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sábado, 9 de fevereiro de 2019

Digressão à China do SCP no Verão de 1978

A propósito do post de ontem relativo ao reatamento das relações diplomáticas entre Portugal e China em Fevereiro de 1979, recordo um outro acontecimento que serviu para 'relançar' essas relações diplomáticas: Refiro-me à digressão do Sporting Clube de Portugal* à China, iniciada a 25 de Junho de 1978, a primeira viagem de uma equipa de futebol europeia àquele país.
Para além dos jogadores e equipa técnica, a comitiva integrava João Rocha, presidente do Sporting Clube de Portugal; Veiga Simão, na qualidade de consultor da missão e de ex-embaixador de Portugal na ONU, responsável pelos primeiros contactos pós-25 de Abril com os diplomatas chineses acreditados junto da sede da ONU, em Nova Iorque; e Carlos Ricardo, primeiro-secretário da Associação Democrática de Amizade Portugal-China. Para Carlos Ricardo esta digressão transcendeu "o âmbito desportivo para se fixar no objectivo de uma maior aproximação entre os dois povos".
A digressão ocorreu entre os dias 27 de junho e 10 de Julho de 1978. O jogo entre a selecção de China e o SCP ocorreu a 30 de Junho. Cerca de 100 mil chineses viram no Campo dos Operários em Pequim a equipa portuguesa ganhar por 2-0.
* o SCP tinha uma filial em Macau criada em 1926.

