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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O primeiro dicionário português-chinês

O Museu de Macau acaba de inaugurar uma exposição dedicada a um dos autores do primeiro Dicionário Português-Chinês, o missionário jesuíta Michele Rugieri, que como Matteo Ricci conseguiu o estabelecimento de uma missão cristã no Continente chinês, em Zhaoqing. A mostra “Viagem aos Confins do Mundo: Michele Ruggieri e os Jesuítas na China” é organizada conjuntamente pelo Museu de Macau, sob a égide do Instituto Cultural do Governo de Macau, e pelos Arquivos Nacionais de Roma. A iniciativa está integrada nas actividades do Ano do Diálogo Intercultural União Europeia-China, depois de em 2010 ter sido assinalado no território o aniversário de 400 anos da morte de Matteo Ricci.
Ruggieri foi, em conjunto com Ricci, o primeiro missionário a quem foi permitido estabelecer uma missão na China na dinastia Ming, para além do primeiro sinólogo europeu. Foi enviado a Macau em 1579 com o propósito de que aprendesse chinês. Três anos depois, juntava-se-lhe Ricci. Durante a sua permanência na China, escreveu “A Verdadeira Relação da Doutrina Cristã” em chinês e colaborou com Matteo Ricci na compilação do “Dicionário Português-Chinês” – o primeiro dicionário chinês para uma língua estrangeira na China. Após o seu regresso à Europa, Ruggieri traduziu parte de “Grande Sabedoria do Livro dos Ritos” para latim, e desenhou mapas detalhados das várias províncias da China. É também considerado promotor da introdução do conhecimento sobre a China no Ocidente e do intercâmbio cultural entre a China e a Europa.

O primeiro dicionário Português-Chinês surgiu no início da década de 1580. Trata-se de um manuscrito descoberto em 1934, por Pasquale D'Elia, nos Arquivos da Sociedade de Jesus, em Roma. Não tem referências ao autor nem data. Mas segundo Luis Filipe Barreto "o primeiro Dicionário Português-Chinês, de cerca de 1582, foi coordenado pelo jesuíta italiano M. Ruggiero, mas resultante de um trabalho colectivo onde pontifica o luso-chinês macaense Sebastião Fernandes (1561-1621)."
Esta obra - 198 fólios escritos em papel chinês - é atribuída muitas vezes aos padres jesuítas Ricci, A. Valignan e M. Ruggiero com a indicação de que terá sido redigida em Zhaoqing, na Missão da China, entre os anos de 1583 e 1588. Acontece que Ricci e Ruggiero (italianos) não dominavam a língua portuguesa e muito menos a língua chinesa, pelo menos o suficiente para criarem um universo de cerca de 6 mil termos. E para lhes serviria na China este livro?
Os termos mais utilizados referem-se a um centrado na náutica-geografia, na actividade comercial e no relacionamento político-diplomático. De palavras eruditas ou de carácter religioso, quase nada. O que é mais provável é que o dicionário português-chinês foi uma obra colectiva feita em Macau por portugueses, macaenses, chineses, italianos, etc... A diversa caligrafia com que o dicionário foi escrito são uma prova disso.
A cópia que hoje existe e que foi levada de Macau por Ruggiero e Ricci, em 1583, para a China, seria a de uso pessoal de ambos, muito provavelmente, mais do primeiro, e um fruto directo dos seus estudos de língua chinesa, em Macau, entre 1579 e 1583: O padre visitador havera cinco ou seis anos que enviou à Índia o padre Miguel Ruggiero para que estivesse em Macau aprendendo a língua e as letras chinesas [...] (Mateus Ricci, em 1584).
Sendo uma obra colectiva e prática, um instrumento didáctico, a participação, entre muitos outros, de M. Ruggiero e, em menor escala, também de M. Ricci, deve ser considerada.
Do colectivo Dicionário Português-Chinês, feito em Macau, apenas conhecemos, hoje, um exemplar. O exemplar copiado a partir de uma fonte-padrão, em Macau, e usado por Mateus Ricci (1552-1610) e M. Ruggiero (1543-1607). Este exemplar deve ter sido copiado em Macau em 1582-1583, acompanhando os dois jesuítas na entrada na China e continuando a ser usado até 1588, data em que é levado para Roma por M. Ruggiero.
Trata-se de um vocabulário aberto, incompleto, das letras A a Z. Conjunto essencialmente prático em que a terminologia náutica surge como o tipo específico de vocabulário dominante, logo seguido de palavras do dia-adia da vida mercantil, político-diplomática e quotidiana.
Alguns dos termos:
açoitado com varas; letrado; pagar tributo; pagode; tufão; almadia; a nao; ancora; ancorar; a remos da vela; arimar a outro; Barra de naos; batel, borda; borda de nao; cabo; cabo do mundo; carta de marear; cobertura; tormenta; vento à popa; verga da nao; abastada cousa; açucare rosado; açucare candil; açucare refinado; pérola; prata; prata fina; seda; vinho; afinar ouro; afinar prata; barra de ouro ou de prata; canela; canfora; cravo; sandalo; aforrar; cambar; permuta; dar crédito; dar fiado; mercar; mercador; mercadoria; mercado; administrador da fazenda real; bombarda; éspingarda; etc.
Na imagem ao lado, Ricci com vestes chinesas.


