Páginas

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O primeiro dicionário português-chinês

O Museu de Macau acaba de inaugurar uma exposição dedicada a um dos autores do primeiro Dicionário Português-Chinês, o missionário jesuíta Michele Rugieri, que como Matteo Ricci conseguiu o estabelecimento de uma missão cristã no Continente chinês, em Zhaoqing. A mostra “Viagem aos Confins do Mundo: Michele Ruggieri e os Jesuítas na China” é organizada conjuntamente pelo Museu de Macau, sob a égide do Instituto Cultural do Governo de Macau, e pelos Arquivos Nacionais de Roma. A iniciativa está integrada nas actividades do Ano do Diálogo Intercultural União Europeia-China, depois de em 2010 ter sido assinalado no território o aniversário de 400 anos da morte de Matteo Ricci.
Ruggieri foi, em conjunto com Ricci, o primeiro missionário a quem foi permitido estabelecer uma missão na China na dinastia Ming, para além do primeiro sinólogo europeu. Foi enviado a Macau em 1579 com o propósito de que aprendesse chinês. Três anos depois, juntava-se-lhe Ricci. Durante a sua permanência na China, escreveu “A Verdadeira Relação da Doutrina Cristã” em chinês e colaborou com Matteo Ricci na compilação do “Dicionário Português-Chinês” – o primeiro dicionário chinês para uma língua estrangeira na China. Após o seu regresso à Europa, Ruggieri traduziu parte de “Grande Sabedoria do Livro dos Ritos” para latim, e desenhou mapas detalhados das várias províncias da China. É também considerado promotor da introdução do conhecimento sobre a China no Ocidente e do intercâmbio cultural entre a China e a Europa.

O primeiro dicionário Português-Chinês surgiu no início da década de 1580. Trata-se de um manuscrito descoberto em 1934, por Pasquale D'Elia, nos Arquivos da Sociedade de Jesus, em Roma. Não tem referências ao autor nem data. Mas segundo Luis Filipe Barreto "o primeiro Dicionário Português-Chinês, de cerca de 1582, foi coordenado pelo jesuíta italiano M. Ruggiero, mas resultante de um trabalho colectivo onde pontifica o luso-chinês macaense Sebastião Fernandes (1561-1621)."
Esta obra - 198 fólios escritos em papel chinês - é atribuída muitas vezes aos padres jesuítas Ricci, A. Valignan e M. Ruggiero com a indicação de que terá sido redigida em Zhaoqing, na Missão da China, entre os anos de 1583 e 1588. Acontece que Ricci e Ruggiero (italianos) não dominavam a língua portuguesa e muito menos a língua chinesa, pelo menos o suficiente para criarem um universo de cerca de 6 mil termos. E para lhes serviria na China este livro?
Os termos mais utilizados referem-se a um centrado na náutica-geografia, na actividade comercial e no relacionamento político-diplomático. De palavras eruditas ou de carácter religioso, quase nada. O que é mais provável é que o dicionário português-chinês foi uma obra colectiva feita em Macau por portugueses, macaenses, chineses, italianos, etc... A diversa caligrafia com que o dicionário foi escrito são uma prova disso.
A cópia que hoje existe e que foi levada de Macau por Ruggiero e Ricci, em 1583, para a China, seria a de uso pessoal de ambos, muito provavelmente, mais do primeiro, e um fruto directo dos seus estudos de língua chinesa, em Macau, entre 1579 e 1583: O padre visitador havera cinco ou seis anos que enviou à Índia o padre Miguel Ruggiero para que estivesse em Macau aprendendo a língua e as letras chinesas [...] (Mateus Ricci, em 1584).
Sendo uma obra colectiva e prática, um instrumento didáctico, a participação, entre muitos outros, de M. Ruggiero e, em menor escala, também de M. Ricci, deve ser considerada.
Do colectivo Dicionário Português-Chinês, feito em Macau, apenas conhecemos, hoje, um exemplar. O exemplar copiado a partir de uma fonte-padrão, em Macau, e usado por Mateus Ricci (1552-1610) e M. Ruggiero (1543-1607). Este exemplar deve ter sido copiado em Macau em 1582-1583, acompanhando os dois jesuítas na entrada na China e continuando a ser usado até 1588, data em que é levado para Roma por M. Ruggiero.
Trata-se de um vocabulário aberto, incompleto, das letras A a Z. Conjunto essencialmente prático em que a terminologia náutica surge como o tipo específico de vocabulário dominante, logo seguido de palavras do dia-adia da vida mercantil, político-diplomática e quotidiana.
Alguns dos termos:
açoitado com varas; letrado; pagar tributo; pagode; tufão; almadia; a nao; ancora; ancorar; a remos da vela; arimar a outro; Barra de naos; batel, borda; borda de nao; cabo; cabo do mundo; carta de marear; cobertura; tormenta; vento à popa; verga da nao; abastada cousa; açucare rosado; açucare candil; açucare refinado; pérola; prata; prata fina; seda; vinho; afinar ouro; afinar prata; barra de ouro ou de prata; canela; canfora; cravo; sandalo; aforrar; cambar; permuta; dar crédito; dar fiado; mercar; mercador; mercadoria; mercado; administrador da fazenda real; bombarda; éspingarda; etc.
Na imagem ao lado, Ricci com vestes chinesas.


