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domingo, 29 de março de 2020

"Um cantinho português na China"

"Um Cantinho Português na china" é o título do artigo de página inteira da autoria de Lima Figueirêdo publicado na edição de 31 de Maio de 1941 da "Revista da Semana: publicação de arte, literatura e modas" (Brasil). O autor esteve no território e escreve em português do Brasil.

Depois de desvendarem terras e mais terras, cujos mistérios deixaram de existir para a gente branca, os portugueses se viram, de um momento para outro, despojados de quase tudo que haviam conquistado com energia e valor. Ingleses e bátavos sempre é alheta dos descobridores, procuravam inverter, em favor dos seus pavilhões, as regiões ferazes que iam topando pelo mundo fora. E, como sucedeu no Brasil, lutas heróicas foram travadas na defensão do chão em que Vasco da Gama, Cabral, Afonso de Albuquerque, Rafael Perestrelo, Fernão Peres de Andrade e muitos outros cravaram a bandeira lusitana. 
À força das armas quase nada conseguiram, porém com o tempo, galgando com mais facilidade o aclive do progresso, conseguiram tudo, ou melhor quase tudo, que vinham há séculos desejando. Portugal sentiu seu império minguar sem ter forças para defendê-lo, como outrora fizeram seus impávidos avoengos. 
E hoje? O perigo se acentua. Moçambique e Angola na África, Macau, Timor, Timorlau e Goa na Ásia continuam, pela fraqueza da metrópole, a desafiar cobiças dos povos fortes que querem a hegemonia do mundo, ou das raças prolíficas e de notável engenho empreendedor, as quais procuram novas terras sob o argumento da necessidade de um lugar ao sol.

Macau, outrora conhecida por Amagau e chamada Ngaomen pelos chins, foi por estes cedida em 1557, mercê dos auxílios recebidos dos portugueses, para pôr um paradeiro nas ações ousadas dos piratas que infestavam aquelas ínvias paragens. Há quem afirme que o nome Amagau veio de Ma Kok Miu ou "Templo da Deusa Ama", sob a proteção da qual ficaram os lusos com aquele cantinho o guisa de entreposto de compra e venda. Dia a dia Macau crescia de importância pelo montante das transações que nela eram levadas a efeito. O britânico, entretanto, não gosta de ficar longe de any part onde esteja jorrando ouro, e por fas ou por nefas conseguiu dos chins - Hong Kong, com um porto profundo, capaz de relegar como relegou o porto luso a uma secundária importância. 
Ultimamente Macau cresceu de vulto aos olhos daqueles que visitam o longínquo oriente, por haver Portugal permitido que a linha aérea transpacífica americana tivesse em suas terras seu ponto final. 
A colônia portuguesa é uma aglomeração chinesa, na qual em 160.000 almas quiçá-se contem apenas 4.000 peninsulares. Os nomes das ruas e demais vias publicas são lusos todavia nas fachadas das casas comerciais só se vêem berrantes letreiros em caracteres chineses. A não ser uma ou outra nuance portuguesa que se lobriga de longe em longe o restante é completamente chinês. A língua normal é o cantonês, porém entre gente culta fala-se o inglês que é - pode-se dizer - o idioma oficial. Os macauistas, isto é, gente de sangue híbrido, falam com certa perfeição o português e têm prazer em dizer que são portugueses, se bem que não possam, negar, pelo amendoado dos olhos, a parcela asiática. Como os nossos mamelucos não toleram o chim e miram o ocidental, maximé o britânico, através de um mixto de ódio e inveja. 
Informaram-me que em Macau é obrigatório o ensino da língua de Camões Não sei atá que ponto irá a verdade deste fato, contudo posso afirmar que na montra de uma livraria avistei livros didáticos em nosso idioma.
Ao contemplar aquela vitrine mal arrumada lembro-me que esbocei um sorriso de satisfação - lá estava uma obra de autor brasileiro - O Príncipe de Nassau, de Paulo Setúbal. Dos nossos jornais, somente "A Noite" consegue chegar até lá uma vez ou outra. Seu representante foi solicito em proporcionar-me sobejas amabilidades.
Em todo o Extremo-Oriente não encontrei um negro. Já estava mesmo com vontade de 
ver um creoulo. Tive meu desejo satisfeito. O português não pode viver longe da gente de Chan - leva-la para onde quer que esteja, é o seu lema. E lá estão as com panhias de negros de Moçambique: altos, fortes, de basta carapinha e beiçolas caídas, fardados de caqui, com calças curtas, meias de foot-ball e casquete de fuzileiros navais. 
Que tipo saírá da fusão do negro com o amarelo? A maior parte da população entrega-se à pesca que produz a principal fonte de renda, avaliada em quase cinco milhões de escudos por ano. Os biscoutos de Macau também são famosos e largamente conhecidos, constituindo-se em excelente fonte de receita. Pelo gracioso e atraente das suas embalagens, graças à proverbial habilidade dos chinas, compradores, o chá, o tabaco, o fubá de arrôz e o ópio adquirem bem importante número de compradores.
Nos tempos nunca olvidados de paz no Extremo-Oriente, muitos estrangeiros endinheirados procuravam aquele recanto, de Outubro a Março, para gozar o "bon air" do seu clima mediterrâneo. O Hotel Riviera enchia-se de novos Cresos e a pequenina e bombeante cidade ficava faceira, quando lhe davam o título de "Monte Carlo do Oriente".

