Páginas

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

"Descripção da Cidade do Nome de Deos na China": 2ª parte

Forte de Santiago
No tocante às fortificações, tem esta cidade logo na entrada da barra um forte que chamam o Forte de Santiago (início da construção em 1616), que tem cento e cinquenta paços de comprido e cinquenta e cinco de largo, com que faz uma formosa plataforma, que fica alevantada do mar cinco braças, com um muro fundado em vinte e oito palmos de largo e acabado em dezassete; e esta dita altura é até (a)os parapeitos, que levantam só três palmos da dita plataforma, com que não podem guardar a gente nem artilharia, fazendo conta de lhe porem cestões na ocasião de briga. Está no meio desta praça uma cisterna, aberta no côncavo da rocha, capaz de (acomodar) três mil pipas de água, de que tem a maior parte. As casas que lhe ficam nas costas, pela banda de terra, são bastantes para alojar um capitão com sessenta homens, e aqui por baixo do chão estão casas de munições e mantimentos. Na entrada que tem pela banda da varela está uma casa de quatro águas, grande e formosa. E tem esta praça outra que lhe fica por cima, pegada com ela, a que se tolhe por quinze degraus, onde também está artilharia, e numa e noutra (fortaleza) é grossa (a artilharia). E no andar de cima estão as ditas casas de gasalhado para capitão e soldados. Deste forte que está na praia fica lançada uma cortina de muro (até) ao alto do monte (Penha), que acaba em uma casa, onde, quando aqui vivia o capitão-geral, fazia corpo de guarda.

Baluarte de Nossa Senhora do Bom Parto 
O outro baluarte é de Nossa Senhora do Bom Parto (junto à linha de água no sopé da Colina da Penha - muralha ainda existe na residência oficial do cônsul de Portugal em Macau)), um baluarte pequeno, em forma de triângulo, capaz de jogar dez ou doze peças de artilharia, de que tem seis, convém a saber: uma colubrina de metal de vinte libras, um canhão de metal de trinta (libras), uma meia colubrina de dez (libras), dois terços de canhão de dezoito libras, tudo de metal e (com) pelouros de ferro, e uma peça de ferro de oito libras, de pelouro de ferro.

Baluarte de Nossa Senhora da Penha de França
Em Nossa Senhora da Penha de França, que fica num monte superior a este, está também feito um baluarte pequeno, onde estão dois sagres de metal, que tira cada um com bala de sete libras de ferro.
Baluarte de S. Francisco 
(no extremo da baía construído por volta de 1629 junto à linha de água existindo ainda uma muralha do tempo em que foi construído o quartel de S. Francisco).
O baluarte de São Francisco (imagem acima), que está em forma oval, tem seis peças de metal, convém a saber: duas colubrinas de vinte libras de bala, um canhão de trinta (13,6 Kg), dois meios canhões de vinte (libras) cada um, um terço de canhão de dezoito [libras], todas peças de metal e (com) os pelouros de ferro. Ao pé deste baluarte de São Francisco está uma plataforma onde está uma colubrina, que atira trinta e cinco libras (15,8 Kg) de pelouro de ferro, (sendo) a maior peça que há nesta cidade. Na Praia Grande está uma plataforma, que tem um terço de canhão de metal, que atira bala de dezoito libras de ferro.
Baluarte de Nossa Senhora da Guia
O monte de Nossa Senhora da Guia é o mais alto que há nesta cidade, por cuja causa se faz no cume dele um baluarte que tem cinco peças, convém a saber: uma colubrina bastarda que atira bala de oito libras de ferro, um pedreiro que atira bala de seis libras, três sagres que atira(m) cada um com bala de nove libras de ferro, todas peças de metal. Estão em cima neste monte casas para se poder alojar uma companhia de soldados, e também cisterna de água, mas como fica cavaleiro ao forte de São Paulo tem-se por melhor arrasá-lo, como se pôs já em preço com os chineses, que se obrigam a o fazer por sete mil taéis.
Forte de São Paulo 
(as primeiras fortificações foram concluídas em 1606 e a fortaleza entre 1617 e 1620)
A força de mais consideração e importância que há nesta cidade é a de São Paulo, vivenda dos capitães-gerais, chamada por outro nome a Madre de Deus, que é um monte natural, eminente e cavaleiro a toda a cidade, onde, no cume dele, está feito um muro, começado no alicerce em vinte palmos de largura, com pedra mármore, até que sai em cima da terra em altura de seis palmos, donde começa a ser só de terra e cal, misturada com alguma palha, batida com batedores tão fortemente que fica fortíssimo, e para a bateria muito melhor [do] que se fora de pedra, porque não o abala tanto. 
Sendo que fica tão dura a parede (feita) desta terra e cal, como se fazem todas as casas nesta cidade, que, para lhe abrirem as janelas depois de feitas, o fazem com muitos picões de ferro, com grande força e trabalho. Vão os ditos muros estreitando pela medida de seu escarpe, até ficarem em quinze palmos de grossura em cima, no andaime dos parapeitos. A altura deste muro é de cinquenta palmos, que é o mesmo que cinco braças. Está feito o dito forte em quadro perfeitamente, ficando-lhe em cima uma praça de cem passos de cada lado, e tantos tem de comprimento cada lanço de muro, que vão a fazer nos quatro cantos quatro baluartes em forma de espigão, como da planta se vê.
Fica mais em cima, no meio da dita praça, a que cercam quatro renques de casas, umas em que moram os (capitães)-gerais e as três para os soldados, uma torre cavaleira de três sobrados, que em cada um tem artilharia, em a qual e nos ditos quatro baluartes estão repartidas dezoito peças de artilharia de metal, toda grossa, convém a saber: uma colubrina real, que atira trinta e cinco libras de bala, outra colubrina que atira vinte (libras), duas meias-colubrinas de doze (libras), uma meia-colubrina de dezoito (libras), dois canhões de trinta (libras), sete meios canhões de vinte (libras), um meio canhão de vinte e cinco (libras), três terços de canhão de dezoito (libras), todos (atiram) pelouros de ferro, e cavalgadas estas peças em seus reparos ferrados, muito bem concertados. 
Tem este forte à porta, da banda de dentro, um corpo de guarda. E por uma e outra banda se sobe ao monte, que fica igual com o muro, e no côncavo dele estão abertas casas de munições, que tem bastantes para qualquer guerra, mas não para um cerco de mais de dois anos, a respeito da muita pólvora que gasta esta artilharia grossa, posto que podem ter materiais de que a vão fazendo, pelos muitos que há na terra.