Terá sido M. Ruggiero a levar para a Europa uma das poucas cópias em uso em Macau. Sabe-se qu que existiram várias cópias pois o próprio Ricci assim o escreve a propósito de uma viagem de Pequim para Nanquim em 1598. "Os mais velhos na missão com a ajuda do irmão Sebastião que sabe muito bem a língua da China compilaram um belo dicionário onde facilmente se pode aprender a língua".
Em suma, são mais de dois mil vocábulos sem título, nem autoria, nem data e constituem certamente o primeiro dicionário de chinês numa língua ocidental.
As entradas em português, palavras ou frases, vão desde ‘aba da vestidura' até 'zunir a orelha', sendo seguidas por duas colunas correspondentes com, respectivamente, a fonetização e o termo chinês. Nalguns casos só aparece o termo em português não havendo tradução: ‘batel', ‘biscoito', ‘exerçitar', ‘medicina', 'arte', etc. 
A fonetização do vocabulário (caracteres) ora se faz em mandarim (quer no dialecto de Pequim, quer no da variedade do sul de Nanquim), ora em cantonense e hokkien (dialecto do Fujian). Está aqui a explicação para a origem de termos em portugês como tufão, do cantonense ‘grande vento' (tai fun) e chá, do cantonense (tschá).
O dicionário quase secreto dos jesuítas
O que é considerado o primeiro dicionário Chinês-Português do mundo ainda é um mistério. Ele era tido como perdido até 1934, mas foi redescoberto nos arquivos da Companhia de Jesus, na Biblioteca do Vaticano, pelo jesuíta Pachoal M. D’Elia. Depois disso, chegou a ser pesquisado e republicado (em fac-símile) em 2001, o que não garantiu sua popularização. O livro atual é tão difícil de ser encontrado na íntegra quanto o original: há apenas uma parte dele na internet, com muitas páginas censuradas, no site do Google Books. A obra, tida como uma raridade, foi produzida no século XVI e contém 6 mil palavras escritas à mão, distribuídas em 189 folhas. A reportagem é de Pollianana Milan e foi publicada pela Gazeta do Povo, 05-03-2011.
O fato de o dicionário estar inacessível – só quem tem permissão para entrar na Biblioteca do Vaticano pode vê-lo na íntegra – não permite aos pesquisadores responder a questões simples sobre o contexto em que a obra foi escrita e os princípios linguísticos utilizados. Mais curioso ainda é pensar que o dicionário, escrito em português e mandarim, foi feito por dois italianos, Matteo Ricci e Michele Ruggieri.

