarim que regressava como vitorioso a sua casa, deram-lhe muitas bastonadas, fazendo fugir todos os chineses, e danificaram todo o seu palácio, conduzindo o mandarim sarraceno, preso, a nossa casa, querendo-lhe meter medo, a fim de não ousar ser tão perverso para a outra vez. E vindo a nossa casa o Capitão de Macau (D. Diogo de Vasconcelos, capitão-mor de Macau entre 1605 e 1606) e os outros que governam a Cidade (os Vereadores do Senado) a interceder por ele, deixaram-no ir para sua casa. E depois, tratando com o Governador da cidade de Ansão (actual cidade de Zhongshan), a quem estava sujeita a região de Macau, compôs-se tudo com satisfação. Pasquale M. D’Elia, S. J., Fonti Ricciane.”
Penha por G. Chinnery 1842
Quando o Vice-Rei de Cantão teve conhecimento do que tinha acontecido “suspendeu toda a comunicação com Macau sob penalidades pesadas, e transmitiu o ocorrido ao imperador Wan-li; entretanto deu ordem para sitiar Macau por mar e por terra, invadir a cidade e destruí-la. Mas o comandante encarregado de executar estas ordens, antes de começar uma empresa dessa magnitude tratou de averiguar a verdade ou falsidade dessa acusação. Os seus espiões informaram-lhe que em Macau não se pensava em hostilidades, mas que os habitantes andavam enraivecidos uns com os outros por causa de disputas particulares. Depois, um mandarim que viveu em termos íntimos com os jesuítas em Pequim e uma reputação de cidadãos respeitáveis, enviada a Shan-chung-fu, obliteraram da imaginação do vice-rei toda a suspeita de malícia e foi concedida permissão aos chineses para viver em Macau e negociar com os portugueses.”
Os tormentos do padre jesuíta Francisco Martins são contados pelo P. Fernão Guerreiro: “Era chegado nesta conjunção, que viera das residências da terra dentro, um irmão nosso chamado Francisco Miz, de grandes prendas e virtudes, que vinha negociar o necessário para o padre Visitador Alexandre Valignano poder entrar na China, como determinava, a visitar os padres que lá por dentro estão; para o que este irmão trazia chapas dos mandarins de Nanquim, em que mandavam que por onde quer que passasse o padre, não só lhe não pusessem impedimento ou estorvo algum, mas lhe dessem todo o favor e ajuda para seu caminho. Porém foi nosso Senhor servido levá-lo antes disto em Macau a melhor vida, para lhe dar o prémio de suas muitas virtudes e santidade, e dos insignes serviços que lhe tinha feito, e trabalhos que tinha padecido por espaço de trinta anos naquelas partes da Índia, Japão e China, em promover a conversão dos gentios e o aumento de sua santa fé. O que sabendo o irmão em chegando a Cantão, e que já para esta entrada do padre não tinha que negociar, se ficou na mesma cidade negociando as coisas necessárias para as residências, como costumava cada ano fazer por ter nisto muita experiência, e saber muito bem a língua. Porém estando aqui e nesta conjunção, em que toda a cidade andava revoltada e posta em armas pelas mentiras que se tinham levantado por palavra e cartas contra os padres e o capitão de Macau D. Diogo Vasconcelos, e sendo conhecido por discípulo do padre Lázaro Catâneo, foi logo acusado e preso por mandado dos mandarins, nos finais de Março de 1606, juntamente com outros quatro cristãos e com o dono da casa em que poisava. Foram logo todos apresentados diante de um mandarim grande, o qual por mais razão que o irmão lhe deu de si, não quis crer, mas com muito grande fereza e crueldade o mandou pôr a tormentos nos pés e mãos, mandando-lhe meter canas agudos por entre as unhas; e depois disto açoitar com os bambus que são umas canas grossas, com que o costumam fazer, e que é um cruelíssimo tormento. E logo, acabado isto, o remeteu a outro mandarim inferior, o qual o examinou com muito rigor, opondo-lhe que era espia, e que vinha comprar armas e outras coisas para entregar o reino aos estrangeiros. 

S. Lázaro por G. Chinnery em 1832
A todas estas calúnias respondeu o irmão com muita constância, dizendo como tudo aquilo eram falsidades e calúnias que os inimigos dos padres levantaram; e que ele não andava neste trato, senão que era cristão e irmão da Companhia de Jesus. Sem embargo de tudo isto, o tornou a mandar açoitar com os bambus; e como o tormento era o que dissemos, cruelíssimo, que poucos açoites destes bastam para matar um homem, tal ficou o bom irmão dele, junto com o outro dos pés e das mãos, e com andar doente que em cinco dias acabou esta vida dentro no cárcere onde o tinham, entrando no céu com morte gloriosa e tendo padecido tão inocentemente.”
Artigo da autoria de José Simões Morais publicado no JTM de 17-8-2011

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

San Ma Lou revisitada

Fotografias, objectos de lojas de sapatos ou de vinho, mapas e até bilhetes ou anúncios vão ajudar a contar a história da Avenida Almeida Ribeiro. São cerca de 200 as peças que a partir de amanhã estarão em exposição na galeria do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (em Macau) para mostrar o passado de uma rua que ainda guarda alguns dos sabores antigos.
É um passeio no passado. Se a alguns a exposição “Artéria Urbana” vai trazer memórias antigas a outros vai despertar surpresas. Reunindo 200 peças sobre a Avenida Almeida Ribeiro e as artérias adjacentes, a mostra que vai ser inaugurada amanhã na galeria do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) dará a conhecer a história de uma rua que muito tem a dizer sobre a vida e o desenvolvimento da cidade.
Através de fotografias, documentos, plantas, mapas e utensílios de várias lojas características da conhecida “San Ma Lo”, os visitantes poderão “viajar” entre o passado e o presente, já que depois de atravessarem a rua encontrarão dentro de uma sala elementos tão distintos como uma calçadeira da Fábrica de Sapatos Yan Yan, do início do século XX ou medidores de vinhos utilizadas pela Fábrica de Vinhos Hang Fung, de 1950.
Desenho do Grand Hotel (no início/fim da San Ma Lou)
“As ruas de Macau registam uma história de intercâmbio entre o Oriente e o Ocidente, bem como a transformação de Macau de uma aldeia para cidade”, referiu Ng Peng In, administrador do Conselho de Administração do IACM, que organiza a mostra que conta com o contributo de 34 associações locais. “A Avenida Almeida Ribeiro é uma das grandes construções históricas de Macau e para salvaguardar o seu valor fizemos um estudo recolhendo várias imagens, mapas”, explicou o mesmo responsável.
Além da exposição está ainda agendado para sábado o seminário “Ruas de Macau – Veias e Artérias Urbanas e Memórias Históricas”, que vai contar a participação de várias académicos, explicou por sua vez o chefe dos Serviços Culturais e Recreativos do IACM. “Desde Dezembro que temos vindo a recolher os vários suportes das lojas e também fotografias para que as pessoas possam saber mais sobre a história desta rua”, deu conta Choi Chi Hong.
Mas as iniciativas não se ficam por aqui. Para atrair os mais jovens, o IACM vai ainda realizar um concurso de perguntas e respostas sobre as artérias de Macau. Para aqueles que gostam de juntar as imagens às palavras, o IACM irá ainda publicar um livro e exibir um filme com alguns testemunhos. No centro desta história estarão o restaurante Long Kei e a barbearia Kac Lan, dois marcos da San Ma Lo que a pressão da cidade obrigou a fechar as portas.
Artigo de Fátima Almeida publicado no JTM de 25-10-2012