Terá sido M. Ruggiero a levar para a Europa uma das poucas cópias em uso em Macau. Sabe-se qu que existiram várias cópias pois o próprio Ricci assim o escreve a propósito de uma viagem de Pequim para Nanquim em 1598. "Os mais velhos na missão com a ajuda do irmão Sebastião que sabe muito bem a língua da China compilaram um belo dicionário onde facilmente se pode aprender a língua".
Em suma, são mais de dois mil vocábulos sem título, nem autoria, nem data e constituem certamente o primeiro dicionário de chinês numa língua ocidental.
As entradas em português, palavras ou frases, vão desde ‘aba da vestidura' até 'zunir a orelha', sendo seguidas por duas colunas correspondentes com, respectivamente, a fonetização e o termo chinês. Nalguns casos só aparece o termo em português não havendo tradução: ‘batel', ‘biscoito', ‘exerçitar', ‘medicina', 'arte', etc. 
A fonetização do vocabulário (caracteres) ora se faz em mandarim (quer no dialecto de Pequim, quer no da variedade do sul de Nanquim), ora em cantonense e hokkien (dialecto do Fujian). Está aqui a explicação para a origem de termos em portugês como tufão, do cantonense ‘grande vento' (tai fun) e chá, do cantonense (tschá).
O dicionário quase secreto dos jesuítas
O que é considerado o primeiro dicionário Chinês-Português do mundo ainda é um mistério. Ele era tido como perdido até 1934, mas foi redescoberto nos arquivos da Companhia de Jesus, na Biblioteca do Vaticano, pelo jesuíta Pachoal M. D’Elia. Depois disso, chegou a ser pesquisado e republicado (em fac-símile) em 2001, o que não garantiu sua popularização. O livro atual é tão difícil de ser encontrado na íntegra quanto o original: há apenas uma parte dele na internet, com muitas páginas censuradas, no site do Google Books. A obra, tida como uma raridade, foi produzida no século XVI e contém 6 mil palavras escritas à mão, distribuídas em 189 folhas. A reportagem é de Pollianana Milan e foi publicada pela Gazeta do Povo, 05-03-2011.
O fato de o dicionário estar inacessível – só quem tem permissão para entrar na Biblioteca do Vaticano pode vê-lo na íntegra – não permite aos pesquisadores responder a questões simples sobre o contexto em que a obra foi escrita e os princípios linguísticos utilizados. Mais curioso ainda é pensar que o dicionário, escrito em português e mandarim, foi feito por dois italianos, Matteo Ricci e Michele Ruggieri.