A explicação histórica ajuda a sustentar as ideias de como o dicionário foi produzido. É preciso relembrar, segundo a linguista Cristina Altman, da Universidade de São Paulo (USP), que os missionários católicos (franciscanos, dominicanos, agostinianos e principalmente os jesuítas) foram responsáveis por nada menos que 672 gramáticas, dicionários e catecismos produzidos em todo o mundo durante cerca de 300 anos, entre os séculos XVI e XVIII. É neste período de produção – especificamente entre 1583 e 1588 – que nasce o dicionário português-chinês, na cidade de Macau (China).
“O domínio de diversas línguas era indispensável ao sucesso da empresa colonial missionária”, afirma Cristina Altman. “A gramática era feita para outros padres missionários aprenderem a língua do povo a ser catequizado [principalmente os índios]. Mas o que impressiona é que elas foram feitas por homens geniais que reproduziram verdadeiras obras-primas ao descrever uma língua que não conheciam ou dominavam.”
Para passar a mensagem de Deus, os missionários deveriam ser, antes de tudo, observadores e catalogadores de línguas. Acredita-se que eles tiveram contacto com pelo menos 218 dialectos e línguas do território sul-americano. “Eles acumularam informação sobre a diversidade linguística americana suficiente para notar o quanto poderia haver de ‘afinidade’ e ‘divergência’ entre as línguas, seja na pronúncia ou no vocabulário”, diz Cristina. Nessa época os países europeus já tinham uma língua escrita, mas em diversos países sul-americanos esse registro não existia.
Para fazer esse tipo de levantamento, os padres precisavam, antes de tudo, de uma boa educação. Ricci e Ruggieri se formaram na Itália. Além das disciplinas obrigatórias de Filosofia e Teologia, o primeiro estudou Direito, Matemática e Ciências. Ruggieri se formou em Direito. Os dois entraram para a Companhia de Jesus e aprenderam o português em Portugal. Em 1578, 14 jesuítas – entre eles Ricci e Ruggieri – foram enviados em missão a Goa (Índia) e depois de um ano foram para Macau (então sob domínio de Portugal) a fim de estudar a língua e a cultura chinesa.
Começaram a entender o mandarim e interpretá-lo para que os novos padres que chegassem falassem a língua local. “Especialmente Ricci percebeu que, sem um bom conhecimento da língua e da cultura chinesas, a atividade dos missionários estaria fadada ao fracasso naquele país”, diz o linguista José Borges Neto, professor-sênior da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Em 1583, Ricci e Ruggieri conseguiram autorização para instalar a primeira casa da missão católica na China – deve ter sido esta a data de início da produção do dicionário Português-Chinês. “Eles provavelmente terminaram o dicionário em 1588, porque Ruggieri volta à Itália e nunca mais retorna à China”, diz Borges Neto. Ele lembra que Ricci escreveu, depois, um dicionário Chinês- Português, desaparecido até hoje, e traduziu orações católicas, entre as quais o primeiro Catecismo e a obra Explicação dos Dez Mandamentos. “Ainda tenho mais perguntas a fazer do que respostas a dar sobre o dicionário, porque ele ainda tem um acesso muito restrito”, diz Borges. 
O que se pode concluir, a partir do que há disponível na internet, é que o dicionário era, nas cinco primeiras folhas, trilíngue (português – chinês – italiano) e que depois virou bilíngue. O mais interessante é que a obra, além de fazer a tradução, mostra como era a pronúncia das palavras chinesas (uma coluna é uma espécie de “manual de fonética”).
Cristina Altman lamenta que a produção dos jesuítas ainda tenha acesso tão restrito. “Parece que os jesuítas não fazem questão de popularizar o que há na biblioteca do Vaticano. A impressão é que eles querem manter tudo em segredo”, afirma. Como as obras ficaram reduzidas ao ambiente religioso, nunca foram vendidas ou integraram bibliotecas. “Na Europa, a produção missionária foi desprezada também porque era vista, lamentavelmente, como um documento de padre para ensinar índio”, comenta a linguista da USP.
Foi graças à ação do padre Lorenzo Hervás que todas as obras produzidas pelos missionários foram preservadas. Hervás era o bibliotecário do Vaticano quando os jesuítas foram expulsos dos diversos países onde atuaram. Eles pediram abrigo em Roma, onde deixaram tudo o que produziram. “Hervás organiza o conjunto de documentos e começa a comparar as línguas. Ele publica, então, a Grande Enciclopédia do Universo, primeiro em italiano e depois em espanhol”, afirma Cristina Altman. Neste trabalho, Hervás percebe que todas as gramáticas coloniais foram organizadas a partir do princípio do latim, ou seja, línguas das mais diversas origens (inclusive indígenas) foram divididas em oito partes: nome, pronome, verbo, particípio, preposição, advérbio, interjeição e conjunção. Eles usaram esse modelo para entender a língua com a qual entraram em contato. Procuraram, por exemplo, dizer o que é nome nesta língua, que ela tem um número de letras em maior ou menor quantidade que o latim e assim por diante. “É literalmente a arte de criar gramáticas”, conclui Cristina. 

