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domingo, 31 de janeiro de 2021

"Couvent de La Guia a Macao": um erro do século 19

Correram mundo estas ilustrações de meados do século 19 com a legenda "Couvent de La Guia a Macao" em livros que fizerem a descrição de várias expedições francesas ao Oriente com passagem por Macau. 
Na verdade trata-se do Convento e Igreja de S. Francisco. Nesta altura existia a Ermida da Guia mas nem se vê no desenho. O erro seria replicado por inúmeras publicações em vários países ao longo de várias décadas.
Ilustração de Barthelemy Lauvergne inserida no livro "Voyage around the world by the seas of India and China of the corvette of Her Majesty La Favorite executed during the 1830s, 1831 and 1832 under the command of Mr. Laplace, Commander", publicado" em Paris em 1835.

Excerto:
"A peine avions nous mis pied à terre et demandé asile à un brave négociant américain que nous songions déjà à visiter Macao. Notre première excursion fut le long de la plage qui terminait la baie. Nous marchâmes ainsi profi tant de la fraîcheur du soir jusqu à une espèce de fortification placée à l extrémité du demi cercle et d'où, la ville ses couvens son église et ses maisons, se déroulaient comme une ligne blanche. Sur la hauteur se dessinait le couvent de la Guïa, palais épiscopal et forteresse de Macao. Un large pavillon portugais flottait à l un de ses angles."

“Mal colocámos os pés em terra fomos ter com um valente comerciante americano que já nos tinha desafiado a visitar a cidade de Macau. O nosso primeiro passeio foi ao longo da praia que desemboca na baía (da Praia Grande). Caminhamos assim desfrutando do fresco da noite até chegarmos a uma espécie de fortificação localizada no final do semicírculo (Fortaleza de S. Francisco) e a partir do qual, vislumbra-se a cidade, os seus conventos, as suas igreja e as suas casas. No alto fica o Convento da Guia (é a Ermida), palácio episcopal (verdade, chegou a ser residência do bispo) e fortaleza. Uma grande bandeira portuguesa tremulava num dos seus ângulos. "

Lauvergne participou em três destas expedições fazendo três viagens à volta do mundo e voltaria a pintar o mesmo local quando esteve a bordo da fragata La Favorite (imagem abaixo) dando a mesma legenda:
A ilustração abaixo Couvent de la Guya a Macao (Chine) - também de Lauvergne, seria publicada em 1840 no livro "Voyage Autour du Monde Execute Pendant les Annes 1836 et 1837 sur la Corvette la Bonite Commandee par M. Vaillant… Album Historique".

Neste caso a Guia é a ermida (e fortaleza) que que se vê no topo da colina.
Excerto:
"Poussée vivement dans ce chenal sinueux la jonque s engagea bientôt au milieu des passes qui conduisent au mouillage de la Typa vis à vis de Macao. En avançant vers la ville nous voyions fuir sur notre droite une côte sombre rougeâtre et toute bordée de brisants sur la gauche dominant les rochers et la mer paraissait une batterie portugaise. Plus loin se montrait le couvent de la Guïa résidence de l évêque facile à reconnaître à ses hautes murailles et à ses arbres tousfus les sculs debout au milieu de cet aride paysage. Au dessus de la Guïa se dressait un autre monastère perché sur la cime du roc tandis qu étagées le long de la colline les maisons de Macao descendaient à la mer jusqu'à ce que leur pied s'y baignat."

“Empurrado vivamente neste canal sinuoso, o junco logo entrou no meio dos desfiladeiros que conduzem ao ancoradouro da Typa (leia-se Taipa) em frente a Macau. À medida que avançávamos em direção à cidade, vimos uma costa escura e avermelhada fugir à nossa direita e toda forrada de ondas na a esquerda dominando as rochas e o mar, uma bateria portuguesa. Mais adiante ficava o convento da Guia (Ermida e Fortaleza) residência do bispo, fácil de reconhecer pelos seus altos muros e pelas suas árvores erguidas no meio desta paisagem árida. Descendo a colina da Guia erguia-se outro mosteiro (S. Francisco) empoleirado no topo da rocha, enquanto as casas de Macau, dispostas ao longo da colina, desciam até ao mar, como se os seus  se banhassem nele."

sábado, 30 de janeiro de 2021

Companhia de Táxis Oriente

Fotos a p/b na década de 1950
Perspectiva do século 21 do mesmo local

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Foto-Legenda: Fabrico Panchões na década 1950

"Overshadowed commercially by Hong Kong, the colony has a big fleet of fishing junks, makes firecrackers and matches (...)."
in National Geographic, Maio 1953
clicar na imagem para ver em tamanho maior

Fotografia da década de 1950.
Embalamento de panchões Star Light, uma das várias marcas da fábrica E-Wo Yeung Hong.

"In fact , the largest industry in Macao until 1953 was that of firecracker manufacture".
in Japan Magazine, 1957

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Esboço de hum diccionario juridico... 1827

 

Esboço de hum diccionario juridico, theoretico, e practico, remissivo às Leis compiladas, e Extravagantes por Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Advogado na Casa da Suplicação. Vol. 2, Lisboa, 1827.