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

"Sentir Macau"... em Coimbra

De 27 de Outubro a 2 de Novembro, o Turismo de Macau vai estar presente no Fórum Coimbra (Portugal) através de diversas actividades. A “Semana de Macau” abre com uma demonstração da dança do dragão e de artes marciais no dia 27 de Outubro, pelas 13h. Seguem-se várias palestras e workshops de iniciação à escrita chinesa no mesmo fim-de-semana, assim como provas da sua gastronomia na Praça Água do Fórum Coimbra.
Clicar na imagem para ver em tamanho maior
Durante toda a semana estará ainda patente uma exposição fotográfica do Macau antigo e moderno, dando a conhecer a riqueza patrimonial e cultural de Macau, cujo Centro Histórico é Património Mundial da UNESCO desde 2005. Também poderá experimentar pratos típicos macaenses no restaurante Serra da Estrela.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Macau na colecção "Nick Carter"

Macau sempre foi (e continuará a ser) fonte de inspiração para histórias de intriga e suspense... É o caso desta série de livros de aventura muito conhecida - Nick Carter - iniciada em 1964 e terminada na década de 1990 ao fim de 261 títulos. Os livros foram escritos por diversos autores sob pseudónimo. Dois dos títulos são inspirados no território. O último data de 1985 "The Macao Massacre" e o primeiro é de 1968. Intitula-se simplesmente "Macao". Eis o resumo da história...
Princess Morgan de Gama is an addict, a whore, and a deadbeat. As the story begins, a film of her sexual exploits is being auctioned off to three international buyers. The Portuguese government would like her locked in an asylem. Meanwhile, an Angolan rebel needs her to keep an old French general in his service, and has told the Red Chinese that acquiring her is a part of any deal they may want to make with the rebellion. David Hawk, head of AXE, has a plan to use her to eliminate the head of Chinese counterintelligence. He sends Nick Carter with her to Hong Kong, and from there to Macau, knowing that Colonel Chun Li would have a trap ready for them.The two do end up in the trap, and face a sticky end chained up in a dungeon with mutant killer rats. However, in the end, Colonel Li is killed, the Angolan rebel leads his forces to the rescue, and the Princess ends up marrying the head rebel, Prince Askari.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Chineses Alfacinhas - 6ª (última) parte