De mantimentos não é tão provida esta cidade, com haver na terra dentro muitos e bons e baratos, porque, como os esperamos da mão dos chineses, em tendo qualquer sentimento de nós, logo nô-los tolhem, sem terem aqueles moradores modo para os irem buscar a outra parte, havendo-os em Cochinchina, que está de Macau cem léguas ao sudoeste, e também [havendo] alguns nas muitas ilhas que cercam a península onde está a cidade, de que as mais são habitadas.

Porto de Macau
A barra desta cidade de Macau era antigamente muito larga, porém, os portugueses moradores dela entupiram a maior parte, a respeito dos holandeses não poderem entrar com suas naus senão por um canal que lhe fica ao longo do dito Forte de Santiago, coisa de seis braças de largura e com fundo de três, ficando lá dentro em muito mais fundo. Desde a dita barra para dentro, até ilha Verde, que fica dentro nela, estão continuamente seis bancões de chineses da armada, que são as suas embarcações, que trazem de lá para vigiar e saber o que fazem os portugueses, se metem nações estrangeiras (em Macau), que é o de que mais se ciam e resguardam.
Entra-se para esta barra por entre muitas ilhas, quase infinitas, as mais delas habitadas, como fica dito. A costa deste reino e terra corre não perfeitamente ao nordeste-sudoeste, porque faz grandes enseadas e nunca vai direita a um rumo. Os ventos que nela cursam, o mais ordinário é o leste, que é o que aqui reina, e com que dão grandes tormentas. De Outubro até meado de Março cursam nortes e nordestes, com que se navega para Malaca e todas as partes a que se vem por ela; e para Japão de meado [de] Maio até todo [o] Agosto com sul, sudoeste e sueste; e para Manila todo o ano. E estas são as monções de ventos e navegações que há nesta costa. Antigamente davam nela grandes tormentas de ventos, que chamam tufões, que arrancavam árvores muito grandes e arrebatavam os homens do chão com grande fúria; depois que para lá levaram um braço do glorioso São Francisco Xavier (...) . Porém, o que têm é só gado, porco, galinhas e marrecas.
Os muros que tem esta cidade estavam quase acabados por Dom Francisco Mascarenhas, o primeiro capitão-geral que teve e que lhe fez as mais destas obras. Porém, os chineses, como são tão desconfiados, fizeram derrubar grande parte deles, dos que estão para a banda da terra, que iam correndo do dito forte de São Paulo, parecendo-lhes que contra eles é que se faziam. E assim ficaram só as (muralhas) que correm em frente do mar e da banda do poente, e uma tranqueira na praia de Cacilhas, onde desembarcou o inimigo quando acometeu esta cidade. A altura destes muros é de duas braças até [a]os parapeitos e a largura fica sendo neles de oito palmos, advertindo que, como o chão por onde vai correndo não é todo igual, senão em partes desce e sobe, também assim fica sendo o muro, ora mais alto ora mais menos, para ficar por cima correndo todo ao nível. É feito da mesma matéria que temos dito, de terra e cal entressachada, alguma palha, e tudo muito calcado, com [o] que são muito fortes.
Na plataforma que têm na Praia Grande, está um terço de canhão de dezoito libras, e noutros dois baluartes, [n]um chamado São Pedro, dois sagres, cada um de bala de sete libras, e noutro chamado São João, um terço de canhão de dezoito libras e uma meia-colubrina bastarda de oito (libras), tudo [de] pelouros de ferro. Em toda a dita artilharia referida têm mais quatro trabucos de metal de vinte e cinco libras cada um, três peças de ferro de sete libras, cinco falcões de bronze, três berços de bronze, dois falcões de ferro, um trabuco de ferro, que estão para se porem onde for necessário.
