Ao longo dos anos, em artigos, colóquios, nas aulas ou em livros, tenho procurado recolocar a obra de Manuel da Silva Mendes (1867-1931) no lugar cimeiro que lhe é devido, seja no espaço da filosofia, na área da educação, nos terrenos da sensibilidade estética, ou, ainda como coleccionador de arte, como cronista ou professor.
Após o trabalho editorial de Luís Gonzaga Gomes, nos idos de cinquenta, ainda não apareceu a Obra Completa, modernizada e acessível a qualquer pessoa. Faz falta à cultura portuguesa e à identidade cultural de Macau. Diga-se, a talhe de foice, que foi reeditada em 2007 , em fac-símile, pela editora Letra Livre, a sua obra “Socialismo Libertário ou Anarchismo”, com 369 páginas, originalmente publicada em 1896. Ocupei-me desta obra em 1991, na ‘Revista de Cultura’ do Instituto Cultural de Macau.
Apresento hoje aos leitores um interessante artigo de Manuel da Silva Mendes, publicado em 1900, ainda Portugal estava sob o regime monárquico e antes de se radicar em Macau.
O título é sugestivo, “A Questão da China”. Viu a luz do dia no jornal “O Regenerador”, nº 38 , de 21 de Julho de 1900, que se publicou em Vila Nova de Famalicão. Devo ao Dr. Amadeu Gonçalves a fantástica descoberta deste artigo esquecido. Apenas foi actualizada a grafia.
"Andam em bolandas as nações da Europa por segurar a paz na China. Os ‘diabos’ estrangeiros, como os chineses chamam aos europeus lá estabelecidos, tem sido trucidados aos centos, e o telégrafo cada dia anuncia novos morticínios. Mas, a que vem tão grande sanha? Que motivos tem os tais senhores chins para se atirarem aos estrangeiros como gatos a bofes? A cousa já vem de longe. Os chins nunca viram com bons olhos na sua terra os europeus. Dantes, aqui há pouco mais de meio século, a China era quase absolutamente vedada aos estrangeiros, e os primeiros que ali foram consentidos residir, mas com grande repugnância por parte de todos os súbditos do Filho do Sol, foram os embaixadores, os cônsules. Antes deles já por lá se tinham metido manhosamente os missionários, mas a cada passo eram, e têm sido, corridos, quando não trucidados.
Os cônsules foram lá introduzidos para em certo modo garantirem a vida dos estrangeiros que se arriscavam a passar ou residir nesse país do chá e do arroz. Mas os chins sempre embirraram profundamente com os senhores cônsules e mais com os senhores missionários. A estes que lhes desfariam as crenças com pretender meter lá a crença de Cristo e desbancar-lhes o Buda corriam-nos mais ou menos à socapa sempre que tinham ocasião azada. Faziam-lhe como o nosso povo rude faria a qualquer bando de missionários protestantes que se lembrassem de vir para aqui pregar às turbas: ‘lá fora ! herejes, gente assalariada do diabo!’Portugal já fez o mesmo que tem feito os chins: foi aos judeus. Nada deve admirar, portanto o procedimento desta gente de rabicho. Mas adiante.
Há uns anos a esta parte, a faina de cristianizar a China fez grandes progressos: missionários franceses, ingleses, alemães, americanos – de toda a parte. E para os proteger, navios de guerra em barda, ameaçadoramente, a bordejar pelas costas chinesas. Não é que os governos europeus se interessem grande coisa em que a China seja cristã ou seja budista. O caso é outro: é que com os missionários, ou atrás deles, vão os negociantes, e o colocar na China os produtos europeus ou tê-los sem venda acumulados nos armazéns faz beta boa diferença. O ‘pivot’ do mundo moderno é o industrialismo, e para ele viver é forçoso arranjar-lhe mercado, desembocadouros. E a China é tão extensa e tem tanta gente que lá podem despejar-se à vontade as nações europeias. Portanto toca a procurar introduzir lá as mercadorias. Os missionários são boa vanguarda? Mandam-se missionários, e quantos mais melhor; mais caminhos abrem, e se não abrem, mais pretextos dão para os canhões terem razão para falar. […].