Macáo - Cidade da China na Provincia de Cantão
O Bispado de Macáo foi erigido em 1575. Ao Bispo de Macáo se dirigio Provisão do Conselho Ultramarino em data de 17 de Março 1800, expedida em virtude da Regia Resolução de 8 de Maio 1799, em Consulta do mesmo Tribunal para que se abstivesse dos meios coactivos, pois a posse, que elle se arrogava, devia, para poder manter-se, ser immemorial no tempo da Provisão de 2 de Março 1568, de que se reformára o 1º do tit. 9 do liv. 2º, o que não podia verificar Prelado algum do Reino. Por Provisão do Conselho Ultramarino de 8 de Agosto de 1728 se mandou que em Macáo podessem os pais, prestando fiança idonea, metter em negocio as legitimas dos filhos. Pelo Decreto datado do Rio de Janeiro de 13 de Maio de 1810 forão isentos os habitantes de Macao dos direitos de entrada nas Alfandegas do Brasil a respeito dos generos, e mercadorias da China, que se exportarem directamente para os portos do Brasil, e pertencerem a Vassallos Portuguezes, ou por sua conta forem carregados em navios nacionaes; ficando independentes da navegação para Goa, mas sendo obrigados a enviar alli o barco das vias, que faz correspondencia com a Metrópoli. A Carta Regia de 2 de Junho do dito anno declarou, e limitou aquelle Decreto somente aos generos pertencentes a Vassallos residentes na Colonia, e sendo transportados em navios seus, e que fossem construidos nos estaleiros dos Dominios de Asia.
Foi permittido aos moradores de Macáo nomear Juiz e Escrivão dos Orfãos, Alvará de 24 de Janeiro de 1603. Ao Senado da Camara da dita Cidade foi concedido o Titulo de Leal pela Carta Regia de 13 de Maio de 1810. Creou se na mesma Cidade huma Junta de Justiça e se lhe dêo Regulamento pelo Alvará de 26 de Março de 1803. A Carta Regia de 30 de Maio de 1810 recommenda que se não abuse da Graça concedida no Decreto de 13 do dito mez e anno a beneficio do commercio de Macáo para o Brasil.
Pelo Decreto de 21, e Alvará de 31 de Janeiro de 1710, forão approvadas as condições com que se creou huma Companhia de homens de negocio para fazerem o commercio das Ilhas de Macao, e sendo Administradores della Luiz Maciel Manoel de Sousa Soares, Gonçalo Pacheco Pereira e Manoel Velho da Costa. E pelo Alvará de 30 de Dezembro de 1709 foi prohibido aos mercadores de Macáo negociar com os Chinas; este Alvará vem citado no de 26 de Março de 1803 que creou o lugar de Ouvidor da dita Cidade e derogou o de 16 de Fevereiro de 1587. A Carta Regia de 12 de Março de 1779 foi declarada por Alvará de 8 de Janeiro de 1783 que concedêo o beneficio de baldeação aos generos, que se embarcassem nos portos de Lisboa, Ilhas e Brasil em navios Portuguezes para os de Goa e Macáo, ou destes para os de Lisboa. Vejão-se os Decretos de 29 de Janeiro, e os Alvarás de 27 de Maio de 1789, de 17 de Agosto de 1795, de 25 de Novembro de 1800. e de 27 de Dezembro de 1802.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

"Breve Descripção da Ilha de Heang-Xan"

Na parte "Não Official" da edição de 21.12.1850 do Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor surge esta "Breve Descripção da Ilha de Heang-Xan" - onde está localizada a península de Macau - e na parte dos "foros territoriaes" refere-se que o governo de "um dos quatorze Districtos dependentes do Departamento de Quong-chao na Província de Cantão tem cobrado desde o principio do estabellecimento (de Macau) até ao anno de 1848 quinhentos taeis".
Actualmente designa-se por Zhongshan (中山島) albergando a cidade com o mesmo nome e a cidade de Zhuhai. No link indicado acima pode ver-se uma perspectiva de Macau da parte mais elevada desta região numa pintura de Auguste Borget - reproduzida por outros autores posteriormente - e da qual apresento em baixo um detalhe do que é retratado: um funeral com a península de Macau repleta de edifícios residenciais, igrejas e fortificações.
"From the Forts of Heang-shan". Muito parecido com o original de Borget mas não é igual.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

"Naquele tempo..."

