Funcionário público, Afonso Correia, pertenceu ao quadro do Ministério do Ultramar e esteve vários anos em Cabo Verde antes de rumar a Macau em 1948 onde exerceu funções na Repartição da Fazenda e Tesouraria até 1954. No território foi um dos fundadores do Círculo Cultural de Macau. Na faceta de 'jornalista', escreveu e publicou inúmeras crónicas no jornal "Notícias de Macau", incluindo o teor das palestras proferidas em Portugal sobre Macau - por exemplo, no Rotary Club de Viseu em Outubro de 1952. O essencial do que foi publicando seria editado em dois livros:
"Macau terra nossa - solar de Portugal no Oriente", Imprensa Nacional de Macau, 1951; e "Um céu e três mundos", INM, 1954.
Excerto:
Este livro é bem teu, Macau.
Induziram-me a escrevê-lo os encantos das tuas feições. Quero dedicar-to, devotadamente, como um alegre presente de aniversário.
Uma grande parte foi escrita, em horas incertas, atravessando momentos em que a desdita, fruto de inexorável doença, me rondava a porta e já quando, volvida a tormenta, bebia o travo duma reparação dos tecidos orgânicos, quase impossível. Arquitectei-o, entretanto, com o espírito em teimoso desanuveamento, rendido à tua fronte auriverde, bafejado pelos estímulos da tua compostura, do teu busto de Rainha do Oriente, dos teus enlevos que são o triunfo duma vida de labor e sofrimentos contados, dia a dia, como um rosário de amarguras nascentes da tua fatalidade geográfica. Os seus materiais de contextura são formados por crónicas ligeiras, feitas de observações ocasionais, mas tocadas de sentimentos amistosos e devotivos.
Sei bem que pouco valem estas crónicas. Deves recebê-las com franca tolerância e não ver nelas senão uma sinceridade amiga e uma admiração convicta. Estima-as. Cumprirás assim um imperativo de consciência bem formada e de gratidão bem nutrida pela ventura que nelas te é desejada. De entre as inúmeras crónicas que tenho publicado, em toda a minha vida jornalística, nenhuma guardei, nenhuma guardo, porque entendo deverem ser volantes os nossos escritos, como as palavras. Se o vento e a fatalidade os leva, já não nos pertencem, em contrariedade do conceito latino — verba volant, scripta manent.
Porém, uns amigos e camaradas da imprensa daqui e de Lisboa incitaram-me a coligir algumas, no livro que agora consagro ao teu exame. Seria impossível dar satisfação a essas vontades, tão cativantes para mim, se um bem estudado método de arrumação me não facilitasse o trabalho com a demanda e o encontro dos exemplares do jornal, onde as crónicas vieram a lume. Aqui lhes deixo o meu reconhecimento profundo.
A ti, Macau, antes de pôr fim a esta pobre inscrição, quero dizer-te mais algumas palavras de amizade:
Nasceste, promissora e feliz, sob o ideal protector, próprio necessariamente de quem crê, da Santíssima Trindade. “Santo Nome de Deus” é o teu lema dignificador e eternizante. Não sei porque nem como, mas descobri, na tua vida, no teu ser, nos teus segredos, no teu clima nacional e internacional, no teu poder e no teu inconfundível posto de província portuguesa, bem portuguesa, uma, influência decisiva do número três para os teus destinos, em paralelo débil e longínquo com a já por mim invocada de ti e para ti Santíssima, Trindade.
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| Baía da Praia Grande na década 1940 (imagem não incluída no livro referido) |
Vê e considera o quadro que te confio, expresso nas seguintes palavras, que julgo dignas de atenção:
Em Macau são faladas três línguas — a portuguesa, a chinesa e a inglesa. A cidade é dominada por três colinas mestras — a da Guia, a do Monte e a da Penha. Apresenta três colégios de considerável frequência — Santa Rosa de Lima, Sagrado Coração de Jesus e S. José. Possui três hospitais, a saber: Conde de S. Januário, S. Rafael e Keang-Vu. E servida por três templos de capital importância — o da Sé, o de Sto. Antônio e o de S. Lourenço, que, por sua vez, dão os nomes às três freguesias existentes na cidade. Possui três grandes e predominantes artérias de trânsito constante —Avenida Almeida Ribeiro, Avenida da República e Avenida Marginal. Oferta aos budistas chineses três pagodes principais – o da Barra, Mong-Há e Bazar. Segue constantemente três rumos — Norte, Oriente e Ocidente. Alimenta, decisivamente, três civilizações — a portuguesa, a chinesa e a anglo-saxónica. Ostenta três imponentes arranha-céus — o Central, o Kuok Chai e o Oriental. Segue três religiões — a cristã, a protestante e a budista.
Dispõe de três territórios distintos, como capital da província que é, — o da península, o da ilha da Taipa e o da ilha de Coloane. Enamora-se de três cores fundamentais — a verde, a encarnada e a amarela. Mostra três jardins públicos ou publicitados — o de S. Francisco, o de Camões e o de Vasco da Gama; três estátuas, embora a última não figure ainda em lugar público — a de Ferreira do Amaral, a do Coronel Vicente Mesquita e a do Conde de Sena Fernandes; três cinemas, de melhor frequência — Capitol, Apolo e Vitória; três padroeiras a que todos os crentes rendem particular devoção — Nossa Senhora da Guia, Nossa Senhora de Lurdes e Nossa Senhora de Fátima. Observa três mundos distintos — o oriental, o ocidental e o austral. Dispõe de três meios de transporte — o automóvel, o riquechó e a bicicleta; três climas — o frio, o moderado e o quente. Aborrecem-na três barreiras —o mar, a China e as ilhas. Apresenta, como figuras predominantes do seu meio social e económico, três capitalistas chineses — Fu Tak Iam, Kou Ho Neng e Ho Yin. Conta três fases, na sua existência histórica — a construtiva, a expansiva e a evolutiva e segue à risca, no geral, as três grandes virtudes teologais — Fé, Esperança e Caridade.
Se nos abalançássemos a pesquisas mais prolongadas, talvez o quadro oferecesse maior extensão. Os números estão certos e faço votos por que eles, de algum modo, tenham provindo dos ditames protectores e beneficentes da Trindade em que tanto confias e que sempre tem guiado e amparado os teus passos, conforme é tua crença firme.
Não durmas, porém, confiando exclusivamente nesses ditames mesmo que eles, de certeza, sejam oriundos do Poder Supremo, invencível para os crentes.
Continua a remar sobre a maré das tuas fagueiras e nobres intenções, não esquecendo que vives rodeada pela inconstância, pelo desatino e até por signos de indesejável preponderância. A tua felicidade será a de todos nós, portugueses, filhos e não filhos desta amada terra a que não posso oferecer mais nada, além da modéstia deste livro.
Aqui o tens,
Afonso Correia."


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