Quer dizer, se fôssemos a utilizar a expressão "Nós e os outros", o "Nós" eram os chineses, muito deles engrossando a sempre crescente corrente migratória vinda da China, e os outros éramos nós, somos nós, os de de língua não chinesa ou também portuguesa, que é o caso dos macaenses. Estes, que sempre falaram as duas línguas, raramente sabem escrever em chinês. São analfabetos, o que não lhes retira em nada o papel de intérpretes que historicamente lhes e nos valeu. O português de Portugal, mais conhecido por "reinol" ou europeu, raramente percebe, sequer, o chinês falado, o que, no caso da classe administrante, se revelou um enfeudamento à primazia dos macaenses, em matéria de diálogo. Não poucas vezes foi uma situação curiosamente protectora das boas relações Luso - Chinesas, por exemplo quando a frase expedida com alguma rispidez de um dos lados, perdia a tonalidade e o conteúdo ofensivo ao passar pelo diplomático crivo do bilingue macaense. Esta História da Diplomacia, como língua, encontrou-se, pelo menos com igual acuidade, nas embaixadas, encontros protocolares, tradução de correspondência e no quotidiano de Macau, quer administrativo, representado pela figura do Procurador do Leal Senado, sempre investida num macaense bilingue, quer no dia-a-dia da população. O mesmo é dizer que, em Macau, a diplomacia não vestiu só trajes palacianos, desceu à rua, sente-se sempre a sua utilidade, até no trato doméstico, por exemplo quando a dona de casa portuguesa se dirige com palavras menos brandas à empregada doméstica que lhe partiu o açucareiro do serviço de Cantão, e esta lhe responde qualquer coisa como "há mais à venda". Passada a constatação do acidente, e não tendo sido percebida a incorrecção verbal trocada entre as partes, é fácil retomar o sorriso e esquecer o incidente. As crianças que acompanham os pais chegados de Portugal, aprendem o chinês, falado, com muita facilidade e são muito oportunas para atender à porta, falar com o canalizador ou pedir ao taxista que siga em determinada direcção. Mas na verdade o problema de fundo é que a língua de uma minoria, ainda que administrante, não se impõe num quadro em que a maioria Se expressa noutra língua, a menos que isso tenha vantagens.
No século XVI, os portugueses tinham o monopólio do comércio entre a Europa e o Extremo oriente. E foi essa coordenada que pôs todos os povos a utilizar, como língua franca, o português de então. Era o interesse a comandar. Os missionários souberam utilizar essa vantagem, mas, sensatamente, Olharam para mais longe, e aprenderam a gramática e língua dos países onde iam chegando. Mas os povos europeus que fizeram concorrência ao "mare clausum" - lembro acima de tudo os holandeses - tiveram que aprender português para se dirigirem aos soldados nativos da índia, de Malaca, da zona das especiarias, que iam incorporando nos seus exércitos cada vez mais presentes na Ásia. E a pouco e pouco a tonalidade francesa e inglesa vieram sobrepor-se economicamente, mudando para essas línguas a agulha da bússola orientadora do comércio.
Vista da parte ocidental em 1900 - gravura
Quando o português deixou de ser único, deixou de ser útil, foi-se esbatendo. Apenas a Igreja Católica, numa cruzada cristã e de defesa face aos reformistas protestantes zelou o aprendizado, no caso agora vertente, da língua chinesa, fazendo nela imprimir a doutrina e a cultura que desejava veicular. E, para isso, multiplicou epítomas de primeiras letras, catecismos, até se preocupar em obter o adiantado grau de letrado chinês. Foi com esta metodologia que Ricci, Verbiest, Schali, Tomás Pereira e tantos outros jesuítas se tornaram respeitados junto do Imperador da China, a quem eram úteis em matérias que iam desde a Música e Pintura, à Matemática e Astronomia. O Observatório de Pequim e o Cemitério de Chala são dois, entre muitos testemunhos, desse relacionamento humano, diplomático e, tantas vezes, fecundo em termos de Missão.
