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quinta-feira, 21 de março de 2019

Da Varanda de Santa Sancha

O brigadeiro António Adriano Lopes dos Santos (1919-2019) tomou posse como Governador em Abril de 1962 e terminou funções em 1966. Em 1991 deu a conhecer algumas memórias do seu mandato numa crónica intitulada "Da Varanda de Santa Sancha*: Memórias do Ex-Governador António Adriano Faria Lopes dos Santos", publicada na Revista de Cultura, nº 16, (Outubro/Dezembro de 1991) e da qual recupero aqui alguns excertos:
* referência à residência dos governadores de Macau
(...) Convidado em Nampula, em Outubro de 1961 (governava então o distrito de Moçambique), para Governador de Macau pelo Professor Dr. Adriano Moreira, aceitei o cargo com a prévia condição de ser simultaneamente nomeado Comandante-Chefe das Forças Armadas de Macau, isto por duas razões que na altura reputava fundamentais:
- Não desejar abandonar a carreira militar, da qual já estava afastado havia quase 3 anos;
- Desejar minimizar possíveis atritos, muito em voga na época, levantados entre o Comando Militar e o Governo, o que ficava eliminado à partida colocando o Comandante Militar na dependência hierárquica do Comandante-Chefe e Governador.
Só que o Comandante Militar era na altura coronel, aliás militar distintíssimo, o coronel de Art. ª Eduardo Bessa, e o Governador era tenente-coronel! Assim, e pela primeira vez na história das Forças Armadas Portuguesas, foi nomeado, pelo Governo de Salazar, Comandante-Chefe de Macau, com prerrogativas definidas na Carta de Comando, um tenente-coronel, tendo como subordinados um coronel, Comandante Militar, e um Capitão de Fragata, Comandante Naval. Tudo correu depois sem quaisquer atritos, dadas as excelentes relações pessoais mantidas com ambos aqueles comandantes. Não deixou, contudo, de ser uma situação singular, fora dos mais elementares princípios da hierarquia militar. Tudo se teria resolvido, sem qualquer aumento de encargos, pois as funções de Comandante-Chefe não eram remuneradas, através da graduação no posto imediato. Mas, inexplicavelmente, não o quiseram fazer. (...)
A primeira vez que fomos recebido pelo Dr. Salazar, em Abril de 1962, pouco depois de tomar posse do cargo de Governador, deparámos na então muito modesta e austera residência do Presidente do Conselho de Ministros, em S. Bento, com maquetas de bairros implantados num simulacro de urbanização, pretensamente destinados a alojar em Macau, talvez milhares de refugiados. Tal ideia era da iniciativa de D. Fernanda Jardim, representante em Portugal da Caritas e pessoa com acesso - que diziam relativamente fácil - ao Dr. Salazar.
Ao passar pelas maquetas perguntou-me: já viu isto? Respondi afirmativamente, insistindo ele a seguir: e que acha? -Não me parecem adaptadas nem adequadas para refugiados chineses, atenta a sua forma de viver muito especial e o seu baixo nível de vida. Respondeu com o silêncio habitual que o caracterizava, pois se sabia que gostava muito mais de ouvir do que de falar.
Escusado será dizer que as maquetes, apesar de enviadas para Macau, não foram executadas, nem os projectos constituíram encargo de Macau, como aquela senhora pretendia, alegando ter o Dr. Salazar aprovado a sua execução...! (...)
Já em 1958, o Governador de Macau, Comandante Correia de Barros, antigo aviador naval, com comissão de serviço prestada em Macau, havia proposto ao Ministério do Ultramar a execução dum aeródromo nos terrenos do Porto Exterior, incluindo o Projecto no Plano Intercalar de Fomento 1959/62, elaborado a seu pedido, pelo signatário, então chefe do Estado-Maior da Guarnição, na sua qualidade de engenheiro, e com a concordância do então Comandante Militar. (...)
De regresso duma missão oficial a Timor, passou por Macau, em 1966, o professor Edgar Cardoso, figura então já sobejamente conhecida e altamente prestigiada, em Portugal e no estrangeiro, pelos seus projectos, tidos como revolucionários, no domínio das pontes. (...) Perguntou se não estava nos planos do Governo ligar Macau à Taipa, ao que a resposta foi de imediato afirmativa, só que a falta de verbas disponíveis não havia ainda permitido a sua inscrição no Plano de Fomento em execução, mas que tal teria lugar no Plano seguinte, uma vez construída a ligação Taipa-Coloane. Imediatamente se ofereceu para fazer o primeiro estudo da ponte Macau-Taipa, por um preço simbólico, apenas suficiente para dar cobertura às despesas.
No dia seguinte propôs-se ao Governador fazer o estudo por 300 contos, o que levou o Governador a transmitir a respectiva proposta ao Ministro do Ultramar. Assim se concretizou o primeiro passo para uma obra a todos os títulos notável para o progresso e desenvolvimento de Macau e das Ilhas. Mas a ponte só foi possível graças à grande dedicação e tenacidade do Governador Nobre de Carvalho, que soube vencer todas as dificuldades e contratempos, vendo o seu trabalho coroado com a inauguração em fins de 1974, no termo do seu mandato. (...)