A década de 60 foi simultaneamente o culminar e o termo da actividade que durante anos animou a vida de Juan Y Hing e da esposa - foi em 1961 que aconteceu o primeiro grande dissabor da vida de Dona Olga depois do casamento com Juang: a morte de Armando, único filho da sua ligação com o militar Alfredo Rodrigues, vítima de doença grave. Juang e Dona Olga prosseguiram, apesar disso, a sua actividade comercial e, com clientes espalhados por todo o país, Juang - também conhecido por Akun (avô) - não esmoreceu e decidiu começar a investir na compra de imobiliário nos arredores de Lisboa, mais precisamente na Amadora, expandindo desse modo a sua área de negócios. Eis, porém, que sucede um segundo desaire: Juang faleceu em 1965. Foi praticamente o fim da prosperidade da produção e do comércio de gravatas, doravante conduzido sob a orientação exclusiva de Dona Olga. Mas os proventos já não justificam o seu empenho e em 1968 Dona Olga opta por abandonar esse negócio e prestar mais atenção ao comércio de imobiliário, a que ainda hoje se dedica. Entretanto, pondo em movimento o seu instinto de solidariedade familiar, Dona Olga ainda promoveu, em 1971, a vinda do irmão Kaukun de Macau, para sua casa à Praça da Figueira - e aqui desponta um outro notável caso: trazido da criação no Delta do Rio das Pérolas, este irmão só fala e escreve cantonense, mas compra diariamente o jornal “A Bola”, e sob a espessura imensa de umas sobrancelhas negras, é impossível nele identificar feições chinesas...Quantas mais histórias haveria para contar!
A Casa Chinesa
As leis da sobrevivência mantêm-se em vigor na baixa lisboeta
Como se sabe, a vida estimula os lutadores e, tal como Dona Olga se adaptou à mudança, assim o fizeram naturalmente todos os seus familiares, bem como os cunhados Wen e Angelina Chai que, em 1966 já haviam aberto um dos primeiros restaurantes chineses em Lisboa, o “Xangai”, na Avenida Duque de Loulé, deslocando para esse ramo o centro da sua actividade — porque o comércio das gravatas esmorecera e havia deixado de ser um sector maioritariamente chinês, fora-se disseminando por outras mãos, ganhando novos caminhos e outros protagonistas.
O “Xangai” inauguraria, pois, à distância de muitos anos, a moda dos restaurantes chineses e nisso foram também pioneiros em Portugal os seus fundadores que, já nos anos 80, haviam de o passar para novos empresários. Curiosamente, a zona de Lisboa escolhida para instalação desse primeiro restaurante viria a constituir-se como um dos marcos de referência para a localização de muitos outros que se lhe seguiriam.
Wen Chai faleceu em 1974 e hoje Angelina dirige um estabelecimento de retalho em conjunto com a sua filha primogénita Maria do Carmo, a “Casa chinesa”, na Rua João das Regras, em plena Baixa Lisboeta, distanciada uns breves cinquenta metros do número 12 da Praça da Figueira, em cujo 3º andar Dona Olga Lam ainda reside.
Eis que a baixa lisboeta continua a ser o cenário a que se ligam as memórias de vida do pequeno núcleo inicial desta comunidade chinesa tão discreta quanto ignorada das memórias colectivas da sociedade portuguesa. Afinal, prova irrefutável de uma especial forma de resistência à adversidade, e capacidade de integração lograda por alguns. Dona Olga é disso exemplo marcante, como o atestam a inesquecível passagem do ano de 1966/67, a bordo do paquete Santa Maria, no Funchal (em companhia dos cunhados Wen Chai e Angelina e de amigos, aproveitando a estadia para rever o velho compatriota Fong Há, estabelecido no Funchal desde os anos cinquenta, vivendo aí uma versão madeirense do sucesso continental da comunidade chinesa), as romagens a Fátima, as idas à revista...
Uma ida à praia
Querida China, lá tão longe!
Olga Lam, ao longo de todos estes anos deslocou-se diversas vezes a Macau, mas, com o avançar da idade, a frequência dessas viagens foi diminuindo. Além disso, os seus conhecimentos em Macau foram-se reduzindo a um conjunto cada vez menor de pessoas. Macau tornou-se assim cada vez mais um manancial de memórias depositadas sob vivências mais recentes. Mas a ligação da família Yuan a Macau e à China prosseguiria por outras vias e teve outros desenvolvimentos, mais ou menos fugazes, mas nem por isso menos emocionantes para os respectivos actores. Foi assim que Li Chien Yuan, a netinha de Dona Olga que aos quatro anos viera com o pai cego e a mãe para Lisboa, já cristãmente baptizada Vanessa e adulta, viveu em Macau, em plenos anos oitenta do século passado, onde desempenhou funções na Teledifusão (TDM), casou com um português (embora não militar) e... constituiu família.
Foi durante a estadia nesse Território, no início do ano de 1986, que Vanessa teve a oportunidade de receber a irmã Hua Chien Yuan, então Nádia König (vinda da Suíça, onde reside) e João Lin Yun, vindo de Lisboa, onde se tornou anos depois director do Observatório Astronómico de Lisboa. Assim reunidos os três irmãos pela primeira vez às portas da China, aí decidiram lançarem-se numa breve mas emocionante viagem com destino à cidade de Wengzhou, para verem os respectivos pais. Uma série de circunstâncias tinham confluído para que essa aventura pudesse ocorrer e ganhasse um significado de inevitável intensidade afectiva.
Na verdade, o falecimento do marido de Dona Olga Lam, determinara direitos de herança ao filho Leong Iam, mas o desconhecimento do seu paradeiro na longínqua China impossibilitou por muito tempo a resolução dessa questão legal, impasse suficiente para inviabilizar a realização de algumas transacções de imobiliários que Dona Olga pretendia levar a cabo em Lisboa. Acontece que se deu o feliz acaso de um membro afastado da família Yuan ter ido trabalhar, directamente da China para o restaurante “Xangai”e, com base em informações por ele fornecidas, foi possível restabelecer contactos, tornando possível resolver a questão da herança deixada por Juang. Concretizaram-se então os negócios que Dona Olga planeara realizar, não só para benefício próprio, mas também do casal de Wengzhou que, apesar das limitações materiais em que vivia, aplicou o dinheiro da herança, assim conseguido, no dote de casamento de um quarto filho, nascido já depois do regresso à China!
Foram estes os factos que antecederam a viagem de João e Nádia e motivaram quer o reencontro com a irmã Vanessa, em Macau, quer a visita aos pais e aos outros três irmãos mais novos nascidos entretanto e residentes na longínqua cidade de Wengzhou.