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Um museu de pedra na cidade

Nas lápides do cemitério de São Miguel está gravada parte da história de Macau. Estórias que uma urbanista quer contar em visitas guiadas ao local. Dos materiais aos elementos usados, há uma relação entre vida e morte.
Na história dos mortos está a história dos vivos. E Macau é um livro aberto de narrativa cronológica. Com mais de uma dezena de cemitérios, num território onde o Ocidente e o Oriente se cruzam, onde parsis, arménios, protestantes, chineses, católicos e muçulmanos deixaram a sua marca e enterraram os seus mortos, os cemitérios são o melhor registo histórico fora das prateleiras poeirentas das bibliotecas e arquivos. Apesar de ser um espaço de lembrança e homenagem dos que já não estão entre nós, os cemitérios são também lugares de vida, onde a história continua a ser escrita pelos visitantes. Deixam-se ali símbolos dos tempos e das culturas: clássicas flores naturais, de plástico (com gotinhas de cola ou sem), ursinhos de peluche, fotografias, terços, bibelôs, estatuetas e mesmo jóias. Pais levam os filhos pela mão num exercício de redefinição de memórias esfumadas. Os jardineiros aparam a relva, turistas tiram fotografias e um ou outro transeunte aproveita o fresco dos bancos para ler, gozando aquele típico silêncio de morte – ou deveríamos antes dizer, aquela paz dos anjos.
No cemitério de São Miguel Arcanjo, o maior cemitério católico de Macau, há mesmo quem aproveite a sombra dos pinheiros (que simbolicamente apontam para o céu) e dos salgueiros (que além de ‘chorarem’, simbolizam a imortalidade na cultura chinesa, pois crescem ainda que plantados ao contrário) para dormir uma sesta em cima de uma laje tumular mais fresca. Vivos e mortos descansam juntos, portanto.
Fundado em 1854, São Miguel alberga na sua maioria túmulos portugueses, macaenses e chineses e a forma como estão ornamentados torna explícita a sua origem. Nomes como Ana Lau Simões ou Joel José Choi Anok são espelhos da mistura que, geração após geração, Macau é. “O cemitério é um registo da cidade, uma gigante biblioteca de Macau e do seu desenvolvimento. Reflecte a sua diversidade cultural”, explica Inês Lei, uma urbanista que, de há três meses para cá, iniciou um estudo sobre São Miguel, como parte integrante do seu trabalho para a organização não-governamental Root Planning.
Lei, que tenta “descobrir mais sobre como no passado as pessoas encaravam a morte”, quer organizar visitas guiadas no cemitério, um conceito que encontrou em Hong Kong e lhe pareceu interessante de experimentar em Macau. A ideia é trazer grupos muito pequenos, que não perturbem de forma alguma o contemplativo ambiente do espaço. Mas o calor intenso que se tem sentido está a adiar o projecto. Até lá, Inês Lei lê, investiga, tira fotografias, faz perguntas. Perguntas que lhe permitam responder às interrogações dos outros. “Muitas vezes estava aqui sentada e as pessoas vinham perguntar-me coisas sobre o cemitério. Percebi que havia curiosidade.”
A relação com o local vem da infância. “Cresci neste bairro, duas ruas abaixo Quando passava à porta com a minha avó pedia-lhe sempre para passarmos depressa porque tinha medo. Mas quando cresci comecei a achar que era um lugar agradável e gosto muito de cá vir”, conta. A urbanista de 28 anos assinala o facto de este ser também “um grande espaço verde na cidade”.
No cemitério onde repousa Camilo Pessanha há sinais de que outros ilustres encontraram aqui a sua última morada. Lei não se debruçou ainda na identidade dos ‘habitantes’ de São Miguel, mas sabe apontar características que identificam túmulos abastados. Desde 1847 que Ana Rita Jorge repousa em Macau (possivelmente a sepultura foi transportada do cemitério de São Lázaro que, em 1872, se fundiu com São Miguel), e o seu túmulo, aponta Lei, é feito de lioz, uma pedra que só se podia encontrar em Portugal, numa altura em que o transporte não era comum e seria de preço muito elevado. “O cemitério é também um museu de pedra”, diz.

