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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

"Descripção da Cidade do Nome de Deos na China": 1ª parte

O "Livro das plantas de todas as fortalezas, cidades e povoaçoens do Estado da India Oriental" é de 1635. Com texto de António Bocarro, cronista-mor do Estado da Índia e ilustrações (48) do cartógrafo Pedro Barreto de Resende foi uma encomenda de Filipe III, através do vice-rei da Índia D. Miguel de Noronha, conde de Linhares (Resende era o se secretário), numa altura em que, na zona europeia do Império, se iniciavam já as acções de revolta contra o domínio espanhol, as quais se adensariam cada vez mais até 1640, apenas cinco anos depois.
O autor do texto, além da descrição das cidades e fortalezas da região, efectua ainda um resumo de tudo o que de mais importante havia a destacar em cada uma delas, acrescentando por vezes leituras pessoais sobre o que considerava estar menos bem ao nível político e social e apontando soluções. Bocarro proporciona ainda elementos sobre as rotas comerciais, sintetizando a actividade mercantil dos portugueses, das vias que percorriam, dos produtos que transportavam e do modo como os negociavam.
Sobre Macau - "uma das mais nobres cidades do Oriente" - é então apresentada uma "Descripção da Cidade do Nome de Deos da China" feita por António Bocarro e uma planta do território feita por Pedro Resende onde se evidenciam as muralhas, fortificações militares, igrejas e os edifícios residenciais já existentes no início do século 17.
Bocarro era "cronista e guarda-mor" da Torre do Tombo de Goa e tanto quanto se sabe nunca esteve em Macau pelo que o que escreve só pode ter tido por base testemunhos de outras pessoas e documentos aos quais tinha acesso devido ao cargo que ocupava. Seja como for estamos perante um dos melhores relatos dos primórdios de Macau cujo assentemento remonta a 1557.
Não me vou ocupar dessa parte, mas destaco ainda o facto de ele apresentar um retrato sobre o reino da China: "De maneira que tem a China toda quinhentas e sessenta cidades."

Nota: De forma a facilitar a leitura os excertos que apresento são em português actual com notas de contexto entre parêntesis.

A Cidade do Nome de Deus está em altura de vinte e dois graus e meio da banda do norte, sita na ponta austral duma península, na costa do rei-no da China, à fralda do mar, na província de Quantão, uma das quinze em que se divide este grande reino do estado de Noanxan. Esta ponta da dita península é chamada pelos nossos e pelos naturais Macau. Tem a península uma légua de comprido e no mais largo quatrocentos passos. A cidade fica tendo meia légua de comprimento, e onde mais estreita cinquenta paços e onde mais alarga trezentos e cinquenta. Fica participando de dois mares, do levante e poente. É uma das mais nobres cidades do Oriente, por seu rico e nobilíssimo trato para todas as partes, de toda a sorte de riquezas e coisas preciosas em grande abundância, e de mais número de casados e mais ricos que nenhuns que haja neste Estado (da Índia).
D(esde) o ano de mil quinhentos e dezoito, em que os portugueses a primeira vez vieram à China, com uma embaixada do sereníssimo Rei Dom Manuel,contrataram em vários portos deste reino, e finalmente no porto e ilha de Sanchoão, onde esta cidade tomou seu primeiro princípio e onde, no ano de mil quinhentos cinquenta e dois, faleceu São Francisco Xavier, segundo apóstolo da Índia e padroeiro desta cidade (de Macau). E no ano de mil quinhentos cinquenta e cinco se passou o trato à ilha de Lampacau. E no de mil quinhentos cinquenta e sete se passou para este porto de Macau, onde, com o trato e comércio, se foi fazendo uma populosa povoação. E no (ano) de mil quinhentos oitenta e cinco, sendo vice-rei da Índia Dom Francisco Mascarenhas, foi feita cidade por Sua Majestade, com título do Nome de Deus, dando-lhe por armas a cruz de Cristo e outras liberdades, de que goza com privilégios da cidade de Évora.
É porta por onde veio da Índia à China por mar o apóstolo São Tomé e por onde, nestes tempos, o Santo Evangelho, levado pelos religiosos da Companhia de Jesus, entrou nestes reinos e no de Japão e Cochinchina, com grande glória sua e aumento de sua Igreja.
Os casados que tem esta cidade são oitocentos (e) cinquenta portugueses e seus filhos, que são muito mais bem dispostos e robustos que nenhuns que haja neste Oriente, os quais todos têm, uns por outros, seis escravos de armas, de que os mais e melhores são cafres e de outras nações. Com (o) que se considera que, assim como têm balões que eles remam, pequenos, em que vão a recrear-se por aquelas ilhas, seus amos poderão também ter manchuas maiores, que lhes ser-virão para muitas coisas de sua conservação e serviço de Sua Majestade.
Além deste número de casados portugueses, tem mais esta cidade outros tantos casados entre naturais da terra, chineses cristãos, que chamam jurubaças, de que são os mais, e outras nações, todos cristãos. E assim os portugueses como estes têm suas armas muito boas, de espingardas, lanças e outras sortes delas, e raro é o português que não tem um cabide de seis ou doze mosquetes e pederneiras, e outras tantas lanças, porque os fazem dourados, que juntamente lhe(s) servem de ornamento das casas.
Tem, além disto, esta cidade muitos marinheiros, pilotos e mestres portugueses, os mais deles casados no Reino, outros solteiros, que andam nas viagens de Japão, Manila, Solor, Macáçar, Cochinchina. Destes, mais de cento e cinquenta, e alguns são de grossos cabedais, de mais de cinquenta mil xerafins, que por nenhum modo querem passar a Goa, por não lançarem mão deles ou as justiças (reais) por algum crime ou os vice-reis para serviço de Sua Majestade. E assim (há) também muitos mercadores solteiros, muito ricos, em que militam as mesmas razões.
Tem mais esta cidade capitão-geral, que governa as coisas de guerra, com cento e cinquenta soldados, em que entram dois capitães de infantaria e outros tantos alferes, e sargentos e cabos de esquadra e um ajudante, um ouvidor e um meirinho, que administra(m) justiça. Vence o ouvidor cem mil réis de ordenado, consignados na alfândega de Malaca. E (sobre) ministros eclesiásticos tem um bispo, que hoje é morto e ainda não está provido (substituído), que vence dois mil xerafins de ordenado, pagos na alfândega de Malaca. (...)
continua...

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