Nádia recordou-nos emocionada essa ida à China. Falou-nos do longo trajecto que tiveram de percorrer de Macau até Cantão de autocarro, de Cantão a Suzhi - um dia de taxi - e daí finalmente até Wengzhou, um salto relativamente pequeno, de novo de autocarro.
Um longo percurso vivido de forma intensa, observando, horas a fio e com estranheza, o mundo rural visível das janelas dos sucessivos transportes que tomaram - durante o dia atravessando intermináveis arrozais, de noite perscrutando na escuridão pontuada por grupos de pessoas defendendo-se do frio com fogueiras. E, apesar desta realidade que sentiu como se fosse o regresso inesperado a um passado longínquo da história do mundo que se habituara a imaginar, Nádia teve, ao mesmo tempo e apesar disso, a sensação de pertencer ainda àquela terra, de se sentir parte daquela gente, “carne e osso com raízes próprias, raízes que estavam ali” – como se o passado estivesse irremediavelmente contido nos genes e, como fez questão de acentuar, integrado até no nome que lhe fora dado à nascença - Hua Chien, que em português se traduz “Querida China”. Mas eis que, contrariamente ao que esta visão de uma ruralidade de sabor medieval lhe sugerira, o que encontrou em Wengzhou foi uma realidade urbana chinesa “à século XX”: em vez do aglomerado rural, atravessado de ruas tortuosas e sujas, invadidas pelo cheiro dos esgotos a céu aberto, encontraram afinal uma grande cidade limpa e fervilhando de gente, já então no avançado estado de modernização que lhe permitiu tornar-se num dos pólos com maior índice de qualidade de vida da China actual. Esfumadas assim instantaneamente as impressões da ruralidade medieval, chegaram finalmente ao seu destino, onde, por entre uma multidão de gente curiosa e já informada da visita, Chi Mei, a mãe dos visitantes, teve que irromper a custo, afastando as pessoas para um emocionado abraço... saudado em português!  Com a multidão a aplaudir, e abrindo alas por entre o aglomerado de vizinhos, entraram em casa onde outros três irmãos (duas raparigas e um rapaz que haveria de servir de intérprete familiar, pois é fluente na língua inglesa), os esperavam juntamente com o pai, Leong Iam. Leong reconheceu pelo tacto os filhos em visita e, esfuziante de alegria e expressando-se num português peculiar mas espontâneo, manifestou a sua admiração ao constatar o crescimento de cada um deles - “é glande, muito glande!” — expressando-se em Português, mais de vinte anos depois de uma estadia de apenas quatro anos em Portugal. Nádia recorda, a título de exemplo, o pai a ir ao bolso do casaco e a mostrar, na mão que abriu orgulhoso, um molho de parafusos, exclamando e gesticulando muito -“palafuso, pai tlabalha fáblica palafuso” - e ria-se, ria-se muito...
Ao longo dos quatro dias que durou a visita foi este o clima de emoção e alegria intensa, em que os elementos femininos da família frequentemente se comoveram até às lágrimas por entre carinhos, e patéticas tentativas de diálogo gestual, muitas delas hilariantes e inesquecíveis. Nadia König repetiu visitas a Wengzhou em 1988 e em 2002, tendo nesta última deslocação levado os seus dois filhos adolescentes. Para ela, a ligação com os pais, apesar das distâncias, foi restabelecida para sempre e certamente hoje não ocorreriam os lapsos em que inadvertidamente incorria durante a infância e adolescência, ao confundir os laços de parentesco de pais e avós.
Passeio até ao aeroporto de Lisboa
Epílogo
Em Lisboa, Olga Lam prosseguiu o seu caminho. Retirada das tarefas absorventes da vida dos negócios, vive uma vida pacata e confortável. À medida que os anos passaram foi-se integrando da melhor forma possível, ou seja, adoptando hábitos próprios da cultura portuguesa, embora mantendo intactos alguns costumes próprios da sua cultura de origem.
Vê filmes chineses, em vídeo, mas acompanha também as telenovelas da televisão portuguesa e devora diversas publicações editadas em torno do fenómeno televisivo.
Não despensa a ida regular a restaurantes chineses onde, por exemplo, oTau-Fu com o Pak Tchói e o camarão fazem o delicado contraponto oriental ao portuguesíssimo arroz de marisco. Por outro lado, é numa pastelaria da Praça da Figueira que, sem falta, todas as manhãs, de há muitos anos a esta parte, leva a cabo o ritual do pequeno-almoço, juntamente com o seu irmão Lam Kam Tong: um galão e meia torrada, ou um bolo à escolha entre uma “Madalena” e um “Pão de Deus”. E a seu lado, o irmão cumpre, também infalivelmente, outro ritual matutino: a leitura do jornal desportivo “A Bola”, que compra diariamente num quiosque perto de casa, para assim poder acompanhar os mais recentes episódios do seu glorioso Benfica. E há ainda os caracóis no Verão — “ ah! não esquecer os caracóis no Verão! “ — habitualmente acompanhados por um fresquinho “Sumol de Ananás”! Outros hábitos seriam igualmente representativos deste caso de feliz aculturação: por exemplo, durante as décadas de 80 e de 90 foi sócia da Associação das Mulheres Chinesas Amigas de Taiwan, a que aderiu por razões de convívio activo e em cujo seio levou a cabo uma série de viagens num roteiro de peregrinação turística e religiosa, de Fátima a Santiago de Compostela.
Foi este enraizamento profundo, alicerçado em quase 60 anos de vida no nosso país, que a impediu de alguma vez ter sequer considerado a possibilidade de regressar de vez a Macau. É por cá que tem a família e as suas amizades de muitos anos — normalmente cultivadas de forma acalorada, à volta de uma mesa de restaurante chinês no Areeiro – negócio montado por chineses vindos de Moçambique - jogando mah jong horas a fio.
Por outro lado, nos últimos anos, com a vaga maciça de imigrantes chineses, Lisboa ficou mais próxima do Oriente e conhece uma fervilhante e crescente actividade comercial da comunidade chinesa espalhada pela capital. E de tudo há um pouco, nalguns casos até, bem mais do que pouco: da venda ambulante, ao comércio em estabelecimentos próprios, de restaurantes a sapatarias, de lojas de revenda de roupa a papelarias, de mini-mercados a mercearias, onde praticamente há de tudo – fresco, enlatado ou congelado — o que é essencial para a confecção da culinária chinesa mais apreciada, tudo é actualmente possível encontrar. É esta Lisboa multicultural a que cada vez mais se veste ao gosto de Dona Olga. Por isso, daqui já não sai: nem da cidade que a acolheu, nem da casa onde, normalmente ao entardecer, à janela do seu terceiro andar voltado para a Praça da Figueira, se põe a observar a vida que corre num frémito pelas ruas da Baixa Pombalina.
Da autoria de Miguel Andrade, 2006