Em termos de elementos decorativos há muito para ver e é nas campas ocidentais que mais se encontram. As campas chinesas, explica a estudiosa, têm menos decoração e tendem a ser muito simples. Já as ocidentais “representam mais aquilo que as pessoas pensam sobre a vida após a morte, por isso podemos encontrar anjos, cruzes, âncoras, é a forma de as pessoas se ligarem ao paraíso”. A âncora simboliza estabilidade e muitas vezes se avista aos pés da Esperança, estátua feminina colocada em cima de um pódio e ladeada de outras duas, a Caridade e a Fé.A coluna partida encontra-se com frequência em São Miguel e comunica, segundo Lei, “um sentimento forte”, de que “é uma pena as pessoas morrerem cedo”. Muitas vezes as colunas – que simbolicamente apontam para o céu, como quase todas as construções em cemitérios – vêm ornamentadas com plantas, que representam imortalidade. Duas mãos que se apertam dizem “bem-vindo ao paraíso”. A imagem representada em lápides inclui o pulso, mostrando o punho de uma manga. Se estes aparentarem pertencer a membros do mesmo sexo pretendem transmitir sentimentos de amizade. Se os punhos forem claramente da manga de uma mulher e de um homem, simbolizam amor ou casamento, explica Inês Lei.
Funeral chinês na década de 1960
Não significa que os túmulos chineses, com os seus caracteres dourados e pedras escuras ou vermelhas, estejam ausentes de simbolismo. A sepultura chinesa mais antiga deste cemitério é de 1861 e é a de maior dimensão. ‘Fen mu’ é o termo chinês para esta construção imponente e circular que, aqui, termina com um portão metálico, algo que Lei considera “muito ocidental”. Os dois semicírculos que a compõem simbolizam braços e estão assentes numa estrutura inclinada para que a água da chuva possa correr.
Apesar de não ser baptizada, Inês Lei assume-se como católica “que raramente vai à igreja”. Não foi religiosa a motivação para este estudo mas, confessa, inspirou alguma reflexão espiritual. “Fez-me pensar e levou-me a reavaliar a minha vida.”
Não esquece uma frase que um professor lhe disse, numa das suas entrevistas, e que a fez pensar em como, por vezes, estamos mais acompanhados na morte do que em vida: “Antes de uma pessoa morrer, ela está por sua conta, sozinha. Mas depois de morrer não a podemos manter com a família, não a podemos guardar em casa, só a podemos colocar num cemitério. Depois de morrer ela passa a pertencer ao público. Acho isso muito interessante”.
Artigo da autoria de I.S.G. publicado no jornal Ponto Final de 1-9-2011

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Revista "Serões": Março 1902


A "Serões" foi uma revista ilustrada publicada mensalmente em Portugal pela Livraria Ferreira & Oliveira,  entre 1901 e 1911. Na edição de Março de 1902, Vol. II, N.º 10 Macau é um dos temas. O artigo (o primeiro) intitula-se "Portugal e a China ante a questão de Macau" e é assinado por J. F. Marques Pereira, "1º Official, chefe de secção, do Ministério da Marinha e Ultramar; Official da Ordem de S. Thiago, do mérito scientiíico, litterario e artistico".
Na introdução pode ler-se: "Os recentes acontecimentos políticos da China, a revolta dos boxers, a intervenção das potencias, a penetração d'estas no isolado imperio asiatico, a lucta das ambições e dos interesses, teem chamado as attenções geraes para o extremo oriente e despertado natural curiosidade. Depois da partilha de Africa, veio a pretensão de dividir tambem a asia. A habilidade diplomatica, a força das armas e a energia da especulação financeira teem sido postas à prova no ataque d'aquelle grave problema. No estrangeiro seguem-se com interesse os propositos de expansão colonial que Portugal se propõe realisar. O presente artigo dá notícias d'esta questão, para resolução da qual foi, há pouco, enviado à china embaixador especial." 
(Nota: A 12 de Agosto de 1900 chega a Macau um Corpo Expedicionário para proteger a cidade da situação que se vive na China). 
Nas "15 gravuras, copia de photographias" que ilustram o artigo estão incluídas estas duas vistas panorâmicas da península no final do século XIX cujas legendas também  reproduzo.
“À direita do leitor: a «Bahia da Praia Grande»; no primeiro plano o « Matto do Bom Jesus»; à esquerda o «porto interior» com a «Ilha Verde». Ao fundo e à esquerda as alturas de «Chin-san», de «Passaleão» e de «Pac-Seac»; à direitas fortalezas do «Monte», da «Guia» e de «S. Francisco», na ponta da Praia Grande. As duas igrejas ao centro da estampa são as de «S. Lourenço» e de «S. José»”
“À esquerda do leitor a bahia da «Praia Grande», tendo na ponta da respectiva margem o forte do «Bom Parto» e a montanha da «Penha». Ao fundo, as montanhas da ilha da «Lapa»; a fortaleza de «S. Paulo do Monte» e o porto interior com a «Ilha Verde». No primeiro plano o edifício de «Santa Clara», os bairros de «S. Lourenço», do «Campo», etc.”