"(...) Quem desce a Calçada do Gaio e deseja encurtar caminho para a Rua do Campo dobra a esquina e inevitavelmente atravessa, de lés a lés, um dédalo de vias estreitas, dominadas por um casario amontoado e incaracterístico, que constituem o Cheok Chai Un*.
Nem sempre foi assim. O Cheok Chai Un, com a área delimitada pela Rua Nova à Guia, Rua do Brandão, Rua do Campo e pelo tardoz do Colégio de Stª Rosa de Lima, onde se erguem alguns dos restos da antiga muralha de Macau, foi até os princípios dos anos 60, mais ou menos, um bairro muito típico que o progresso dilacerou.
Em tempos mais remotos, pertenceu a uma zona arborizada, que subia a encosta de S. Jerónimo e se estendia, já esparsamente, para as hortas e várzeas do Tap-Seac, na planura do Campo da Victória, zona esta que mereceu dos chineses o nome de Jardim dos Pássaros.
Com o desenvolvimento da Cidade do Nome de Deus, atraindo populações das aldeias circunvizinhas, em demanda de uma vida de melho­res oportunidades, nasceu a povoação de Cheok Chai Un, que, decorridos anos, com a construção da muralha de Macau, ficou a fazer parte da cidade, mantendo-se, todavia, com as características de uma aldeia chinesa, sem se deixar contaminar pela influência da cidade cristã, paredes meias. Nem mesmo com o derrube da citada muralha, quando se transformou em bairro, modificou o seu peculiar cariz. O traçado primitivo de aldeia de cor cinzenta foi alterado com o terrível tufão de 1874, que praticamente arrasou o bairro, com muitas vítimas a lamentar. Substituíram-no ruas e vielas, em linha recta, mas persistiram os casebres e casas pequenas de dois pisos e mais raramente de três pisos. E, com esta feição, durou mais algumas décadas.
Ocupava-o gente ciosa do seu pequeno mundo, muito endógena, casando-se entre si, desconfiada e mesmo hostil a toda a cara estranha que por ali se demorasse, fosse ela europeia, fosse ela chinesa doutros bairros e com hábitos mais citadinos. Tinha o seu mercado e o seu templo, as suas lojecas e casas de pasto, os seus curandeiros e ervanários, as suas casamenteiras e homens-bons que resolviam conflitos de dinheiro, rixas de família, disputas de negócios e outras quesílias. Esses homens-bons gozavam do prestígio da idade e das cãs ou de uma situação económica mais desafogada.
Desde o início, já como povoação, o Cheok Chai Un ficara marcado de má fama. Era um sítio imundo, endeme de muitas doenças, um antro de malandrins e de todo o rebotalho humano. Nem mesmo quando se transformou em bairro, esses rótulos se dissiparam. Sobre­tudo, quanto aos jovens, considerados desordeiros e refilões, sangue nas guelras e mão pronta para todas as tropelias. Havia grande dose de exagero nessa classificação, mas do ferrete ignominioso não se livravam. Tanto assim é que, quando qualquer mancebo se portasse mal, andasse em pancadarias e em outras tranquibérnias, desrespeitoso com as regras da sociedade, apodavam-no, na gíria macaense, de a-tâi de Cheok Chai Un, significando a-tâi um valdevinos. Era um insulto degradante!
A população de Cheok Chai Un orçava à roda de alguns milhares, quase todos gente pobre, amontoados em espaço diminuto que era o seu mundo. Havia, é certo, uma quadrilha de patifes, mas a maioria era ordeira e pacífica, ganhando a dura tigela de arroz de cada dia. Eles, operários, marceneiros, carpinteiros, moços de recado, condutores de jirinquixá, vendedores ambulantes, carregadores de zorras etc. Elas, serventes, tecedeiras, varredoras de rua, penteadeiras, lavadeiras, aguadeiras etc. Eram, por junto, pessoas que se dedicavam a profissões humildes e raro atingiam a condição de patrões.
Em muita casa e casebre, rapariguinhas e velhinhas aplicavam-se na manufactura de incensos e caixas de fósforos. Havia ainda bordadeiras e cerzideiras que ficavam à porta do lar, aproveitando a luz do sol para melhor cumprirem o trabalho, ao mesmo tempo que coscuvilhavam os assuntos do bairro. A iluminação eléctrica só muito tarde ali entrou e eu me lembro ainda de ver os casebres alumiados pela chama bruxuleante das lamparinas de petróleo.
As condições higiénicas eram péssimas, muito referidas pelos relatórios dos Serviços de Saúde, os esgotos primitivos e não havia sanitários, no sentido moderno da palavra. Tão fechado se apresentava o bairro que a passagem do tempo, como se não existissem relógios, era marcada, durante a noite, por certos homens que, de espaço a espaço, tangiam pratos metálicos e bradavam as horas, percorrendo as ruas silenciosas.
Era assim o Cheok Chai Un e assim se conservou, mais ou menos, até os fins dos anos 1950. Quando se principiou o desmantelamento indiscriminado da cidade antiga, também o Cheok Chai Un não escapou. A construção de edifícios de vários andares e de cimento armado destituiu-o das suas características próprias, como, aliás, aconteceu com outros bairros de Macau, confundindo-se com o resto, numa uniformização dolorosa, monótona e inestética.
O meu contato com o Cheok Chai Un iniciou-se nos tempos do liceu. Morava na Estrada de S. Francisco, então, toda arborizada e calçada à portuguesa, e tinha dois caminhos a seguir para a escola. Ou optava por ladear a Boca do Inferno e atravessar a Estrada dos Parses, descendo depois a Calçada do Paiol, ou dobrava para a Rua Nova à Guia. Chegava ao alto da Rua Tomaz da Rosa, trotava de escantilhão abaixo a escadaria e estava no coração do Cheok Chai Un. Aproximava-me do poço e do velho templo de Tou Tei e desembocava na Rua do Campo. Daí, orçando para a direita, pisava em cinco minutos a porta do liceu, ao Tap-Seac. Eu seguia, de preferência, o segundo caminho.