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Chineses Alfacinhas - parte 5

Quando, uns anos depois, em 1946, Olga Lam tomou a decisão de embarcar rumo a Portugal, os negócios dos irmãos Yuan já prosperavam e a venda ambulante das gravatas já dera origem a um estabelecimento comercial em plena baixa de Lisboa, na Travessa da Madalena. Claro que a jovem Olga Lam desconhecia tais factos, nem poderia imaginar o quanto isso se tornaria importante na sua vida. A cansativa viagem marítima, de cinquenta e sete dias, fora mais um obstáculo posto no caminho das incertezas do futuro, amenizadas talvez pela companhia do marido e do filho e pelo desejo de ir ao encontro de uma vida melhor.
Apesar das naturais dificuldades de adaptação a um país cujo idioma ainda não dominava, os primeiros meses pareceram-lhe bem encaminhados e Olga Lam viu cumprirem-se alguns dos seus objectivos. Instalada a jovem família numa casa na zona de Alcântara, as ocupações próprias de uma mãe preenchiam todo o seu tempo, enquanto o marido prosseguia a carreira militar. Mas eis que, digamos assim, o militar fez sair “o tiro pela culatra”, acontecendo o impensável, apenas sete meses depois da chegada: Alfredo abandonou a esposa e o filho! Olga tinha 23 anos. O filho Armando contava somente três.
Sozinha e com o filho para cuidar, foi o desespero que levou Olga Lam, portuguesa de etnia chinesa, natural de Macau vivendo em Lisboa, a socorrer-se do Consulado de Taiwan, na altura a única instituição em Portugal representativa de interesses chineses, e onde, apesar de não lhe financiarem a viagem de regresso a Macau, se prontificaram a conceder-lhe apoio para alimentação e pagamento do quarto que alugou na Rua Castilho.
E foi com a ajuda do mesmo Consulado que, pouco depois, Olga conseguiu emprego numa fábrica de conservas no Seixal, onde esteve cerca de 3 meses, juntamente com outras duas compatriotas, recebendo o parco salário de 10/12 escudos por semana. Apesar de tudo, o salário salvou-lhe a vida e as sardinhas lusitanas aplacaram-lhe a fome.
E a verdade é que foi ainda por iniciativa do Cônsul de Taiwan, de quem o então já empresário do negócio das gravatas Yuan Y Hing (que a partir de certa altura passou a apresentar-se como “Juang”, por semelhança fonética ao português João) era amigo chegado, que Olga Lam, dois ou três meses depois, mudou radicalmente a sua situação: decorria o ano de 1947 e o negócio das gravatas prosperava de tal maneira que Juang teve necessidade de contratar mais empregados. De facto, o volume das encomendas era tal que Yuan não tinha mãos para medir tantas gravatas...
Indicada pelo Cônsul, juntamente com outras três chinesas, Olga foi candidata a empregada de balcão na loja de gravatas da Travessa da Madalena e Juang Y Hing não hesitou, foi mesmo decisão à primeira vista: optou pela jovem Olga, que imediatamente se mudou com o filho para casa de Wen Chai, irmão do novo patrão e da cunhada sino-portuguesa Angelina, nas proximidades da Sé de Lisboa.
Assim mesmo: foi a adversidade que fez com que se cruzassem e ligassem diferentes destinos, até hoje. Olga aproveitou bem a oportunidade que estes novos conhecimentos e um salário substancialmente aumentado (de doze escudos por semana para quase quatro vezes mais) lhe proporcionaram. E estreitaram-se os laços de trabalho e afectividade entre Olga Lam e o seu patrão Juang Y Hing... Por isso, dessa vez aconteceu o desejado: Olga casou com Juang em 1954, antecipadamente divorciada de Alfredo, como quem encerra um capítulo e inicia outro, num casamento que inaugurou tempos de estabilidade laboriosa e tranquilizadora respeitabilidade.
Deram o nó, decisivo salto na vida
Como as exigências do negócio não paravam de crescer, o casal mudou-se para um 3º andar na Praça da Figueira, instalações que passaram a albergar quatro diferentes funções, em simultâneo: a de residência, a de ateliê de produção, a de posto de venda e a de armazém de gravatas. Graças pois, a uma persistência sem quebras, a acumulação dos lucros permitiu aos irmãos Yuan estabelecer os respectivos negócios de forma autónoma, ambos na baixa de Lisboa.
Temos portanto que, cerca de doze anos depois de ter conhecido na Avenida da Praia Grande, em Macau, o tropa português Alfredo Rodrigues, Olga Lam está em Lisboa, terra do ex-marido, casada com um empreendedor cidadão chinês, dirigindo um próspero negócio com cerca de uma dezena de empregados - e “fazendo dinheiro, muito dinheiro”, como nos disse! Basta dizer que, com um custo de produção calculado em três escudos por cada dúzia de gravatas, era vendida a unidade a sete escudos e cinquenta cêntimos...
A expansão do mercado, para além da zona de Lisboa, justificava o aumento da oferta e os Yuan distribuíam, até pelo correio, gravatas para todo o país, incluindo a Madeira e os Açores e, a partir de determinada altura, mesmo para Marrocos, num prodígio de faro comercial sem dúvida digno de registo. Eis portanto que, poucos anos depois de chegar a Lisboa, Olga Lam já estava integrada na actividade comercial da cidade e, mais do que isso, se comportava bem ao gosto de qualquer autêntica alfacinha, frequentando os espectáculos de revista do Parque Mayer, deixando-se conquistar pela música de Amália Rodrigues e indo à igreja agradecer ao poder divino a saúde e a boa sorte que afinal teve e até, como manifestação inequívoca da sua notável adaptação à vida social e à cultura popular portuguesas, passando a visitar o Santuário de Fátima com uma frequência que testemunha o enraizamento da sua fé católica.
Outras pontas de um novelo transcultural
Nos anos 50, em resultado do estabelecimento da República Popular da China, a ascensão de Mao Tsé Tung ao poder e a fuga de Chiang Kai Chek para Taiwan, verificou-se um novo fluxo de emigração chinesa. As divisões políticas no seio da sociedade chinesa tiveram imediata repercussão nas comunidades chinesas espalhadas pelo Mundo, quer sob a forma de apoio à revolução comunista, quer sob a de apoio à causa nacionalista, e muito em movimentos de solidariedade para com os compatriotas em busca de protecção. E foi nesse contexto dramático que, a exemplo do que se verificou noutros países, também a pequena comunidade chinesa residente em Portugal acolheu alguns compatriotas e apoiou a vinda de familiares, para o que teve, mais uma vez, a colaboração discreta mas efectiva do consulado de Taiwan em Lisboa.
Acontece que Juang, tinha deixado um filho na China, Leong Iam, entretanto casado e com duas filhas, e ainda hoje residente na cidade de Wengzhou. Ocorreu, por isso, aos Yuan a hipótese da vinda para Portugal de Leong Iam, a esposa e as filhas. Mas Leong Iam é cego e o pai teve dúvidas quanto à razoabilidade de o chamar para Portugal, não obstante o que em Lisboa se poderia imaginar serem as dificuldades materiais porque passavam aqueles que viviam na China. Porém, quem não se deixou manietar pelas dúvidas foi Dona Olga que tratou de convencer o marido a financiar a vinda da família Leong, argumentando com os benefícios que daí resultariam para todos - ponto de vista perfeitamente apoiado na forte tradição chinesa do desenvolvimento das pequenas empresas com base em laços de parentesco. E foi assim que em 1958, Leong Iam e Chi Mei, sua esposa, e as filhas Li Chien Yuan, com quatro anos e Hua Chien Yuan, recém-nascida, vieram viver para Portugal. Eis, no entanto, que desta vez o optimismo de Dona Olga não teve confirmação na vida real: a presença do casal em Portugal foi marcada por dificuldades de adaptação tão sérias que, quatro anos depois, o casal regressou à China. Estava-se em 1962, em pleno processo da tempestuosa Revolução Cultural!
Trata-se, certamente, de um muito raro caso de opção pelo regresso à China, em contexto idêntico, visto que dificilmente se poderia imaginar aliciante, para chineses de modesta condição, mas voluntariamente emigrados no Ocidente, um mergulho no turbilhão político chinês desses tempos da denominada Revolução Cultural. Foi, porém, a decisão do casal: regressar à mãe pátria, mas sem os filhos — não só as meninas nascidas na China e trazidas pelos pais ficaram em Portugal com os avós, mas também o menino nascido dois anos antes no Porto, onde Leong Iam e a mulher estiveram durante um curto período, a viver junto de amigos chineses também negociantes de gravatas, após desentendimentos ocorridos em Lisboa com o patriarca do clã. De facto, Leong Iam e Chi Mei regressaram à República Popular da China e nunca mais voltaram a Portugal. Ainda hoje vivem em Wengzhou.
(continua...)