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Solidariedade na guerra sino-japonesa

On August 12, 1937, the Macao Four Community Relief Service Group (whose membership included those from the academic, music, sports and drama sectors) was set up. The sixth and seventh teams which were sent by the group to help the mainland during the war pose for a photo before they set off.
Fotografia de 12 de Agosto de 1937
Associação Comercial Chinesa tb colaborou
"Em Macau o conflito não chegou de forma directa mas como a maioria da população era chinesa, os chineses de Macau vão participar no esforço nacional contra a invasão japonesa criando organizações, comités, desencadeando formas de solidariedade e marchando para a frente de combate. A partir de 1937, quando a guerra endurece e são públicos os grandes massacres cometidos pelos nipónicos, formam-se as organizações de apoio à resistência – a Sociedade de Auxílio de Toda a Comunidade de Macau e a Sociedade de Auxílio Círculo Floral organizam peditórios, realizam bazares, campanhas, bailes de caridade; diversos grupos de cidadãos promovem debates e circulação de notícias sobre os últimos desenvolvimentos na frente de combate; realizam-se peças de teatro, projectam-se filmes, espalham-se as canções da resistência - “A Marcha do Voluntários” e “Os Oitocentos Guerreiros”.

São ainda criados o Grupo de Serviço da Juventude Chinesa de Macau que desencadeia acções militares no continente e a Associação de Assistência Quatro Círculos que enviou ao interior da China todo o tipo de apoio à resistência. Também as dezenas de associações profissionais existentes se envolveram. É o caso da Associação de Auxílio Mútuo dos Jornalistas de Macau (chineses) que na década de 1940 contava com uma centena de sócios ou da Associação da Educação Chinesa (professores). De forte influência era a Associação Comercial Chinesa. A 5 de Outubro de 1944, por exemplo, aquando da comemoração da implantação da República em Portugal associou-se às comemorações e ordenou “às firmas chinesas que icem a bandeira nacional da China”.

O auxílio de Macau pode dividir-se em duas vertentes: em primeiro lugar angariar verbas, divulgar a guerra, mobilizar o povo, dar assistência aos refugiados, apoio e solidariedade às tropas que combatiam na frente. Em segundo lugar, na organização de jovens compatriotas que eram levados para o interior da China ora combatendo ora prestando auxílios aos feridos." (excerto)
 in "Macau 1937-1945: os anos da guerra" de João Botas, IIM, 2012

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Fortalezas

No "Jornal Único" em 1898 o capitão Eduardo C. Lourenço escreveu: “diz o seguinte um relatório militar publicado algures num Boletim da província: “...as fortalezas de Macau, em número de cinco disseminadas, onde a sua colocação foi reconhecida como necessária, formam um grupo de obras de fortificação permanente, que tem por fim manter a posse e a segurança do território em casos de invasão por terra ou de violenta tentativa de desembarque; situadas a diferentes altitudes, quatro acham-se subordinadas ao comando de uma, que é a da Senhora da Guia, a qual por esse facto vê o terreno para além das outras.”
O sistema de defesa de Macau começou a ser edificado no século XVII. Dois séculos depois quando deixaram de ter essa função, tínhamos o seguinte: seis fortalezas (S. Francisco, Bom Parto, Guia, Monte, Barra e Mong Há) , cincos fortes, dois fortins (S. Pedro e S. Jerónimo), duas baterias (Barra e ) e um baluarte (S. João), além das muralhas.
 Dois mapas do séc. XVII: no de baixo estão realçadas as estruturas militares defensivas (fortes e muralhas)
Fortaleza do Monte ca. 1910-20
Fortaleza do Monte e parte da antiga muralha: meados do séc. XX e final do séc. XIX
O forte de Mong Há foi dos últimos a ser construído, já na segunda metade do séc. XIX
 Foto séc. XXI na entrada pode ler-se 1866