A posição geográfica de Macau, território encravado na China Continental, envolvido por águas chinesas, praticamente sem recursos naturais, aconselhava, por parte do Governador de Macau, a manter os desejos de boa vizinhança com a China Continental. (...)
Desejo apenas salientar as dificuldades que o governo enfrentava na década de sessenta. Ver-bas largamente insuficientes, com o orçamento, em 1966, a rondar os 50 milhões de patacas, o que em pouco ultrapassava os 8 milhões de dólares norte-americanos. Valor aproximado tinha então o orçamento do Plano de Fomento o que, no total, significava uma disponibilidade anual, para o governo e serviços autónomos, da ordem dos 500 mil contos; números que, em valor acrescentado, não têm paralelo com os orçamentos actuais. De resto, também não são comparáveis com as de hoje as estruturas dos departamentos públicos e empresas privadas da altura, e consequente capacidade de produção e de realização.
Bastará lembrar que, ainda em 1966, o governo de Macau era constituído pelo Governador, com um chefe de gabinete, um secretário e um ajudante de campo, apoiado pelos serviços públicos encabeçados por chefes de serviço.
Durante o meu governo as soluções tinham de ser pensadas e repensadas, sobretudo quando os problemas eram de natureza política em relação à RPC, ou afectos a organizações ou a pessoas a ela ligadas. Para isso contribuía a não existência de relações diplomáticas com a RPC e também a presença em Macau, até Abril de 1965, da Delegacia Especial do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Formosa, de que falaremos adiante.
Aliás, Macau foi sempre, ao longo de mais de quatro séculos de presença portuguesa, um território, embora minúsculo, muito difícil de governar, um quebra-cabeças quase permanente para os capitães-generais e, depois, para os Governadores. Apesar de tudo, nunca a bandeira portuguesa deixou de flutuar nos mastros da "cidade do Nome de Deus, não há outra mais leal". 
Considerámos sempre fundamental aumentar a presença de elementos qualificados, naturais de Macau, em lugares de importância da Administração, como entendemos ser indispensável a colaboração de figuras de relêvo locais, portugueses, alguns naturais de Macau, e da comunidade chinesa. Foram muitos, e é justo salientar que se obteve sempre a melhor colaboração de todos.
Assim, eram com frequência ouvidas - quanto a assuntos com previsíveis implicações políticas, ou quanto a outros que chegavam ao governador já com problemas criados, alguns ridículos na aparência, mas reais frente a interesses chineses.
Destes citarei, sem ir mais longe, os das hortas da Ilha Verde e dos Aterros do Porto Exterior, terrenos com frequentes interesses para construção ou para arruamentos. O Conselho do Governo, presidido pelo Governador e com reuniões reservadas, era também ouvido com frequência. Não vou citar nomes para evitar melindres. 
 A tranquilidade do território significava, para o governo, condição "sine qua non" do seu desenvolvimento. Na verdade, procurava-se, através do aumento e melhoria das actividades industriais, fomentar o progresso do território, pois não podia apoiar-se essencialmente, como sucedia, nas receitas da concessão do ouro, então a maior, e da concessão do jogo. Daí que a matriz determinante da acção govemativa fosse o factor político relativamente, claro está, à R. P. C.. Como consequência, tinha especial interesse para o Governo estreitar as relações com algumas entidades chinesas de Macau.
Ho Yin, como presidente da Associação Comercial e deputado à Assembleia Nacional Popular em Pequim, como representante dos chineses de Macau, era o mais saliente dirigente da comunidade chinesa de Macau, já comprovado amigo dos portugueses e, do antecedente, membro do Conselho Legislativo.
Sem dúvida homem notável e esclarecido, mostrou-se sempre disponível e pronto a colaborar com o Governador na resolução de casos "difíceis" com implicações políticas locais ou externas em relação à RPC. De notar que este conceito tinha, em Macau, um significado mais lato que o usual. Por vezes pequenas questões afectas à administração portuguesa, serviços públicos, departamentos militares ou Leal Senado, envolvendo população ou interesses chineses, avolumavam-se, sobretudo quando intervinha a Associação dos Operários, na pretensa defesa dos interesses dos associados. Mas, e não só, outras figuras de relêvo da comunidade chinesa, como Ma Man Kei, vice-presidente da Associação Comercial, Chui Tak Kei, vogal da Comissão Administrativa do Leal Senado, Roque Choi, procuravam defender os interesses de Macau, perante o Governo.
De salientar que pouco tempo após a minha chegada a Macau, logo a seguir à ocorrência do incidente em que foram recolhidos nos limites das nossas águas, por uma vedeta da Polícia Marítima e Fiscal, alguns fugitivos da RPC, perseguidos por uma vedeta chinesa, em conversa com Ho Yin concluí pela grande vantagem em iniciar contactos com o Sr. Ho Ping, efectivo representante da RPC em Macau e gerente da firma Nam Kwong, verdadeiro entreposto comercial da RPC em Macau. Os contactos passaram a realizar-se, mas com carácter reservado e na residência de Santa Sancha.
Considerei-os sempre da maior utilidade, durante cerca de três anos, mantendo nós as melhores relações pessoais, embora não oficiais, como é óbvio, com pleno conhecimento do Ministro do Ultramar e do Dr. Salazar. Aliás o Sr. Ho Ping só contactava o Governador em casos considerados graves, principalmente relacionados com actividades da Delegacia da Formosa, ou quando recebia indicações do Governo de Cantão, geralmente através de cartas, escritas em cantonense, de que era portador, já traduzidas em português, sempre dirigidas ao "Sr. António Lopes dos Santos", pelo chefe do Departamento de Negócios Estrangeiros do Governo de Cantão.
Durante o meu governo três problemas eram levantados com relativa frequência por aquelas autoridades e transmitidos por cartas que normalmente o Sr. Ho Ping ou o Sr. Ho Yin, me entregavam, sempre acompanhados por Roque Choi que as explicava em Português:
- A exigência da entrega às autoridades da RPC dos sete fugitivos atrás indicados, afirmando serem espiões com crimes praticados antes da fuga, reclamação que nunca foi atendida, alegando o governo de Macau o direito de asilo político, mantendo-os o governo presos, para evitar piores implicações com a RPC;
- O aluguer, afirmavam aquelas autoridades, da emissora de radiodifusão oficial de Macau aos americanos, sob a capa de uma sociedade comercial, constituída no território. O governo de Macau estudou profundamente o assunto e a natureza da Sociedade a quem a direcção da Emissora tinha alugado as horas de emissão, por contrato, tendo o governador, ouvido o consultor jurídico, decidido considerar aquele contrato nulo e de nenhum efeito e suspender o aluguer, o que motivou um recurso daquela empresa para o Conselho Superior Ultramarino ao qual foi negado provimento, o que fez morrer o assunto;
- As actividades da Delegacia do Governo da Formosa em Macau, consideradas pela RPC atentatórias da sua soberania e criminosas. Na verdade, provou-se que aquela Delegacia apoiava, se é que não dirigia, actividades clandestinas contra a RPC. Mais do que um posto diplomático era um centro de actividades clandestinas e de espionagem. Assim, por determinação do governo central através do Ministério do Ultramar, foi aprovada a proposta do Governo de Macau e encerrada aquela Delegacia em Abril de 1965, após várias e infrutíferas tentativas em contrário do Governo da Formosa.
Refira-se, por curiosidade, que os E.U.A., da sua equipa diplomática sediada em Hong Kong, dispunham de nada mais nada menos do que de sete cônsules acreditados em Macau, cada um deles com o seu "pelouro" específico. Macau era, nessa altura de difíceis relações entre os E. U. A. e a China, uma excelente porta de entrada. (...)