Entre as curiosidades de Macau está a pedra de engomar - pesa cerca de meia tonelada e e manejada pelos pés de dois operadores. Qual cabeça teria produzido tal invento?
Visitando-se a colônia, não merecem ser esquecidos três logradouros públicos: a gruta de Camões, a estátua de Vasco da Gama e as ruínas da igreja de São Paulo. A gruta fica no meio de garrido vergel. Nela, segundo dizem, o formidável vate compôs parte do seu imortal poema. A estátua do Senhor Vasco da Gama - consoante o linguajar local - não tem a imponência que o grande vulto merece. A frontaria da igreja de S. Paulo é de fato uma maravilha. Fui informado de que fora construída pelos católicos japoneses fugitivos de Nagasaki, quando da perseguição religiosa no Japão.
Um dos edifícios mais importantes é o Leal Senado, onde se acha a sede do Governo* e o Museu de Camões, no qual foi reunido tudo que rememorasse a ação dos primeiros tempos da colônia - inscrições rupestres, alfaias, vestes sacerdotais e mil outras cousas. Orgulhavam-se os portugueses de não terem arriado o vexilo nacional durante os sessenta anos do domínio espanhol e por isso uma inscrição foi feita no alto da escadaria da entrada principal: «Cidade do Santo Nome de Deus de Macau não há nenhuma mais leal. Em nome do rei Nosso Senhor, Dom João IV, o Governador e Capitão General João de Souza Pereira, mandou que se fizesse esta inscrição ao  testemunho da extrema lealdade de seus habitantes, 1654».


Fracas são as extensões de terra da colónia. A pequenina península de Macau mede 4km200 metros por 1 km200 metros. As ilhas de Taipa e Coluane também não são grandes. A ilha da Lapa, muito próxima, está nas mãos dos chineses, se bem que tudo façam os lusos para provar que têm direito a ela. Lá está um leprosário que me fez lembrar uma pagina de Wenceslau de Morais, em seu magnífico "Paisagens da China e do Japão", constituído de crônicas escritas ao dealbar do nosso século. O titulo é sugestivo - Amores... O cenário formado pelas águas escuras e soturnas que banham as ilhas sino lusitanas. Entrecho horripilante: O sexo dos leprosos em revolta. Reuniam-se aqueles párias para vencer a tortura que os devorava - a posse da mulher. Em barcos repelentes, nas horas solitárias da noite, agrupavam-se magotes de infelizes. Alapardavam-se como podiam para surpreender as mulheres que, nos seus tankas, transportavam de um lugar a outro os retardatários. 
"Quando era chegado o bom momento, então - ó delírio supremo! - num ímpeto de remadas e desejos, o barco voava, dava a abordagem, os milhafres caiam sobre as vítimas indefesas. Hábeis no ataque, com as mãos sem dedos sufocavam os gritos das mulheres, e murros, ou premindo num relance pelo faro distinguiam das velhas as moças afastavam dos ossos duros a carne fofa e tenra, e com fome de hienas, as bocas pestilentas comiam, devoravam beijos as pobres raparigas que em vão se debatiam na luta tremenda duns instantes.... Após, o barco dos leprosos seguiam serenamente à margem chinesa, e eles dispersavam, mudos, quase felizes, indiferentes por momentos ao prurido das chagas, e semanas depois reuniam-se novamente. No tanka, as moças ficavam-se chorando, arrepelando-se de horror, de desespero, de vergonha por sua mofina sorte; e tanto mais mofina que é assim, por um beijo, segundo a voz do povo, que a lepra se propaga, se multiplica de corpo a corpo."
* Imprecisão do autor; não há registo de que a sede do governo tenha alguma vez sido no edifício do Senado, que era um órgão executivo municipal.

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