domingo, 25 de novembro de 2012

Lilau: largo, beco, páteo, rua e calçada

De acordo com o Cadastro de Vias Públicas de 1957 o Pátio do Lilau (freguesia de S. Lourenço) "está situado junto da Calçada de Lilau, à direita, na vertente Norte da Colina da Penha. Em 1869 havia uma via pública com o mesmo nome, provavelmente no mesmo local ou nas proximidades da actual." Em chinês denomina-se Á Pó Cheang Vai.
Rua do Lilau começa na Rua da Barra, em frente da Travessa de Antônio da Silva e ao lado da Rua do Pe. António, e termina na Rua da Penha entre os prédios nos. 18 e 20. A ligação desta rua com a Rua da Penha é feita através de uma escadaria de pedra.
O Beco do Lilau (na imagem acima) está situado entre a Rua e a Calçada do Lilau, tendo a entrada ao lado do prédio no. l da Rua da Barra.
A Calçada do Lilau começa na Rua da Barra, entre os prédios nos. 3 e 5, e segue em direcção à vertente norte da Colina da Penha, na qual termina, um pouco além do Pátio do Lilau. A ligação com a rua da Barra é feita através de uma escadaria de pedra.
in Toponímia de Macau - Volume I - Ruas com Nomes Genéricos - de Padre Manuel Teixeira - edição de 1979)
Foto da Agência Lusa
Nas Crônicas de S. Agostinho pode ler-se o seguinte:
«Na cidade de Nome de Deos de Macao temos huma ermida consagrada a Nossa Senhora da Penha de França em hum dos montes da cidade, chamado Nilao, edificada pelo Pé. Fr. Estevão de Vera Cruz, prior do convento da mesma cidade em o anno de 1623, em cuja fábrica muito trabalhou gastando do convento (alem das esmolas) trezentos, e tantos taéis de prata» (A. da Silva Rego, Documentação. Vol. XI, p. 166)
Ljungstedt repete o mesmo, afirmando que o monte se chamava Nilau. A fonte que brotava no sopé recebeu o nome do monte, como se lê num documento de 9-9-1795: «Diz Felipe Corrêa de Liger Cazado, e m.or nesta Cid.e, que como este N. Sen.0 tem entre outras hua terra baldia cita a Orta de D. Anna Corrêa, e Bica de Nilao, que inda conserva prezentm." hum posso, que fora feito p.10 Avô do Sup.e, pertende o Sup.e cento e vinte braças de Norte ao Sul, e outras tantas de Leste a Oeste». Foi-Ihe concedido o terreno, «mas deve ser p.a a banda da Orta de Antônio Joze da Costa, p.r não embaraçar o caminho da Fonte de Nilao»
Parece que foi a ermida construída em 1622, que deu o nome de Penha à colina, que antes se chamava de Nilau. Marco d'Avalo escrevia em 1638 acerca dum forte que lá havia: — Chamava-se o segundo dos fortes Nostra Seignora de Ia Penha de Franciã, porque tem dentro uma ermida com este nome (Ta-Ssi-Yang-Kuo, II, 421).
Numa gravura holandesa antiga aparece a muralha, que rodeia a ermida, coroada de ameias e canhões. O comerciante Joaquim José Ferreira Veiga, marido de Rosa Joaquina de Paiva e filho de José da Silva Correia e de Maria Rita de Veiga, contribuiu com 200 patacas para as obras da Fonte do Lilau. O Senado oficiou-lhe a 18 de Setembro de 1830, agradecendo esta contribuição. Deve datar dessa época a troca do nome da famosa Bica, de Nilau em Lilau. Note-se que Joaquim Veiga casara, a 11-XI I-1822, com Rosa Joaquina de Paiva; casou em segundas núpcias, a 11-1-1836, com Joana Ana Ulman, filha de Jacob Gabriel Ulman e de Rosa Ulman; esta última faleceu a 27-X-1821. Rosa Joaquina de Paiva nasceu a 20-V-1799, e era filha de Francisco José de Paiva e de Inácia Vicência Marques; esta última era proprietária do Mato do «Bom Jesus».
Constando ao Senado que fora construída uma barraca de palha, com depósito de matérias pútridas em cima da Fonte de Lilau, comunicando-se isso à fonte com grande detrimento do público, ordenou, a 28-7-1825, ao Juiz Almotacel Francisco Xavier Lança, que fosse lá e, sendo aquilo certo, notificasse os senhorios que desmanchassem a barraca e limpassem o terreno daquele imundo depósito (Arq. de Macau, Março de 1953, p. 167).
Largo do Lilau. Foto de Álvaro Tavares
Acesso à fonte no séc. XXI e placa toponímica da segunda metade séc. XX.

