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sábado, 4 de fevereiro de 2012

Macau na Exposição Universal de Paris em 1900

A participação de Macau na Exposição Universal de Paris, em 1900 , constituiu um raro pretexto formal para a internacionalização do Território no seio da constelação colonial portuguesa. Essa iniciativa permitiu à sinologia portuguesa fazer uma prova de vida, quer em termos doutrinários, quer em termos de estratégia política e diplomática.
A Exposição Universal de Paris, com os Jogos Olímpicos a decorrerem em simultâneo , foi inaugurada pelo Presidente Emile Loubet, tendo ocupado uma enorme área de 108 hectares. O Pavilhão de Portugal, onde Macau se integrou, foi concebido pelo arquitecto Ventura Terra.
No dia 11 de Março de 1899, o Governador de Macau, Eduardo Galhardo, faz publicar no Boletim Oficial da Província de Macau uma portaria onde se nomeava uma comissão que iria preparar a representação de Macau na Exposição Universal de Paris em 1900, cuja nota preambular é bem explícita: “Tendo o governo de Sua Magestade resolvido fazer representar as províncias ultramarinas na Exposição Universal de Paris de 1900 e desejando que tal representação se faça por forma que possamos tomar naquele certame o honroso lugar que nos pertence como nação colonial, incumbe-me de promover nesta província uma exposição preparatória de tudo quanto possa dar ideia do desenvolvimento desta colónia”.
A Comissão foi presidida pelo juíz Albano de Magalhães e tinha como vogais Artur Tamagnini Barbosa, António Joaquim Basto, Lourenço Marques, Augusto Abreu Nunes, José Gomes da Silva, António Talone Silva, Leôncio Ferreira, Pedro Nolasco da Silva, Carlos Rocha d’Assumpção, Lu Cao , Chou Sin Hip, Ho Lin Vong, Cuong Fat Ching e Chan Hoc Hin. Como se vê, tudo gente reputada, com influência e reconhecimento social.
Têm o cuidado de escreverem no extenso Relatório, que entregam ao Governador, no dia 30 de Novembro de 1899: “Os europeus, tão desdenhosos, cheios de orgulho pelos progressos que tem feito nas artes e nas ciências nos últimos 300 anos, estão continuamente a informar-se como pensam, raciocinam e sentem os chinas, homens que eles olham como sendo-lhes inferiores sob todos os aspectos; e estes não se importam se os europeus raciocinam nem mesmo se existem!”. Esta notável reflexão é feita em contraciclo, pois o que estava em voga era um eurocentrismo que cavalgava a onda do imperialismo colonial inglês, especialmente activo no extremo oriente.
Continuam a desfazer equívocos: “Os chinas tem sido muito diferentemente apreciados no Ocidente; e essa diferente apreciação provém, em geral, do bom ou do mau humor do narrador que descreve os seus costumes, ou do viajante de quem se ouviram as descrições, nem sempre serenas, desapaixonadas, colhidas na observação fria dos seus hábitos e dos seus costumes, da sua moral e da sua religião. Uns estão em perpétua admiração perante este povo colossal no seu trabalho, na sua filosofia, na sua moral; outros não deixam de os desprezar e de os ridicularizar”.
No Catálogo dos Produtos, escolhidos e enviados por essa Comissão, constam 600 espécimes (a título de exemplo, quadros bordados a seda, leques de bambú, travesseiros de louça, flores artificiais para o cabelo, cabaias de seda, chapéu para mandarim, toalhas para mesa, altar chinês com 10 ídolos, caixa de marfim, escarrador de cobre, latas com frutas de conserva, quadros de jaspe, lanterna para caçar mosquitos, braceletes de prata ou ábaco chinês de prata) e uma valiosa colecção de madeiras (ébano, tamarindo, narra, teca, cânfora, molavel, amoreira e entena).
Uma prenda especial e simbólica foi concebida deste modo: “mandou a comissão expressamente pintar a óleo em placa de marfim o retrato de Sua Magestade a Raínha D. Maria Amélia para lhe oferecer. Foi a pintura executada por uma fotografia de Reutlinger – Boulevard – Montmartre – Paris – que para esse fim foi pedida de Lisboa por obséquio de S. Exª. o Governador desta colónia a instâncias da comissão. A fotografia era já uma bela produção de arte e dava da Nossa Augusta Soberana uma ideia exacta, fidelíssima, não lhe faltando nada na expressão, desde a tradicional meiguice do seu olhar e do seu sorriso até à soberana majestade que irradia do seu rosto encantador. O artista china que foi educado em Macau, no Seminário de S. José, onde aprendeu desenho e pintura, compreendeu-o absolutamente e na pintura que fez por cópia da fotografia foi tão fiel, tão cuidadoso, que a pintura a óleo antes parece a própria fotografia colorida, animada. É um belo retrato em marfim que nada deixa a desejar das produções europeias”. Qual seria a identidade do artista e onde estará a obra de arte?
O espaço dedicado às colónias portuguesas
Essa gentileza deverá ser interpretada como uma mensagem da vera harmonia e da convivência entre portugueses e chineses e o símbolo de uma arte cuja multidimensionalidade não confunde o belo como categoria ética. De resto, e estamos em 1899, a afeição da Comissão ao amanhecer das ideias republicanas na China está bem patente no assentimento e aplauso a uma prática revolucionária, já instituída em Macau, a contestação à aristocracia do andar e do calçar: “nesta colónia tem já criado raízes a conhecida seita estabelecida contra os pés amarrados, e muitos dos chinas principais desta cidade nela estão filiados. Os que abraçam as doutrinas humanitárias da seita comprometem-se a não permitir que sejam deformados os pés de suas filhas e a não deixarem casar os seus filhos com raparigas de pés deformados. O Comendador Ho Lin Vong, membro desta comissão, pertence a essa seita bem como Ip Loc San, ambos importantes negociantes desta praça”.