Há na dita cidade de Macau setenta e três peças de artilharia, afora muitas de particulares e de Sua Majestade, de ferro, que estão feita[s]. Porque tem esta terra uma fundição das melhores que há no mundo, assim de bronze, que antigamente tinha, como de ferro, que o conde de Linhares, vice-rei, lhe mandou fazer, onde se está sempre fundindo artilharia para todo este Estado [da Índia], em preço muito acomodado, que é o de que tem mais necessidade, donde todo ele se proverá, a estar desimpedido o estreito de Singapura, que continuamente nas monções está cercado dos holandeses, como atrás fica dito.
Toda a dita artilharia que tem esta cidade e obras de muros e fortes fez ela à sua custa, sem a Fazenda Real entrar nisso com coisa alguma, em tempo que a viagem de Japão corria quase por sua conta, e particularmente os direitos [a] que chamavam o caldeirão, que são hoje a oito por cento de todas as fazendas que vão para [o] Japão, e antigamente eram a três e a quatro [por cento], e ainda assim lhe rendiam muito. Porém, foram tão largas as despesas que, além da viagem de que Sua Majestade lhe fez mercê, que está hoje empenhada em grandes quantias, a cujo respeito lhe são concedidos os ditos direitos -- porém, com um exacto regimento que o dito conde de Linhares lhe mandou fazer das despesas, que hão-de fazer só as que forem forçosamente necessárias, e para lhe tomarem contas como nunca deram -, de sorte que, conforme o regimento adiante lançado para o administrador da viagem de Japão e este para a cidade, e outras ordens que lhe fez guardar, a fez o dito conde vice-rei muito obediente a todas as [determinações] de Sua Majestade, que dantes não era, a pôs em modo de se tirar dela muito proveito para sua real Fazenda, com a grande cópia de artilharia de ferro e cobre para a Índia, que se manda vir todos os anos.
Não tem Sua Majestade outra renda alguma nesta cidade mais que a das ditas viagens, porque o rei da China, em cuja terra está, lhe arrecada os direitos de tudo o mais, convém a saber: da entrada de todo o género de embarcação que ali venha com fazendas pagam a medição dela conforme o tamanho da embarcação (os patachos de quinhentos ou seiscentos candis, a quinhentas ou seiscentas patacas, pouco mais ou menos), tirando que se, quando vão medir as embarcações, há modo de irem peitando aos medidores que o façam favoravelmente, vem a render muito menos, porque eles buscam o seu proveito mais que o d'el-rei, e não reparam em ir a embarcação carregada do que quer que seja.
Da saída, os direitos que pagam é em Quantão, uma cidade dos chineses onde se vai por um rio dentro, léguas de Macau, onde se faz a feira das fazendas, afora muitas que vêm à formiga. E não é coisa certa, porque fica sendo muito menos quando os chineses não têm algum sentimento dos portugueses de alguma coisa que lhe hajam feito ou dado, ou morto a algum chinês, como acontece muitas vezes, porque tudo lhe[s] fazem pagar a dinheiro, prendendo a lanteia, que é a embarcação onde se vão buscar as fazendas, com alguns cidadãos de consideração que abram a feira. Onde também lhe[s] fazem os chineses muitas avexações, não sendo as menores os furtos e roubos que são notáveis, e os chineses tão inclinados a isso que até as mais miúdas coisas que vendem trabalham sempre por ser com enganos.

Nota: as imagens apresentadas visam uma melhor compreensão do texto e não estão incluídas na obra referida. 

Sem comentários:

Enviar um comentário