sábado, 24 de novembro de 2012

Duas sugestões de leitura

Emissão filatélica de 2012
Os seus contos e romances remetem para o domínio da ficção mas as suas memórias e descrições são bem reais... Por isso, ler Henrique de Senna Fernandes (1923-2010) é conhecer Macau e a sua história...
"Desceu a pequena encosta, atravessou os campos relvados do Tap-Seac, sob o sussurro dos bambuais e das acácias enfloradas de vermelho, e chegou às hortas de Long Tin Chun, correndo à sombra dos plátanos meditabundos. Em seguida, abriu-se a zona da Flora, calma e bucólica, longe dos ruídos citadinos. (...) 
O lago da Flora era um espelho esverdeado cintilando revérberos de prata. Novamente suspirou e respirou a largos haustos a pureza campestre do sítio. (...)
O palacete do Governador espreitava, corno urna mancha cor-de-rosa, no meio dum pequeno parque (...) Ladeou o jardim de Senna Fernandes donde partiam vozes de adultos e da criançada, com piquenique, cortou os atalhos sussurrantes da Montanha Russa e parou no alto da Rampa dos Cavaleiros que ligava à Areia Preta. O mar, em baixo, rumorejava por entre os recifes, subindo e descendo com espuma branca, a Praia da Boa Vida e a do Horto do Colaço e os que se seguiam até à Porta do Cerco e além. (...) Em contraste, o cemitério ingles dormitava, melancólico e contemplativo. Mais ao longe, ao alto da colina de Mong-Há, o perfil escuro da fortaleza, onde dropejava à aragem da tarde, a bandeira azul e branca."                                                                                     in Amor e Dedinhos de Pé
Calçada do Tronco Velho: década 1940
Estava um belo dio de outono para a pesca, o céu límpido, a paisagem toda iluminado de tons metálicos, como só acontece nos meses de Ontubro e Novembro. (...) Respirou fundo a brisa matinal, a Estrada da Victória era uma recta dourado e não viu nenhurn riquechó. Não se sentiu contrariado, cortou o Jardim de Vasca da Gama, ladeando os chafarizes, onde os fios de água prateada saltitavam, como garotos irrequietos. Para encortar caminho, dobrou a prirneira esquina, internando-se no área do Cheok Chai Un.(...) Chegou, sem novidade, à zona do poço, numa hora de grande actividade, os aguadeiras e lavadeiras a puxar os baldes ou formando bicha num burburinho de vozes que soavam alegremente. 
E todo teria passado despercebido, não ficando nada na memória, senão um quadro inédito, se, nesse instante, não espadanasse uma gargalhadinha moça e sadia e a evolar-se pelo ar, muito perto. Deteve-se, primeiro curioso, depois com súbito interesse pela belezoa rústica donde partia o riso. Gostou do que viu. Nunca contemplara uma moça tão atraente, de pé descaIço, e nem podia adivinhar que num bairro de ‘facínoras e desordeiros” entesourasse uma bela jóia como aquela. Nunca vira, também, uma trança igual, tão preta que fulgia ao sol. A-Leng, porque era ela, captou o interesse e teve a desagradável sensação de ser escrutinada da cabeça aos pés. Não estava habituada a um exame tão atrevido, sobretudo, dum estranho e demais 'kuailou'. Mais perturbada que irritada, resolveu afastar o insolente, à vista das companheiras".          in Trança Feiticeira

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

National Geographic: anos 50

Chegada ao Porto Exterior e San Ma Lou; desfile militar junto ao Palácio do Governo e Mocidade Portuguesa saúda comitiva oficial no Jardim Camões.
 Vista sobre a Penha e pormenor da av. da República (em cima)
Fabrico de panchões e uma rua no ano novo chinês (em baixo)
Macau tem tido presença regular na conceituada revista National Geographic desde o os primeiros anos do século 20. Veja-se por exemplo em 1932
Para o post de hoje escolhi as fotografias (d.r.) da autoria de Joseph Baylor Roberts tiradas em 1952. A reportagem - com texto de George W. Long - só saiu na edição de Maio de 1953. Tinha como título "Macau, a Hole in the Bamboo Curtain". Se tivermos em linha de conta que o Partido Comunista chinês tinha tomado o poder em 1949, percebe-se este título... Adquiri um exemplar da revista há cerca de cinco anos num leilão.