domingo, 21 de outubro de 2012

Chineses Alfacinhas - parte 4

(continuação)
Angelina Chai terá sido das primeiras pessoas de etnia chinesa a nascer em Portugal, mais exactamente no Porto, em 1928. Os pais escolheram Portugal como destino no início dos anos 20. E hoje, ao cabo de 78 anos de vida, Angelina já tem alguma dificuldade em reconstituir o “puzzle” da vida dos seus ascendentes. Não fala chinês e só nos primeiros anos da década de oitenta do século passado teve oportunidade de ir à República Popular da China, integrada numa das primeiras excursões de portugueses àquele país, logo nos primórdios das novas políticas de abertura da China ao Mundo, promovidas por Deng Xiaoping.
De forma algo imprecisa, identifica a fuga à miséria e à turbulência política e social como as razões que trouxeram os seus pais até Portugal, país que, por ser um destino pouco escolhido, apresentaria a vantagem de ser mais acolhedor do que outros.
No entanto, a esta facilidade de aceitação não correspondia propriamente nenhuma política de apoio ou promoção da imigração no nosso país, talvez porque, na realidade, esses eram tempos em que Portugal não se apresentava como destino cobiçado para quem, por esse Mundo fora, procurava melhores condições de vida. Mas as linhas com que se cozem os destinos nem sempre obedecem à lei das probabilidades e a verdade é que foi nos anos vinte que se fixaram em Portugal algumas famílias chinesas, de que a Angelina Chai é descendente e testemunho vivo. A pequena dimensão dos grupos de imigrantes chineses, residentes em Lisboa e no Porto a partir dos anos vinte, foi certamente razão da tolerância que lhes permitiu fixarem-se, mas não terá deixado de constituir, por outro lado, fonte de isolamento sócio-cultural, só por si responsável pelas muitas dificuldades de subsistência que foram forçados a enfrentar, ultrapassadas a pulso e a muito longo prazo, em resultado de uma luta tenaz pela conquista de uma vida melhor.
Por isso, embora perdidas no tempo as razões da opção dos pais de Angelina Chai pela cidade do Porto, pode-se ter como certo que a escolha teve por fundamento essa constante busca de melhores condições de vida, eloquentemente confirmada, aliás, pelas suas memórias de infância que reconstituem sem hesitar o quadro das actividades a que os seus familiares se dedicavam: a venda ambulante de bijuterias, começada no Porto e que veio a ter continuidade em Lisboa, a partir de 1937, tinha Angelina já nove anos de idade.
Apesar de ter nascido em Portugal, Angelina viveu sempre a condição de membro de uma família exclusivamente chinesa, cujos laços étnico-culturais e de subsistência se prolongaram ainda pelo casamento com Yuan Wen Chai e nos cinco filhos que tiveram. Efectivamente, é só a partir desta segunda geração de descendentes que a plena integração cultural, familiar e linguística ocorre: como Angelina, os filhos nunca aprenderam a falar chinês mas acabaram todos por casar-se com portugueses, pelo que a sua ligação á cultura dos seus ascendentes pouco mais é do que uma memória ancestral ainda reflectida de forma evidente nos seus traços fisionómicos e vincada pela afirmação de continuidade de uma vocação de tradição familiar – a actividade comercial.
Os irmãos empresários e as gravatas do sucesso
Yuan Wen Chai, nascido nos arredores de Xangai em 1911, residia em Lisboa desde 1935. Antes vivera alguns anos de atribulações várias pela Europa, em conjunto com o seu irmão Yuan Y Hing, nascido em 1904. De facto, os irmãos Yuan emigraram originalmente para a Holanda, no início da década de 30, mas Y Hing esteve detido nesse país por permanência ilegal, o que levou ambos até Itália, mas aí também não se conseguiram fixar e Portugal foi o destino seguinte...
O percurso dos irmãos Yuan revela que, mesmo nos conturbados anos 30, na Europa da emergência de regimes totalitários que forjou as condições de emergência da Segunda Grande Guerra, a depauperada sociedade Portuguesa abriu as portas a alguns imigrantes chineses: compreensão para com a conjuntura política Chinesa, então a viver também uma profundíssima convulsão social e política (ocupação japonesa, guerra civil) e em consideração para com a delicadeza da situação da colónia portuguesa de Macau? Simples disponibilidade fundada na certeza de que ainda vinham longe tempos de imigração chinesa de vulto?
Fosse como fosse, depois de outros poucos indivíduos chineses, também aos irmãos Yuan foi consentida a fixação em Portugal e, nesses tempos, sair da China implicava não mais voltar (assim aconteceu também com outros dois irmãos mais novos da família Yuan: um, estabeleceu-se na Holanda, outra em França. Na verdade, de um total de sete irmãos, apenas três jamais deixariam a China).
Tal como a grande maioria dos imigrantes chineses em Portugal, os irmãos Yuan eram simpatizantes nacionalistas, partidários do Kuomintang de Chiang Kai Chek e a motivação para emigrar definiu-se no contexto de graves carências económicas e de turbulência política e social que abalava a China.
Na década seguinte, Chiang Kai Chek viria a gozar das boas simpatias do Governo de Lisboa, em consequência do que veio a ser instalado na capital portuguesa um consulado de Taiwan, com significativa influência entre a reduzida comunidade chinesa que gradualmente se vinha instalando no país. As boas relações de amizade que os irmãos Yuan estabeleceram com o Cônsul viriam a revelar-se proveitosas e Portugal, como país de acolhimento, viria a compensá-los - afinal acabariam por prosperar de forma imparável em Lisboa!
Y Hing e Wen Chai foram pioneiros do negócio de produção e venda ambulante de gravatas. Situados em Lisboa e no Porto, mas mantendo-se ligados por laços familiares e de amizade, trocaram o tipo de mercadoria — inicialmente negociavam com bijuterias — e começaram a vender gravatas de produção familiar. Angelina Chai ainda se recorda do dia em que, já na década de quarenta, o marido e o seu cunhado tomaram a iniciativa que viria a transformar as suas vidas: contribuindo cada um com a apreciável quantia de 10 mil escudos, deslocaram-se ao Porto, onde à época se concentrava praticamente toda a indústria têxtil portuguesa e, através de um intermediário, fizeram a primeira compra por grosso do tecido destinado ao corte e confecção das gravatas, mercadoria de um negócio de venda ambulante que se tornaria característico nas “baixas”de várias cidades do nosso país.
(continua...)