Naquele tempo, não havia ainda no bairro a canalização de água da Companhia, e toda a gente se servia do poço, onde o precioso líquido, sempre potável e cristalino, dava para quem quer que fosse. Por conse­quência, em volta do poço, hoje desaparecido, como, aliás, todos os outros poços públicos, reunia-se de manhã ao anoitecer, sobretudo, o mulherio que ia bater a água, isto é, tirar a água para os baldes, num constante corropio. O local era também o ponto de convívio da vida social, ali se conversava, se mexericava, se elevavam e se destruíam reputações, se conheciam as novidades e a má língua.
Quando eu passava, pouco antes das nove da manhã, havia sempre um ajuntamento de aguadeiras gárrulas e alegres que enchiam os baldes de água e transportavam-nos, para diversos destinos, com o "tám-kón, um varapau de madeira forte, sobre os ombros, um balde seguro por cordas, em cada extremidade. Ganhavam, vendendo a água dos baldes, para as casas onde não havia água da fonte, isto é, água potável, indo o transporte para além de Cheok Chai Un, para a Rua do Campo, a Rua Nova à Guia, a Calçada do Gaio, a Rua do Brandão e cercanias. Havia aguadeiras de todas as idades, mas os meus olhos de rapaz, já espigadote, concentravam-se nas mais moças, usando o tun-sam-fu", a cabaia curta e calças, traje que, apesar de justo ao corpo, não lhes tolhia os movimentos. Morenas de sol, sem maquilhagem ou pó de arroz – coisas impensáveis para o ofício – andavam geralmente descalças, tanto no verão como no inverno. Tinham o peito andrógino, pois enfaixavam-no, apertando, por pudicícia e bom tom, a curva dos seios. O único luxo ou requinte de vaidade estava nos cabelos compridos, arrumados numa única trança que escorria até o fim das costas, o penteado uniforme de todas as raparigas chinesas do povo, de classe proletária. Era uma sedução contemplar essas tranças negras e luzidias, de madeixas enroladas em corda grossa, atadas quase no termo por um cordel vermelho.
Aparentemente simples, o penteado exigia muito cuidado e muito tormento, mas elas entregavam-se docemente àquele masoquismo. Os fios de cabelo eram repuxados e esticados para trás, a ponto de arder o couro cabeludo. Passava-se e repassava-se o pente duro, embebido de óleo de madeira, as mãos da penteadeira também untadas do mesmo óleo, para dar à cabeleira o lustro e a resistência necessários. Os pequenos fios que ficavam no alto da testa e que não obedeciam, espetando-se como finos arbustos agrestes, eram eliminados à linha, um processo de desbaste doloroso que não arrancava, porém, um gemido ou protesto da estoica rapariga que se submetia àquele trato de polé.
Também nas proximidades do poço havia lavadeiras que esfregavam peças de roupa, nos tabuleiros próprios de madeira, hoje desaparecidos, com as máquinas eléctricas de lavar a substituí-los inexoravelmente. Não havia diferença no penteado e na vestimenta, andavam descalças ou, em ocasiões especiais, de chiripo ou tamanco. Lavadeiras e aguadeiras formavam praticamente uma sociedade à parte. Imperavam, mais que os homens, em volta do poço, dispersavam-se para os seus diversos destinos, para voltarem a se reunir mais tarde, vivendo do ofício e no bairro, não saindo dele, mesmo em horas de lazer.
Nem mesmo nos festejos do Ano-Novo Chinês, sentiam a mágica atração de se espraiarem para fora do bairro. Panchões, guloseimas, incensos da devoção, tudo se vendia nas lojecas e no mercado da zona. Até à Guerra do Pacífico, as mesas de clu-clu" ** encham as ruas e vielas e assim se jogava no Grande e Pequeno e noutras combinações, sem precisar de vaguear por outras vias, para além do perímetro de Cheok Chai Un.
Tão bairristas eram que batiam cabeça, a solicitar os bons auspícios e prosperidades, no seu próprio templo, o Tou Tei Mio, em vez de se dirigirem ao Templo da Deusa A-Má, na Barra, ou ao Kun Yam Tóng, em Mong-Há, tradicionais para esta cerimônia, para a população chinesa budista da Cidade do Nome de Deus.
Nas festividades próprias de Tou Tei, no dia 2º do 2º mês lunar, recaindo quase sempre nos primeiros dias de março do calendário gregoriano, por subscrição popular ou por réditos auferidos pelo templo, construía-se um barracão de bambu, onde se representavam peças de autochina,*** por profissionais e amadores, com grande número de assistência. Esse costume ainda se conserva hoje.
As mulheres, casadas ou solteiras, eram, na maioria, analfabetas, porque cedo se consumiam no trabalho. Os homens pouco mais tinham de instrução, também obrigados a mourejar, logo que espigassem. Era uma vida árdua, sóbria, destituída de exigências lúdicas e de conforto, mas as pessoas que a sofriam pareciam contentes ou simplesmente resignadas ou nem sequer pensavam noutra sorte.
Nesse contexto e nos princípios dos anos 1930, apareceu subitamente e por acaso, o Adozindo, o Belo Adozindo, para as raparigas românticas do tempo, que produziu, no seio do Cheok Chai Un, uma pequena revolução. (...)