O nascimento da Singapura inglesa, em 1819, e de Hongkong, em 1842, viraram o leme para a língua britânica, como instrumento útil, em negociação - Os jovens macaenses do meio século passado, falando português, chinês, francês e inglês, foram os empregados credenciados pelas agências e empresas, pelos armazéns e bancos de Sua Majestade Britânica na nova colónia. Não foi tão depressa como se julga que os "british people" deixavam a língua de Shakespeare, preferindo não se rebaixar ao diálogo directo com o povo que tinham vencido ( - Vitória - Hongkong - fora o troféu face à China ) escolhendo os intermediários macaenses; por sua vez, estes tornaram-se cada vez mais fluentes nas duas línguas de comércio entre o Celeste Império e a Inglaterra, o que velo a traduzir- se no empobrecimento da própria língua, o português, salvando numa solução de compromisso, entre as três vias de comunicação verbal, um dialecto interessantíssimo - o patuá - tão acarinhado ainda hoje, para que não morra. É um misto de português arcaico, com termos malaios, ingleses e, sobretudo, construção chinesa,- o plural, como mera referência ilustrativa, é conseguido pela repetição da mesma palavra, o que corresponde aos cânones sinológicos. A base arcaica é, porém, profunda, e tanto assim é que se torna possível, nos nossos dias, estabelecer conversação entre o patuá (ou "doce papiaçam di Macau), o "papiá cristã " de Malaca e o crioulo de Cabo Verde. Quanto à pronuncia portuguesa Moderna, por desuso quotidiano e a influências várias, foi-se perdendo É sabido que nas sociedades agrárias, à maneira romana, a língua passa, com natural facilidade, de pais para filhos. Para além da escola, há o declinar da tarde, nos campos, e o encontro de família em roda da lareira, no pátio ao luar, no largo da povoação, no oratório onde se reza o terço depois do serão de cantigas, adivinhas, contos tradicionais, que enraízam e enriquecem o património cultural - linguístico. Foi o que se passou nas terras portuguesas do Brasil, de África, da Índia, de Timor. Mas não em Macau, território reduzido à dimensão de uma cidade, eminentemente comercial. Tirando a igreja, que ainda por cima utilizava o latim, a língua útil era a dos compradores.
O comprador tem sempre razão, deve-lhe ser facilitado o diálogo e eis-nos, por força da população chinesa em presença, e do crescente império oriental inglês, a deixar de conseguir impor a 1íngua portuguesa, conquanto se tenha sempre lutado, por a oferecer nas escolas. Enquanto houve serviço militar português estacionado em Macau, fundaram-se muitos novos lares luso-chineses, onde o pai luso punha toda a familia a falar a sua língua. Mas também esse factor de defesa linguistica se esbateu com o encerramento (em 1975) do CTIM - Comando Territorial Independente de Macau. A força policial foi durante muito tempo exercida por jovens soldados portugueses que, acabada a tropa, se deixavam seduzir pela terra e pelos encantos femininos orientais, fixando-se na P.S.P. Nessas famílias, também o português era usado com exclusividade, mas os jovens chineses têm rendido todos esses cargos, o que faz sentido, já que a maioria da população é chinesa.
A língua portuguesa é útil como língua de cultura: ler os arquivos com notícias históricas de um passado luso-chinês comum durante séculos, conhecer a matriz da jurisprudência e a consequente matéria legislativa oriunda de Portugal, que se conserva na maioria dos casos, proporcionar o ensino em língua curricular portuguesa aos filhos de portugueses que vão continuar em Macau, manter uma livraria com material audio-visual em português, eis algumas das grandes mas circunscritas razões para que o português continue vivo, depois de 20 de Dezembro de 99. Por 50 anos, ou mais, Deus sabe. Mas nunca esqueçamos que, se Portugal se manteve administrante desde o século XVI até hoje, num pequeno enclave territorial da grande China, foi graças ao cariz mercantil que estrategicamente ocupa, e ao facto dos seus habitantes portugueses se terem sabido moldar a exigências linguísticas que nunca mas nunca os fizeram esquecer a bandeira verde-rubra. Eu, portuguesa "reinol", macaense por opção e gratidão àquela terra, uso agora, em sentido inverso, porque o digo aqui em Portugal, a expressão que, na doce papiação de Macau, quer dizer saudade, - Ob, Macau, que "saiôn"!
Vista da parte oriental - fotografia ca. 1900
Este texto da historiadora Beatriz Silva (minha professora de História nos tempos do liceu em Macau) tem já 9 anos, mas mantém toda a actualidade na perspicácia com que analisa a problemática da língua portuguesa em Macau. Vale a pena ler a análise de quem viveu durante 30 anos em Macau e estudou/investigou/divulgou a sua história como poucos.