"(...) não vês como se encurva ante as aguas do Oceano essa extensa bahia da Praia grande, toda orlada de formosas habitações, amplas e arejadas, sustidas sobre columnas ao gosto asiatico. Não vês lá no extremo os penedos escalvados que formam uma muralha exterior á fortaleza de S. Francisco e n'esta ponta a fortificação do Bomparto, como as extremidades de um Crescente, que segundo dizem os viajantes de Italia, fecham uma bahia muito similhante á de Napoles.
Isto é pelo lado do mar, agora pela parte do rio tambem encontrarás uma bonita perspectiva; a fortaleza portugueza da Barra e o pagode chinez do mesmo sitio (templo de A-Ma), o soberbo edificio da alfandega (Alfândega chinesa - havia esta no Porto Interior e outra na Praia Grande; o gov. Ferreira do Amaral acabou com as duas) entre palacios de particulares, e ao lado de cabanas chinezas, mil embarcações de estructuras phantasticas; e lá no fundo, as montanhas do Celestial Imperio.
Para o centro da cidade vês tambem as torres e cupulas de varios templos, as sotéas e mirantes de lindas casas apalaçadas, pequenos jardins, pobres fontes e ruas estreitas mas aceiadas no bairro portuguez, immundas e emaranhadas no bazar chim.
A cidade é do feitio de um X ou cruz de Santo André; por todos os lados lhe bate a água do Oceano ou do Tigre, e de todas as montanhas que a circundam se gósa o espectaculo completo da sua povoação.
Na base da fortaleza do Monte, cidadella d'onde partem as muralhas para uma e outra extremidade do logar, ha um bairro miseravel de pobres christãos de todas as raças em que predominam os Timores e as mulheres sem nome; são becos mal gradados na esquina de um dos quaes se vê este letreiro 'rua de D Queixote'.*
Uma das pernas do X é o isthmo que liga o territorio portuguez ao imperio e lá se vêem ainda as ruinas da porta do Cerco, ou do Limite, e um pouco áquem, um tosco pilar que designa o sitio onde caiu golpeado por seis chins o desgraçado temerario e honrado governador Amaral.
Para fóra do porto de Macau, no declive de uma colina, enxerga-se a fortaleza da Taipa e ao sopé mal saindo a espaços das ondas (...)
Excerto de "Um passeio de sete mil leguas: cartas a um amigo", da autoria de Francisco Maria Bordalo.
* Os registos do final do século 19 referem apenas a Travessa de D. Quixote, e já agora, também a Travessa de Sancho Pança. As duas ainda existem actualmente.
| Baía da Praia Grande vista a partir da Fortaleza do Bomparto Pintura de meados do séc. 19 (autor anónimo) não incluída na obra referida |
Várias vezes mencionado aqui no blogue, Francisco Maria Bordalo (1821-1861), oficial da Armada, foi secretário do governador de Macau entre Janeiro de 1851 e Maio de 1852. Neste período, com a patente de 1º tenente, trabalhou com os governadores Francisco António Gonçalves Cardoso (1800-1875) e Isidoro Francisco Guimarães (1808-1883).
Ficou também para a história como autor de múltiplos artigos na imprensa e alguns livros: "Viagens na África e na América" (1854), "Scenas de Escravatura" (1854), "Quadros Marítimos" (1854), "D. Sebastião, o Desejado - Lenda Nacional" (1855), "Navegadores Portugueses" (1855) "Navegadores Estrangeiros" (1855), "Viagem Pitoresca à Roda do Mundo" (1855), Trinta Anos de Peregrinação, Manuscrito Achado na Gruta de Camões (1852), "Sansão na Vingança" (1854), Um Passeio de Sete Mil Léguas (1854) e "Eugénio, Romance marítimo" (1846).
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