*Jardim dos Pássaros, como literalmente seria traduzido, corresponde à Horta da Mitra, nome que os portugueses lhe deram, embora menos conhecido.
**Mesas de jogo do Grande-Pequeno.
***Ópera chinesa.
in A Trança Feiticeira de Henrique de Senna Fernandes
Romance cuja acção desenrola-se em Macau entre um rapaz rico de origem portuguesa e uma rapariga pobre chinesa. A tradição e o preconceito alimentam a trama desta história de uma paixão de dois jovens amantes condenada pela intolerância da sociedade.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Companhia Sueca das Índias Orientais

No século 18 várias nações europeias aproveitaram a abertura comercial da China (apenas Cantão) ao mundo, com destaque para os britânicos, mas também holandeses, espanhóis, norte-americanos e franceses. Portugal já o fazia desde o século 16 a partir de Macau.
Em menor escala, países como a França ou a Suécia também participaram neste comércio.
Carta náutica de Cantão e arredores (incluindo Macau)
A Companhia Sueca das Índias Orientais (CSIO) foi formada em 1731. A Carta Real concedeu à empresa os direitos comerciais nacionais exclusivos com a Ásia. As viagens de ida e volta começavam na sede da empresa em Gotemburgo  e demoravam cerca de ano e meio (partiam da Suécia em Janeiro e chegava à China em Setembro), incluindo a estadia de alguns meses em Macau, de onde iniciavam a viagem de regresso no final de Dezembro. 
As principais mercadorias compradas na China eram chá, seda, porcelana e especiarias. Ao todo a CSIO realizou 127 viagens até a empresa ser dissolvida em 1813, numa altura em que já apresentava poucos lucros e a Suécia sofre as invasões napoleónicas
Em 1746 teve início uma expedição sueca à China que duraria 3 anos. A bordo do Gotha Leyon seguia o cartógrafo Carl Johan Gethe que não só produziu mapas como o que é mostrado aqui como também escreveu um diário intitulado:
"Dagbok hallen pa resan till Ost Indien begynt den 18 octobr: 1746 och slutad den 20 juni 1749" 
"Diário de uma viagem à Índia oriental iniciada a 18 de Outubro de 1746 e terminada a 20 de Junho de 1749".

Nos quase 100 anos em que a Companhia Sueca das Índias Orientais esteve activa oito embarcações da empresa - de um total de 38 - sofreram naufrágios. 
Um deles foi o navio 'Götheborg' numa viagem de regresso à Suécia em 1745 com o desastre a acontecer com o porto de chegada à vista.  
Na década de 1990 arqueólogos marinhos conseguiram salvar parte do navio original, e após um projecto de reconstrução durante dez anos, foi feita uma réplica do navio que viria a empreender uma nova viagem à China em 2006 e 2007 (imagem ao lado). 
Para além do cartógrafo a bordo estava também Carl Gustav Ekberg, o cirurgião e naturalista amador, autor de desenhos a cores de rara beleza (sobretudo animais marinhos e embarcações chinesas) e que também escreveu um diário onde incluiu os seus esboços.
Os dois diários fazem actualmente parte da Biblioteca Nacional da Suécia. 
A imagem abaixo é de um desses registos, manuscrito, onde é apresentada a transcrição fonética dos números de 1 a 10 em chinês.

Diário manuscrito em sueco de uma viagem a Cantão entre 1746 e 1749

Curiosidade: O sueco Anders Ljungstedt foi numa destas viagens chegando a Cantão em 1798. É da sua autoria o primeiro livro sobre a história de Macau (publicado em 1832), território onde viveu entre 1813 e 1835, quando morreu.