A plêiade de sinólogos da Procuratura dos Negócios Sínicos, integrando também professores, funcionários públicos, advogados e militares, deixou no Relatório uma marca de erudição, citando, por exemplo, Leibnitz, Humboldt, Voltaire e Montesquieu. O olhar sobre a China é tributário das obras de Du Halde e de Abel Remusat, deixando entrever a influência da sempre actualizada escola francesa do extremo-oriente. Dos portugueses, apenas são citados Calado Crespo, Wenceslau de Moraes e Bento da França.
Esta corrente sinológica, de raíz administrativa e burocrática, esgotava-se no mister de traduzir e de interpretar, o que, em abono da verdade, fazia bem. Ao não passar esse limiar administrativo não se criou um magistério, não se potenciou um imperativo categórico que obrigasse a um agir cultural. Pedro Nolasco da Silva, com outro apoio, poderia ter refundado a Escola Sinológica Portuguesa de Macau.
Pedro Nolasco da Silva (1842-1912)
Realmente, desde 1884, que Pedro Nolasco da Silva persistia na publicação de estudos, ensaios e outros projectos pedagógicos, especialmente interessantes os que direcionou para os alunos da Escola Central de Macau, sem esquecer a tradução, em 1903, da “Amplificação do Santo Decreto”, do Imperador Yongzheng. Dos outros membros da Comissão, Carlos Rocha d’Assumpção também publicou obras escolares dedicadas ao estudo da língua sínica, Leôncio Ferreira estava a preparar a sua última obra de filosofia moral cristã ou Lourenço Marques , porventura o mais culto apologeta do darwinismo, com dois livros publicados em Hong Kong. Quase todos antigos alunos e discípulos de Francisco Xavier Rondina, uma figura de referência do pensamento filosófico neotomista em Macau.
Olhando para o outro lado, também não existiu a fortuna de encontrar um mandarim regional, mesmo um vice-rei, verdadeiramente letrado e com uma visão diplomática para insinuar junto da elite portuguesa uma alfabetização sínica, o gosto pela pintura , pela filosofia e pela fruição da poética. Eram tempos de decadência e de desagregação, como se escreve no Relatório: “os homens de génio, capazes de dar impulso às artes ou às indústrias, ficam paralisados com a ideia de que ninguém premiará o seu mérito, e de que os seus esforços receberão do governo indiferenças em vez de recompensas. Não era assim nos séculos passados”.
A complexa hierarquia do mandarinato civil e judiciário e a do mandarinato militar ocupou a atenção da Comissão que produziu uma bem elaborada síntese informativa, decerto muito apreciada pela diplomacia portuguesa e pelos eruditos.
A difusão da cultura merece duas linhas, mencionando-se a “Tipografia Mercantil de Nicolau Tolentino Fernandes” , a “Tipografia Noronha”, as tipografias dos jornais “Echo Macaense” e “Lusitano” e a tipografia do Seminário de S. José. E “deve dizer-se que a liberdade de imprensa é antiquíssima na China e que os chineses fazem dela um uso moderado, e não estão no hábito de abusar ; imprimem coisas que podem recrear ou instruir o público sem faltar às virtudes fundamentais e sociais impostas por Confúcio”.
Em 1899, na capital portuguesa, João Feliciano Marques Pereira publica uma revista que tem por título ‘Ta-ssi-yang-kuó - Arquivos e Anais do Extremo Oriente Português’, que “constituirá uma espécie de repositório de documentos antigos, inéditos ou não, relativos à expansão portuguesa nessa parte do mundo, e bem assim de estudos, monografias, apontamentos, sobre a história, civilização, etnografia, filologia, linguística, folclore, usos e costumes de todos esses povos que estiveram ou estão em contacto com os portugueses, como, por exemplo, os chins, os malaios, os siameses, os japoneses, etc.”. Foi uma ousada viragem cultural que procurou adicionar ao nacionalismo uma legitimação política com matizes epistemológicos, seguindo o modelo francês. E se a sinologia ganhou um outro veículo difusor dos seus problemas e das suas necessidades de internacionalização e cooperação, não se libertou, contudo, da incestuosa ligação ao orientalismo.
Macau entendido como um entroncamento de culturas não é uma formula gasta e entediante, é sobretudo um conceito intemporal que transcende a retórica e cuja inevitabilidade assumimos com a mesma ironia com que Eça falava dos bacharéis. A persistência deste modo de pensar e de agir, flexível como o bambú, acaba por se revelar uma insuspeita superioridade porque evidencia uma diplomacia cultural de filiação aristotélica que faz do agir prudencial a pedra de toque da acção. E na arte de viver, as sucessivas elites portuguesas de Macau foram tão competentes quanto sábias.
Artigo da autoria de António Aresta publicado no JTM de 3-2-2012
NA: a selecção de imagens é da minha autoria; os dois postais sobre a exposição a cores fazem parte do espólio da Iconoteca do Museu Nacional de Artes e Tradições Populares de Paris.

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