sábado, 20 de outubro de 2012

Chineses Alfacinhas - parte 3

Do sangue novo lusitano aos conflitos familiares
Com praticamente todo o extremo oriente mergulhado na imensa turbulência provocada pelo inicio da Segunda Grande Guerra, foi por pouco tempo que Macau escapou às consequências da agitação que abalou o planeta. E se o território, dada a neutralidade de Portugal, pôde legitimamente aspirar a uma situação de paz tensa, tal não representou ausência de sérias consequências locais, fruto da proximidade com toda a região envolvente onde a guerra eclodiu, com especial ênfase para as ondas de choque que a invasão japonesa de Hong-Kong provocou em Macau. Esse dia jamais Lam iria esquecer, pois encontrava-se precisamente a passar uma temporada de férias em Hong-Kong, em casa de uma tia, quando as tropas nipónicas irromperam pela fronteira de Kowloon, penetrando com toda a brutalidade pela colónia britânica.
No meio de pânico, e dada a fama de violadores que precedia os invasores, Lam recorda-se dos preparativos feitos por sua tia, barrando as portas de sua casa, e sobretudo de um grande panelão com carvão de lenha queimada, providencialmente preparada para ser aplicada na cara, numa tentativa desesperada para desfigurar o rosto e a aparência, antevendo o inevitável confronto com militares nipónicos que viessem, como vieram, a forçar a entrada em casa. E assim de males maiores se escaparam a jovem Lam e os seus familiares: de caras enfarruscadas, no meio de tumultos e pilhagens conseguiram nesse mesmo dia embarcar no porão de um ferry apinhado de centenas de refugiados rumo a Macau, onde a presença japonesa não tardaria, embora de forma mais estratégica do que bélica. Pouco tempo depois, a agitação social e política em que a China vivia mergulhada e a indesejável presença japonesa em Macau (1941 a 45) acabariam por justificar o reforço do contingente militar português no território. 
Foi nesse contexto que em 1939 desembarcou no enclave um anónimo cidadão português, de nome Alfredo Rodrigues, para uma Comissão de Serviço de sete anos como militar do Exército português. Sobre a vida de Alfredo Rodrigues em Macau, nada mais se sabe. Apenas a poderemos imaginar passada entre a curiosidade por uma sociedade bem diferente da portuguesa e as obrigações militares, até ao dia do ano de 1942 em que o jovem militar português e a jovem chinesa Lam Pui Yi foram apresentados por uma amiga comum. E se nada se sabia de Alfredo até aqui, foi precisamente a partir desse episódio banal que a vida de Alfredo, para o caso, começou a ganhar importância. O primeiro encontro aconteceu em Nam Van, Baía da Praia Grande. Tinha ela então quase 20 anos — e a sua vida mudou de rumo a partir daí.
Em casa da família, a relação de crescente intimidade que Lam desenvolveu com o militar português foi recebida com desaprovação total, mas, mesmo assim, insuficiente para alterar a sua vontade. É que, apesar de todas as resistências familiares, a jovem chinesa acabaria, pouco tempo depois, por ir viver com Alfredo para uma casa situada algures junto ao actual Mercado Vermelho, afinal não muito longe da residência da família. Ficou grávida nesse mesmo ano. E começava a familiarizar-se com o idioma de Camões.
Ao filho nascido em 1943 foi dado o nome de Armando, mas só a 25 de Maio do ano seguinte se deu a dupla conversão da jovem mãe, na Igreja Paroquial de Santo António, onde tiveram lugar as cerimónias de baptismo de Lam Pui Yi - que recebeu o nome de Olga Maria Lam - e a do seu casamento com Alfredo Rodrigues, já então seu companheiro em regime de união de facto, como hoje se diria. Foi oficiante o Padre Manuel Pinto Basaloco e o assento de casamento fala em “chinas gentios” ao referir-se às ligações familiares da noiva.
Ainda hoje é possível perceber os efeitos gerados por estes actos de rebeldia, nos pais e demais familiares da recém-baptizada esposa. De facto, poucas mais escolhas poderiam ser pior recebidas por uma família chinesa, naturalmente impregnada do espírito das normas da obediência filial. E compreende-se, por isso, a ausência dos pais da noiva nas cerimónias. Obviamente. Já a solidariedade e a camaradagem militar lusitana compareceu prontamente e permitiu, contra todos os ventos e marés, obter a colaboração das testemunhas Manuel da Silva, guarda de 1ª classe da P.S.P., amigo do noivo (e não necessariamente inimigo do pai da noiva, seu colega de corporação), e de Madalena Lui, doméstica, amiga da noiva - que não assinou, por não o saber fazer. A partir desse ano, Macau entraria em contagem decrescente como local de residência da jovem Olga e seu marido.
Acabada a Guerra do Pacífico, em 1946 teve início uma nova fase da História da China, com a aliás não menos inquietante Guerra Civil entre Nacionalistas e Comunistas. Foi assim que, para o jovem casal luso-chinês, a vinda para Portugal surgiu no horizonte como a melhor alternativa, uma vez que estava a chegar ao fim a Comissão de Serviço de Alfredo Rodrigues e o desempenho de outras funções não parecia concretizável naquela conjuntura. E Olga, mais uma vez contrariando a família, foi deixando crescer esse projecto dentro de si. Para a família de Olga, nem a difícil situação social, económica e política de Macau, vivendo um clima de grande insegurança e perturbação, tornava Portugal destino aconselhável. A imagem de Portugal era a de um país de muita penúria e miséria, logo desaconselhado para qualquer projecto de melhor futuro. Mas, apesar das limitações impostas pelo quase total desconhecimento recíproco dos idiomas falados por cada um dos elementos do casal, Olga manteve as ilusões que o casamento católico e um filho português lhe trouxeram, alimentadas também pelo sentimento de “perda de face”, que entretanto se instalara entre os seus. Por isso, não virou a cara ao desafio de rumar para terras atlânticas, animada por um ímpeto da vontade, superior ao medo e à dúvida que também sentia, mas que decidira enfrentar.
As apreensões da família e de Olga Lam eram justificadas. Aliás, esta nunca conhecera quem da sua comunidade tivesse escolhido Portugal como destino! Na realidade, na altura em que Olga e Alfredo, com o filho ainda criança, se preparavam para dar a volta a meio Mundo, Portugal era um país pouco menos que desconhecido para a esmagadora maioria dos chineses de Macau. Além disso, a jovem ignorava que em Portugal houvesse chineses quando, afinal, já havia uma pequena comunidade, quase invisível de tão diminuta, mas que, aos poucos, desde inícios dos anos 20, se fora fixando e crescendo e até veio a desempenhar um papel decisivo no acolhimento e adaptação de Olga Lam.
(continua...)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Chineses Alfacinhas - parte 2

Nascida em Macau em 1923, Dª Olga começou por se chamar Lam Pui Yi e guarda da infância recordações de uma vida relativamente confortável, membro de família chinesa, logo, muito distante dos hábitos que caracterizavam a comunidade portuguesa naquele Território. Mas o pai era agente da Polícia de Segurança Pública, e por isso tinha contacto frequente com portugueses, pelo menos a nível profissional.
Os primeiros anos da década de vinte foram de apreciável agitação social e política em Macau, pontuados por escaramuças entre as forças militares portuguesas e chinesas, como consequência de mal-entendidos com origem nas indefinições fronteiriças do território, ou incidentes de índole variada, entre as forças de segurança e a população chinesa, desde movimentos grevistas por disputas laborais, até à ocorrência isolada de confrontos por desacatos de carácter particular. Regista-se que entre 1921 e 1923, Macau esteve por duas vezes sob estado de sítio. E o pano de fundo era uma China imensa, República ainda titubeante, a viver tempos de grande agitação social e política.
Curiosamente e apesar de tudo, esta fase inicial da vida de Lam Pui Yi coincide também com um período em que Macau viu serem lançados alguns grandes empreendimentos transformadores da vida do Território, como o resgate de terras ao mar, a elaboração de projectos de saneamento básico, de distribuição de água e de electricidade e a promoção de outras iniciativas de significativo alcance económico, cultural e educativo.
Em 1924 o Território ultrapassa largamente a barreira dos cem mil habitantes, devido a tumultos ocorridos em Cantão, de que resultaram a chegada a Macau de dezenas de milhar de refugiados daquela cidade.
A casa da família de Lam Pui Yi situava-se nas proximidades de um dos símbolos da afirmação da sociedade chinesa de Macau, muito dentro de um espírito de contraposição à influência portuguesa, o Hospital Kiang Wu, de que um dos médicos fundadores fora Sun Yat Sen, o pai da República Chinesa. Mais perto ainda ficava o “Teatro Alegria”, popular sala de cinema até hoje. Quem conhece Macau sabe que esse era e continua a ser, em grande medida, o coração da urbe chinesa: comércio, escolas, famílias, tudo ali pertence ao mundo da cultura chinesa mais retinta. Não admira pois que na família de Lam Pui Yi ninguém falasse Português ou tivesse frequentado estabelecimentos de ensino portugueses. Nem o pouco Português funcional do pai passava para dentro de portas.
Apesar de ter frequentado, até à quarta classe, um extinto colégio católico situado algures na Praia Grande, onde também fez a catequese, a língua portuguesa continuaria e ser completamente desconhecida durante longos anos para a jovem Lam, já que toda a instrução primária oficial foi feita em chinês.
Todavia, o destino, inscrito na realidade política e social de Macau, viria a encaminhar Lam Pui Yi para uma experiência de vida bem diferente e muito divergente do que seriam as expectativas familiares. Se a infância e a adolescência foram vividas em total sintonia com os padrões de conduta próprios da sociedade chinesa de Macau, já os tempos de juventude vieram propiciar novos contactos e ambições...
(continua...)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Chineses Alfacinhas - parte 1