domingo, 24 de janeiro de 2021

Manuel da Silva Mendes: 120 anos sobre a chegada a Macau

Este ano assinalam-se 120 anos sobre a chegada de Manuel da Silva Mendes (MSM) a Macau  (1901) e 90 anos sobre a sua morte (1931).
MSM parte para Macau em Abril de 1901 acompanhado pela mulher, dias depois de casarem. A viagem começou no comboio (Lisboa-Elvas-Badajoz-Córdova-Algeciras) que os levou até Gibraltar. Aí embarcaram no “Arcadia” da empresa de navegação britânica P&O - Peninsular & Oriental Steam Navigation Co. Passam por Port Said, Suez, Aden, Colombo e Singapura chegando a Hong Kong no final de Maio. O percurso final da viagem até Macau durava cerca de quatro horas em embarcações a vapor como o ‘Sui An’ ou o Sui Tai’ da Hong Kong, Canton & Macao Steamboat Co., de fundo chato – por causa do constante assoreamento do delta do rio das Pérolas – que atracavam no Porto Interior. 
Vejamos como foi essa viagem pelas palavras do próprio MSM:
Estava eu, no princípio do ano de 1901, no meu escritório de Vila Nova de Famalicão a fazer um requerimento, quando recebi inesperadamente este telegrama: ‘Vagou lugar professor Liceu Macau responda convém telegraficamente (ass.) Santos Viegas.’ Li, reli e fui logo procurar um amigo meu, médico, que tinha consultório defronte. - Leia isto. - Parabéns! - É que (atalhei) eu não pedi lugar nenhum e não sei se quero ou não. - Como assim? - É o que lhe digo. Certo é que há meses, monsenhor, tendo eu ido visitá-lo a São Tiago d’Antas, disse-me: o meu amigo aqui não está bem; o seu republicanismo só o prejudica, isto aqui, regenerador ou progressista; a república há-de vir para Portugal daqui a um século, se vier... Porque não vai o meu amigo para o ultramar?! Podia arranjar lá colocação e dedicava-se a estudos, que para isso é que o meu amigo tem mais feitio. - E o que lhe respondeu? - Eu respondi-lhe que para terra de degredados não iria - a não ser, sim para lugar de bom clima, e ganhando bem; que aqui auferia o suficiente para viver e não me convinha ir estrumar terra de pretos. Mas diga-me o meu amigo: Macau, Macau é lá para a China, no inferno, pois não é?... - Olhe que eu também só sei isso... Mas vamos ver o compêndio de geografia por onde estudei, há trinta anos, sim, mas Macau deve estar ainda no mesmo sítio... Cá está: «Macau, colónia portuguesa situada no extremo sudoeste do distrito de Heungshan, latitude tal e tal, na confluência de um dos ramos do Rio das Pérolas… bom porto, porto que assaz assoriado pelas correntes, e tal…
- Adiante; não me assoriam a mim, nem eu vou para lá para ser piloto… - E tal e tal, tendo por autoridade superior um governador com os seguintes poderes; primeiro: - Deixe lá os poderes; veja o clima, veja se há lá dinheiro… - E tal e tal, com várzeas e hortas férteis… - Mau, deixe isso: eu não vou para lá cavar nem ser jardineiro; veja o clima, o dinheiro… - Sujeita, uma vez por outra, a tufões e pestes… - Mau, lá isso mau!... - Bom clima. Próspero comércio, e tal e tal, população pacífica, embora muito dada a demandas…
- Alto, estou no meu elemento! Mas os tufões e as pestes… hesito… - Parece-me que não há motivos para hesitar (atalhou o meu amigo); leva daqui quinino e pronto. - Muito bem (acrescentei); telegrafo para Lisboa que talvez aceite. E redigi logo o seguinte telegrama: «Monsenhor Santos Viegas - Câmara deputados nação portuguesa - Agradecido preço reserva falaremos (ass.) Silva Mendes.
Monsenhor Santos Viegas era um político graúdo; presidente, então da câmara dos deputados (o primeiro lugar abaixo do rei em soberania, segundo a sua opinião), a abade de São Tiago de Antas, a freguesia mais rendosa do arcebispado-primaz de Braga: para cima de três contos, contos desse tempo, fortes. 
Em Vila Nova de Famalicão era ele quem ganhava sempre as eleições; tinha por este círculo um deputado certo. Estava quase todo o ano em Lisboa, onde tinha casa, ou, se não, em uma quinta da Beira - que ele era Beirão. Em São Tiago de Antas aparecia no Verão por um mês ou dois a tomar o fresco; em Setembro, banhava o corpo nas amaras águas da Foz; pelo natal e pela páscoa, vinha, por uns dias, a Famalicão receber os cumprimentos dos vilanovenses. 
Era meu amigo. Doía-lhe, porém, notei várias vezes, que eu andasse metido na republicanice (se bem que só mui velada e polidamente me dissesse coisa que significasse querer atrair-me ao seu partido). Fulano bem podia ser um deputado regenerador (dizia ele às vezes aos amigos; mas a mim, não...)
Eu, era, de facto, republicaneiro, nesse tempo. Dizia mal da odiosa monarquia e dos monárquicos no Porvir de Sousa Fernandes - Sousa Fernandes vindo da Rua da Quitanda para Famalicão, donde era natural, com alguns fumos de rico e muitos de liberal-republicano. No Rio tinha feito muitos discursos vermelhos: sabia de cor Danton e Robespierre e fundou na vila O Porvir, que era como quem dissesse a República à porta... Eu estava com ele e com o doutor Henrique Machado, proprietário, advogado a sério e republicano amador. 