Cada grande nação da Europa traça a sua esfera de influência e, apoiando-as com as esquadras, tem ido desde então metendo lá tudo quanto pode: telégrafos, caminhos de ferro, feitorias comerciais, o demónio. E as cousas pareciam correr bem, e tão bem que ultimamente as nações começaram a falar alto à China quando pretendiam mais do que de mansinho conseguiam. Foi o demónio, porque a China entrou de não gostar, ou antes, de não se deixar invadir assim à boa, e o caldo entornou-se. Os mais patriotas começaram de berrar contra os diabos estrangeiros e uma liga, associação, ou como lhe quiserem chamar, formou-se e organizou-se para os expulsar. Os ‘boxers’ são esses tais patriotas, assim chamados, ao que parece, porq e blasonam que hão-de pôr de lá fora os estrangeiros a murro. Nós cá diríamos a pontapés, mas como os chins parece que só tem pezinhos , dizem como uns valentes que julgam ser: a murro! Vade retro!
A murro ou por outra forma, o certo é que tem sido mortos centos de europeus, e o certo é também que não são já só os tais ‘boxers’que se atiram aos estrangeiros, mas sim todos os chineses. A Europa tem querido cortar-lhes os rabichos (com balázios, é claro), mas até hoje ainda o não conseguiram porque as tropas europeias são ainda lá poucas. Mas vão mais, e os chineses sem o rabicho ficam, que é o objecto mais precioso que eles tem. E aqui está em poucas palavras o que é a questão da China.”
O artigo é surpreendente e revela vários níveis interpretativos sobre a China. É muito nítido o seu pendor ideológico, a sua visão republicana, socialista e anticlerical, tomando partido por uma China sofrida e humilhada pelas potências coloniais. O estilo do artigo é coloquial e simples, mas denota uma boa informação.
Esta opinião de Manuel da Silva Mendes é bastante divergente das imagens de Macau e da China veiculadas pela educação popular portuguesa do século XIX, por exemplo: “O Panorama”, 1837; “O Archivo Popular”, 1841; “Diccionario de Educação”, 1873; “Diccionario Popular”, 1876. A crueza nas relações internacionais sob o paradigma da força militar a abrir o caminho para os negócios pouco se compadecia com uma historiografia ora positivista , ora romântica, enredada em preceitos do direito natural, com os olhos na missionação, mas envergonhada pela pujança de uma ética protestante que lidava com o dinheiro sem complexos. Não deixa de ser insólito que ao rememorar o passado, num artigo publicado no ‘Jornal de Macau’, em 1929, não lhe tenha ocorrido que escreveu sobre “A Questão da China”. Talvez tenha sido uma omissão deliberada.
A sua memória fixa-se em ‘fait-divers’: “Confesso: causaram-me desagradabilíssima impressão os chineses. Eu fazia-os muito outros. Nunca tinha visto nenhum em carne e osso. Conhecia-os porém: conhecia-os das figuras de caixas de fósforos e do Café Chinês da Póvoa de Varzim. Era este café (onde perdi as ditas seis ricas libras) mobilado todo à chinesa! Mesas, cadeiras, sofás, alizares das paredes com embutidos de osso e madrepérola, pintados com pagodes, chineses de rabicho sobre robes de chambre (parecia) e chinesas coradinhas, ‘mignons’, pequeninas, muito engraçadas, todas chim-chim, envolvidas em mantons de seda bordada, coisa rica… Eram estes chineses e estas chinesas que eu trazia na cabeça”. Manuel da Silva Mendes foi nomeado Professor do Liceu de Macau pelo Decreto de 31 de Janeiro de 1901, tendo tomado posse no dia 27 de Maio desse ano. O resto da história já todos a conhecemos.
Artigo da autoria de António Aresta. Publicado no JTM de 24-02-2011
PS: Estou nesta altura a finalizar a biografia de Manuel da Silva Mendes. O livro - fotobiografia - será editado em português, inglês e chinês pelo Albergue da Santa Casa (Macau) em 2014.
Na imagem acima a casa Silva Mendes (Estrada Engenheiro Trigo) ca. 1910-15 a partir da entrada do cemitério dos Parses.