O evento na imprensa portuguesa da época. (clicar para ver em tamanho maior)
João Rocha, chefe da delegação desportiva, levava consigo uma mensagem escrita do primeiro-ministro Mário Soares e do Presidente da República, Ramalho Eanes, para o governo chinês. A delegação foi recebida pelo vice-primeiro-ministro da China e o governador militar da província de Pequim, Marechal Ten Xie Lie
A digressão revelou-se um sucesso mas em Portugal o 2º governo constitucional acaba por ser exonerado a 27 de Julho e o que fora alcançado por via da diplomacia e do desporto teve de ser adiado por mais alguns meses.
Entretanto a China deu outros sinais de empenho: convidou  - foi o primeiro convite do género desde 1950 - o governador de Macau (Garcia Leandro) para as comemorações do 29 º aniversário da fundação da República Popular da China (a 1 de Outubro), celebrou-se um acordo de cooperação entre a Agência Noticiosa Portuguesa (ANOP) e a homólogo chinesa, a Xinhua; e um jornalista português foi convidado a visitar a China. Gonçalo César de Sá foi o jornalista e recordou assim essa viagem num artigo publicado na revista Nam Van, n.º 13 (1.6.1985): “Quando em Novembro de 1978, como convidado da agência noticiosa Nova China, fui recebido em Pequim pelo vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Yu Zhan, era-me dado o primeiro sinal público de que o estabelecimento das relações diplomáticas com Portugal estava iminente."
Com a devida vénia reproduzo parte do Diário (secreto) de Pequim, da autoria de António Graça de Abreu sobre esta visita e que vivia em Pequim na altura:
Depois de vencer o Porto por 2-1, na final da Taça de Portugal aí veio a rapaziada verde a caminho de Pequim. Trouxeram uma grande comitiva, 41 personagens entre jogadores, dois árbitros, fotógrafos, jornalistas e figuras públicas. Como não há ainda relações diplomáticas, foi o PCP (m-l), único partido reconhecido pelo PC chinês, quem mexeu os cordelinhos para a concretização da viagem e, para dar sequência ao trabalho, cá estão os militantes Carlos Ricardo e Mourato Costa, meus amigos nas lides partidárias em Lisboa, com o disfarce de serem dirigentes da ADAPC (Associação Democrática de Amizade Portugal-China). O Eduíno Gomes (Vilar), secretário-geral do PCP (m-l), também é um grande sportinguista. Tudo tem funcionado quase na perfeição. Veio também o Veiga Simão, antigo ministro da Educação de Marcelo Caetano e ex-embaixador na ONU e hoje próximo do PS, como uma espécie de chefe da delegação desportiva, mas com uma missão política semi-secreta, a de entregar uma carta do nosso presidente Ramalho Eanes endereçada ao Hua Guofeng ou ao Deng Xiaoping saudando os homens mais poderosos da China e solicitando os bons ofícios de ambos para o rápido restabelecimento das relações diplomáticas.
O futebol foi divertido, uma vitória de 2 a 0 sobre a selecção da China e um empate 0 a 0 com a equipa de Pequim. Os chineses já dão uns bons chutos na bola e gostei de ver o Estádio dos Operários de Pequim cheio como um ovo, eram mais de 100 mil chineses entusiasmados, a aplaudir. No fim do segundo jogo tive a sorte de regressar do estádio para o hotel Pequim — onde os jogadores e comitiva estão alojados –, viajando no autocarro juntamente com os craques verdes, o Manuel Fernandes, o Inácio, o Laranjeira, o Artur, o Jordão (que chegou de canadianas à China, por estar em recuperação de uma perna partida).
O presidente João Rocha, que percebeu viver eu em Pequim, veio, em privado, fazer-me uma pergunta singular. Queria saber onde poderia comprar uns pós chineses, milagrosos, que faziam maravilhas no revigoramento sexual masculino. Não era para ele, tinha sido o pedido de um amigo. Eu até pensei que poderia ser para dar aos jogadores que assim ocupariam melhor os tempos livres. Creio que se tratava de uma mezinha explosiva elaborada a partir de corno de rinoceronte, produto caro, às vezes falsificado, de facto à venda em farmácias de medicina tradicional chinesa, mas eu não era especialista na matéria. Disse ao João Rocha para falar com os intérpretes da comitiva, eles próprios poderiam tratar da compra da droga benfazeja. Ignoro qual foi o resultado.
No estádio dos operários toda a equipa do Sporting foi recebida e cumprimentada pelo general Chen Xilian (1915-1999), um velho combatente da guerra contra o Guomindang de Chiang Kai-shek (participou na Longa Marcha!) e contra os japoneses, hoje membro do Politburo do Partido Comunista da China, comandante militar de Pequim e um dos vice-primeiros ministros. Tudo isto é sinal da importância que os chineses deram à visita do Sporting, alargando a via que conduzirá em breve ao estabelecimento das relações diplomáticas."
Excerto de notícia da Agência Lusa de 4.2.2019 com declarações de um dos jogadores do SCP que participou na digressão à China.
"Todos olhavam para nós: trazíamos roupas coloridas, cada um tinha o seu estilo, enquanto [os chineses] pareciam todos iguais", descreve assim, o ex-futebolista, Pequim no verão de 1978. Portugal e China não tinham ainda relações diplomáticas, mas quatro anos antes, a Revolução dos Cravos tinha derrubado o regime fascista do Estado Novo, tornando inevitável a aproximação ao país asiático, que se começava então a libertar da ortodoxia maoísta."Nós tínhamos acabado de sair do fascismo, e viemos para um país que era do mais puro socialismo que existia. O mais igualitário que havia", recorda Onofre à agência Lusa. "Roupa, cortes de cabelo, todos de bicicleta; era igual para toda a gente: homens ou mulheres", realça.
A Revolução Cultural (1966-76), radical campanha política de massas lançada pelo fundador da China comunista, Mao Zedong, estava ainda fresca. Durante aquela década de caos, dezenas de milhões de pessoas foram perseguidas, presas e torturadas, sob a acusação de serem "revisionistas", "reacionárias" ou "inimigos de classe", forçando a sociedade chinesa a uma homogeneidade quase absoluta.
A digressão do SCP foi promovida pela Associação Democrática de Amizade Portugal-China, uma organização criada pelo Partido Comunista de Portugal (Marxista-Leninista), o único grupo político português reconhecido então pelo Governo chinês.
Um alto funcionário chinês comparou então o Sporting com a equipa de pingue-pongue americana que foi a Pequim em 1971, abrindo caminho à histórica viagem do presidente Richard Nixon à China, em fevereiro do ano seguinte.
"Os americanos, que jogaram com uma bola pequena, abriram uma pequena porta. Os portugueses jogaram com uma grande bola e abriram uma porta grande", disse o presidente da Associação Chinesa de Amizade com os Países Estrangeiros, Wang Bingnan. O Sporting, que acabara de ganhar a Taça de Portugal, frente ao FC Porto, venceu a seleção chinesa por 2-0 e nos dois outros jogos que disputou na China, ganhou um e empatou outro.
O futebol chinês era ainda uma modalidade amadora e a seleção do país, que não estava sequer inscrita na FIFA, era composta sobretudo por operários.
"Primeiro a Amizade, Depois a Competição", era, aliás, o lema que regia o desporto na China. Ainda assim, "os jogadores chineses corriam sempre atrás da bola" e "davam trabalho exatamente por isso", descreve Onofre, que recorda a viagem, desde Portugal, como uma "aventura". "Saímos ao meio-dia de domingo de Lisboa, chegamos aqui na terça-feira: foram três ou quatro paragens. Na altura tivemos que contornar o Vietname [a guerra tinha acabado poucos anos antes], não podíamos sobrevoar", revela.
O antigo jogador lembra-se de visitar a Muralha da China e o Palácio de Verão, dois ex-libris da China, mas o que mais o impressionou foi a paisagem humana.
"No final dos turnos, na avenida junto à praça Tiananmen, eram milhões de pessoas a sair das fábricas de bicicleta. E havia um outro carro que tinha que se desviar, porque eles iam direitos, naquela tranquilidade deles", conta.
A entrevista à Lusa decorreu em Pequim, para onde Onofre regressou, no ano passado, agora como treinador de futebol numa escola pública da capital chinesa. A pobre e isolada China que o português conheceu no verão de 1978 converteu-se, entretanto, na segunda maior economia do mundo, alargando a classe média em centenas de milhões de pessoas, num ritmo sem paralelo na História moderna. (...)

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