Metíamo-nos nas eleições; propunhamos também o nosso deputado: Bernardino Machado, Manuel de Arriaga ou qualquer outro vulto grande. Votos atingimos o máximo de vinte: uns quinze do doutor Machado e os outros comprados por Sousa Fernandes. Eu, o meu papel, era queimar foguetes no Porvir. Bem sabíamos que a urna se ria de nós, e o doutor Machado, advogava, sem calor é certo, a abstenção (preferindo, secretamente, dar os seus votos aos progressistas); mas Sousa Fernandes impunha a luta, citando Robespierre. 
Dos três chefes, passo eu, no público, por ser o mais vermelho. Os meus inimigos políticos iam mais longe. Para me prejudicarem casamento com menina de boa (rica) família, apontavam-me como anarquista... perigoso... e ateu! Eu ia, no entanto e apesar disso, fazendo os meus requerimentos e ameaçava-os no Porvir com a República à porta… 
O que aos políticos, e a muito público também, perturbava, era monsenhor Santos Viegas ser meu amigo. Os mais atilados explicavam que, por certo (não podia ser outra coisa), era medo de alguma bomba. E monsenhor Santos Viegas, conhecedor um dia da explicação, apoiando-a, comentou: não é bom estar de mal com o diabo. 
Passadas três semanas, veio Monsenhor a Famalicão; e, como me cumpria, fui logo apresentar-lhe os meus respeitos. - Então, convém-lhe o lugar ou não?... Eu, monsenhor, se o clima for bom e se… - Magnífico (respondeu); conhece a Primavera aqui em Portugal, pois não conhece? Pois em Macau é a mesma Primavera, mas todo o ano. E o lugar é melhor do que ser abade de São Tiago das Antas. Estou perfeitamente informado disso por um amigo meu que, durante muitos anos foi lá governador.
- Se é melhor do que ser abade de São Tiago d’Antas, quero; mas parece que, por lá, há uma peste ou outra, às vezes… (respondi). - Deixe-se disso; o senhor leva de cá quinino. Prepare-se para partir. Olhe, do lugar já viverá muito bem, com tempo de sobra para os seus estudos; mas o principal não está aí: está nos partidos, na advocacia. Em chegando a Hong Kong, esperam-no, já lá, os chineses ricos dos monopólios a oferecer-lhe partidos… para não fazer nada. Enfim e em resumo, a advocacia dá lá rios de dinheiro. Estou perfeitamente informado disso pelo tal meu amigo.
Voltei para casa contentíssimo e resolvi casar-me. O despacho saiu daí a dois meses e marchei para Lisboa, amarrado pelos laços do santo sacramento do matrimónio. Entregaram-me no ministério a papelada, os bilhetes de passagem e ajuda de custo. E disse-me um senhor Marques Pereira, chefe de repartição: há de querer também o adiantamento de três meses do ordenado?
Eu não sabia bem o que isso era; mas como era para receber dinheiro, respondi, sem hesitar, que sim. E entregou-me logo este amigo uma dinheirama que me fez um arranjo especialíssimo… E comecei a perceber que a coisa era ainda melhor do que monsenhor dizia.
Mandei, portanto, fazer logo, no melhor alfaiate, uma sobrecasaca e respectiva calça às risquinhas, fazenda inglesa, e comprei um forte casacão de peles e uma cartola igual à de monsenhor Santos Viegas. Queria minha mulher que eu comprasse também um relógio e uma corrente de oiro; mas opus-me com receio de ser ludibriado. Eu, de oiro, sabia, pouco.
Voltei, daí a alguns dias, ao ministério, a fim de me despedir daquele generoso amigo, de cartola. Vai muito bem, (disse-me ele), eu nasci em Macau; vim para Portugal aos sete anos; conheço aquilo lá perfeitamente. O meu amigo desembarca, dirige-se ao hotel Hing Kee, um hotel, o melhor da cidade, e fica nele o tempo que lhe apetecer; o seu ordenado dá para isso e sobra-lhe ainda dinheiro. Macau é uma barateza! Conheço aquilo como os meus dedos. E, então se quiser advogar (que há-de querer), enche-se de dinheiro em pouco tempo. Demais a mais com o seu talento!... Muito boa viagem e seja muito feliz.
Saí e fui, visto o caso, comprar o relógio e a corrente de oiro. Para que queria eu o dinheiro?! Ludibriado, ou não ludibriado, não me faria diferença nenhuma.
Na véspera da partida fui, cumprindo o meu dever, despedir-me de monsenhor. Morava ela à Graça em um bom prédio mobilado em severo estilo dom João Quinto de tremidos. Tinha sobre a secretária, de pau do Brasil, montões de relatórios, propostas de leis, ofícios, diários do Governo e discursos. Com o seu habitual aprumo e lhaneza disse-me que eu mal podia imaginar a saudade que lhe deixava; que estava velho e muito fatigado de tantos serviços que tinha presado, sempre desinteressadamente, à monarquia e à nação.