A explicação histórica ajuda a sustentar as ideias de como o dicionário foi produzido. É preciso relembrar, segundo a linguista Cristina Altman, da Universidade de São Paulo (USP), que os missionários católicos (franciscanos, dominicanos, agostinianos e principalmente os jesuítas) foram responsáveis por nada menos que 672 gramáticas, dicionários e catecismos produzidos em todo o mundo durante cerca de 300 anos, entre os séculos XVI e XVIII. É neste período de produção – especificamente entre 1583 e 1588 – que nasce o dicionário português-chinês, na cidade de Macau (China).
“O domínio de diversas línguas era indispensável ao sucesso da empresa colonial missionária”, afirma Cristina Altman. “A gramática era feita para outros padres missionários aprenderem a língua do povo a ser catequizado [principalmente os índios]. Mas o que impressiona é que elas foram feitas por homens geniais que reproduziram verdadeiras obras-primas ao descrever uma língua que não conheciam ou dominavam.”
Para passar a mensagem de Deus, os missionários deveriam ser, antes de tudo, observadores e catalogadores de línguas. Acredita-se que eles tiveram contacto com pelo menos 218 dialectos e línguas do território sul-americano. “Eles acumularam informação sobre a diversidade linguística americana suficiente para notar o quanto poderia haver de ‘afinidade’ e ‘divergência’ entre as línguas, seja na pronúncia ou no vocabulário”, diz Cristina. Nessa época os países europeus já tinham uma língua escrita, mas em diversos países sul-americanos esse registro não existia.
Para fazer esse tipo de levantamento, os padres precisavam, antes de tudo, de uma boa educação. Ricci e Ruggieri se formaram na Itália. Além das disciplinas obrigatórias de Filosofia e Teologia, o primeiro estudou Direito, Matemática e Ciências. Ruggieri se formou em Direito. Os dois entraram para a Companhia de Jesus e aprenderam o português em Portugal. Em 1578, 14 jesuítas – entre eles Ricci e Ruggieri – foram enviados em missão a Goa (Índia) e depois de um ano foram para Macau (então sob domínio de Portugal) a fim de estudar a língua e a cultura chinesa.
Começaram a entender o mandarim e interpretá-lo para que os novos padres que chegassem falassem a língua local. “Especialmente Ricci percebeu que, sem um bom conhecimento da língua e da cultura chinesas, a atividade dos missionários estaria fadada ao fracasso naquele país”, diz o linguista José Borges Neto, professor-sênior da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Em 1583, Ricci e Ruggieri conseguiram autorização para instalar a primeira casa da missão católica na China – deve ter sido esta a data de início da produção do dicionário Português-Chinês. “Eles provavelmente terminaram o dicionário em 1588, porque Ruggieri volta à Itália e nunca mais retorna à China”, diz Borges Neto. Ele lembra que Ricci escreveu, depois, um dicionário Chinês- Português, desaparecido até hoje, e traduziu orações católicas, entre as quais o primeiro Catecismo e a obra Explicação dos Dez Mandamentos. “Ainda tenho mais perguntas a fazer do que respostas a dar sobre o dicionário, porque ele ainda tem um acesso muito restrito”, diz Borges. 
O que se pode concluir, a partir do que há disponível na internet, é que o dicionário era, nas cinco primeiras folhas, trilíngue (português – chinês – italiano) e que depois virou bilíngue. O mais interessante é que a obra, além de fazer a tradução, mostra como era a pronúncia das palavras chinesas (uma coluna é uma espécie de “manual de fonética”).
Cristina Altman lamenta que a produção dos jesuítas ainda tenha acesso tão restrito. “Parece que os jesuítas não fazem questão de popularizar o que há na biblioteca do Vaticano. A impressão é que eles querem manter tudo em segredo”, afirma. Como as obras ficaram reduzidas ao ambiente religioso, nunca foram vendidas ou integraram bibliotecas. “Na Europa, a produção missionária foi desprezada também porque era vista, lamentavelmente, como um documento de padre para ensinar índio”, comenta a linguista da USP.
Foi graças à ação do padre Lorenzo Hervás que todas as obras produzidas pelos missionários foram preservadas. Hervás era o bibliotecário do Vaticano quando os jesuítas foram expulsos dos diversos países onde atuaram. Eles pediram abrigo em Roma, onde deixaram tudo o que produziram. “Hervás organiza o conjunto de documentos e começa a comparar as línguas. Ele publica, então, a Grande Enciclopédia do Universo, primeiro em italiano e depois em espanhol”, afirma Cristina Altman. Neste trabalho, Hervás percebe que todas as gramáticas coloniais foram organizadas a partir do princípio do latim, ou seja, línguas das mais diversas origens (inclusive indígenas) foram divididas em oito partes: nome, pronome, verbo, particípio, preposição, advérbio, interjeição e conjunção. Eles usaram esse modelo para entender a língua com a qual entraram em contato. Procuraram, por exemplo, dizer o que é nome nesta língua, que ela tem um número de letras em maior ou menor quantidade que o latim e assim por diante. “É literalmente a arte de criar gramáticas”, conclui Cristina. 

Sem comentários:

Enviar um comentário