Gov. Lopes dos Santos no aeroporto de Lisboa de regresso a Macau: 10.5.1965

De seguida reproduzo um depoimento de Garcia Leandro publicado no jornal Ponto Final, também ele ex-governador de Macau (1974-1979), sobre o mandato de Lopes dos Santos:

“Governou Macau em época politicamente difícil para Portugal e para a China, a que se adicionaram também problemas financeiros locais, tendo criado um excelente relacionamento com as comunidades locais e com os representantes da R. P. da China. Deste período ressalta como decisão fundamental o ter alargado para 25 anos a concessão do jogo à STDM, com revisões possíveis em cada cinco anos.” (...) 
Embora o contrato com a STDM tivesse representado um grande salto qualitativo dado pelo antecessor de Lopes dos Santos - Jaime Silvério Marques - em 1961, a fixação de um limite de apenas cinco anos não permitia exigir àquela Sociedade um plano de grandes investimentos de médio e longo prazo. “Com a alteração de Lopes dos Santos tal tornou-se possível, situação de que ainda vim a beneficiar com a primeira grande revisão do contrato dos jogos com a STDM assinado em Abril de 1976, em que a posição do Governo saiu muito reforçada, não só nas receitas que aumentaram muito, mas também noutras condições como as relacionadas com a fiscalização e respectivos controlos. Foi um processo muito difícil e tenso, tendo o futuro vindo a provar a justeza das exigências do Governo; veio a verificar-se que a SDTM poderia pagar muito mais, o que posteriormente se concretizou. E uma árvore para crescer precisa sempre de uma semente; o bem-estar e os créditos que Macau passou a receber e que têm vindo sempre em crescendo têm a sua origem nestas sementes lançadas há mais de quarenta anos”.

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