Depois de ter colocado um ‘anúncio’ na rede social do FB à procura de testemunhos relacionados com Macau durante a Guerra do Pacífico (1941-45), o Miguel Andrade foi um dos vários que me responderam.
Escreveu ele para mim... “Aqui há uns anos (2006) publiquei uma reportagem na revista Macau, intitulada "Chineses Alfacinhas", baseada no relato da avó da minha mulher a Patrícia Yuan. A Dona Olga vive em Lisboa desde 1946 e é natural de Macau. Uma parte do relato passa-se em Macau, durante os anos da guerra. O que saiu na revista Macau foi um resumo do extenso artigo que te faço chegar.” 
E que eu publico na íntegra aqui no Macau Antigo dividido em 6 partes.
A emigração chinesa na primeira metade do século XX
Estão unidos pelos traços fisionómicos, culturais e linguísticos, mas muito distantes da maioria dos seus conterrâneos imigrados nos últimos anos. Fazem parte ou são os descendentes das primeiras gerações de emigrantes chineses que escolheram Portugal como destino. São poucos e estão integrados. A sua geração tem ficado de fora dos estudos que nos anos mais recentes têm procurado sistematizar a história da emigração chinesa no nosso país. Longe estava ainda o tempo em que a actual vaga de emigração chinesa haveria de chegar em força a Portugal.
Nos actuais estudos sobre imigração em Portugal, não é possível localizar mais do que breves referências a este já longínquo e muito esquecido ciclo migratório, verificado genericamente a partir do início do século XX, período em que se deram profundas mudanças na organização política e social da China e de Portugal - o fim das Monarquias e o Estabelecimento das Repúblicas.
Os “sobreviventes” desse ciclo migratório, dificilmente remontam as suas memórias para lá dos anos vinte do século passado. Mas, sendo ainda possível recolher o testemunho oral de alguns deles, vale a pena fazê-lo e descobrir não só como se deu a sua integração em Portugal, mas também observar o que hoje os distingue dos seus compatriotas imigrados mais recentemente.Isto, para lá da dimensão muitas vezes verdadeiramente romanesca de tantas destas vidas. Mas é uma investigação dificultada pela erosão que a passagem do tempo traz à memória pessoal dos acontecimentos. Por outro lado, o próprio facto de se tratar de relatos dos protagonistas, aumenta o melindre do afloramento de alguns aspectos dolorosos da vivência pessoal e familiar.
Ainda assim, não obstante estas limitações, é inegável o interesse destes registos de vida, amostra das vicissitudes das gentes de matriz chinesa, de proveniência variada, que procuraram Portugal como destino, na primeira metade do século passado.
Partimos, pois, de relatos pessoais, de onde em onde cotejados com informações oriundas de outras fontes, aliás, em regra, muito parcas de referências à imigração chinesa no período considerado. Mas, obviamente, não temos a pretensão de desvendar, de forma sistematizada, o fenómeno das primeiras imigrações chinesas em Portugal de que há notícia, antes somente recolher a descrição de casos, porventura especialmente representativos de uma vivência muito particular.
Optamos, arbitrariamente, é certo, por partir de um testemunho que nos conduziu a outros e, assim, as estórias se foram encadeando numa sucessão de episódios descritores de trajectórias entrelaçadas, pontuadas com não poucos momentos surpreendentes. Algo como a ponta de um fio que se puxa e vai dar, não só a um grande novelo, mas a vários, com mais pontas e mais nós...Admitimos, portanto, que esta é uma pequena parte do manancial de informação retida na memória destes e de mais alguns protagonistas e, por isso, seria possível continuar a recolher, junto de outras fontes vivas, o que elas preservam dessa saga tão pouco conhecida, vivida tantas vezes a golpes de drama e de tragédia.
Vindos de onde e desde quando?
A memória das nossas fontes vivas não refere factos anteriores aos anos vinte do século passado. Segundo elas, já então Moçambique, onde a comunidade chinesa era mais significativa, seria ponto de partida de chineses para Portugal. Porém, como se sabe, vindos de diversas regiões da China, circulavam chineses já por diferentes países da Europa, sem autorização de trabalho, nem de residência, até conseguirem fixar-se em alguns deles. E uma ínfima parte desses pioneiros terá acabado por se estabelecer em Portugal. Entretanto, um outro também pequeno número veio directamente de Macau, na sequência de ligações matrimoniais entre militares portugueses e mulheres chinesas daquele Território, bem ao jeito das malhas que o Império teceu.
A história de Olga Maria Lam Hing enquadra-se neste último caso e, nesse contexto, tomámo-la como ponto de partida da nossa recolha e referência-charneira nesta breve crónica dos laços que se apertam ou desapertam ao sabor do fluxo de vida. Porque se trata de estórias bem reais, em que se distinguem dramas vividos com coragem, pioneirismo e incrível capacidade de adaptação.
D.ª Olga aceita receber-me na sua casa de há muitos anos na Praça da Figueira, em Lisboa, muitas semanas depois de com ela ter insistido nesta ideia de nos contar, para publicação, a história da sua vida. Manteve-se muito relutante até que finalmente lá nos concedeu a graça da sua narrativa: ”Outros teriam muito mais para contar!”, dizia.
Mas que nos contasse ela primeiro essas histórias, foi o que lhe propusemos. E, de facto, assim que começou, já nada mais a fez parar. Sessenta anos depois de ter chegado a Lisboa, o Português, fluente, ainda apresenta as saborosas modulações fonéticas e gramaticais resultantes da variante Cantonense em que aprendeu a viver. E, assim embalados na pitoresca musicalidade da sua fala, assistimos à inesperada passagem entre a recusa em falar e um entusiasmo narrativo tal que deixou de ser possível seguir um plano: ao sabor de uma memória livre de compromissos de método, Dª Olga deixou desbobinar, em várias sessões, o filme da sua vida. Tivemos, então, de adaptar o melhor possível a velocidade do registo, a uma narração torrencial. E ir decifrando, aos poucos, o sumário dos acontecimentos...E que acontecimentos foram! (continua...)