Caiu a conversa, daí a pouco, em Macau. Era uma terra excelente; eu ia muito bem, não me havia de faltar nada. «E então com o seu talento»… - Mas (atalhei eu ao talento) ouvi dizer, ou já li, que os chineses não são lá muito boas pessoas com os estrangeiros… “Não creia nisso (acudiu ele a tranquilizar-me); eu conheço a questão perfeitamente; têm tido lá, é certo, os boxers, coisas com missionários, quando estes se não comportam bem. Também sou padre, mas liberal e gosto de dizer a verdade; liberal em religião e liberal em política.”
- Assim (ousei ainda insistir), não há que recear?... “Absolutamente nada; vá descansado, eu conheço isso perfeitamente; e então, por nós os portugueses, têm os boxers, os chineses, uma consideração que o meu amigo não imagina: não passam por um português que não se curvem todos, chimchim chimchim. Bem, meu caríssimo amigo, adeus, muitas saudades e muitas felicidades!”
Esparzia a aurora suas madeixas doiradas pelo rúbido horizonte, quando, no dia seguinte, recostados, eu e minha mulher, nas poltronas do rápido Lisboa-Algeciras (verdade literária), vôo desferimos para Macau. Assobiam os melros nos olivais; nos silvedos, pipilavam toutinegras; elevadas nas alturas, cotovias soltavam suas hossanas; e, à margem das fontes, ocultos nas franças dos amieiros, melodiavam, às ninfas, rouxinóis os seus amores. Uma harmonia à Natureza!
Nos fofos cadeirões da carruagem, oram em um, ora em outro, repimpado, para mostrar o muito em que eu, no conceito público, devia ser tido, ia o meu pensamento, campos e montes fora, não só na minha felicidade posto, como também embebido nos arrulhos harmoniosos dessa manhã luminosa de primavera.
E, nesta idealização de todos os sentidos, eu elevava-me às regiões feéricas de Ossiam, de Hoffman e dos contos orientais e, ali, em vôo planado, antegozava as crésicas riquezas que em esperavam em Macau, num clima delicioso.
Ia atravessar as terras viciosas que outrora devassaram os Gamas, os Albuquerques, os Almeidas e os Pachecos por mares nunca dantes navegados; de longe, talvez pudesse ver aquele monstro grande e horrendo que ao Gama mostrou os dentes amarelos; mais além, me apresentariam seus respeitos as gentes da Taprobana, de Malaca, de Samatra e do Mecon; e quem sabe se aqui não iria achar algumas folhas inéditas dos Lusíadas ou do épico, algum soneto «dos procelosos baixos escapado», porque não?
Elvas! Chegados somos à altaneira Elvas, os dentes a Badajoz arreganhado… E, na minha ardente inspiração, a história a ferver-me na memória, levantando-me eu, para minha mulher, disse: 
Vês tu aqueles altos baluartes, os portugueses,
Ousados, destemidos, feros Martes,
A ponta-pés correram muitas vezes
Para terras de Espanha e outras partes
Espanhóis, muçulmanos e franceses.
E não tentaram mais, pois que sabiam
Que à pátria sem orelhas voltariam.
Ao que minha mulher que, nesse tempo sofria também de inspiração, prontamente respondeu:
Quem te manda a ti ser tolo,
Meu poeta de ginjeira!
Dá-me um naco desse bôlo
Que meteste na algibeira…
Água fresca! Quem quer água!... O Século, o Diário de Notícias, o Pimpão!... Uma esmolinha, minhas ricas almas, a esta ceguinha que não vê nada! Cinco reisinhos pelas alminhas de quem lá têm!... O Século, muito escamado; o Pimpão!... Merque-me, meu senhor, um arrátel destas cerejas tão vermelhinhas!... Cachopa, entre depressa que está o comboio a partir…
Por terras entrei, então, ufanamente, de Badajoz e, a toda a velocidade, léguas fui galgando através de campinas verdejantes. Também aí, nas melenas dos choupos e salgueiros, cantavam rouxinóis; mas cantavam desafinados, que em terras de Torquemada, não podiam cantar bem.
Ao anoitecer, chegando a Córdova, muitos «frailes» pelas ruas. «Cantais agora» - lhes disse baixo, em português (para não lhes perturbar a digestão) - cantais o «de profundis» da pancadaria que, por muitos séculos, fugindo de vós da terra que era vossa, dos moiros apanhastes? Olhai para mim: eu sou do ameno e suspiroso Minho, onde nem eu nem os meus jamais a moiros consentiram que lá pusessem pé, nem a vós que lá entrásseis ou entreis a não ser para fazer fretes… 
E, do lado, no sofá, recostada, minha mulher a mim se dirigindo:
Deixa esses ladavrazes,
Meu raminho de alecrim!
Olha lá: porque não fazes
Teus versos antes a mim!?...
Tinha razão (e poesia) minha mulher; porque, de facto, essa noite era uma das noites em que o amor se sente pendurado dos raios argentinos da lua cheia e o espírito, desatado do vil poste chamado corpo, se libra nas paragens luminosas das quimeras.
Tomei-lhe, então, com jeito, a mão erbúnea, e, a fantasia arroubada de delícias, das almofadas da carruagem, como se fossem um caramanchão abobadado de frondosas faias e loureiros, a vista pus alongadamente por de sobre as quebradas dos montes onde íamos rapidamente perpassando, e onde seu clarão, a lua, a medo difundia, em mágicas, poéticas, trémulas, subitâneas luzinhas, que eu tomei por fadas, e que afinal não eram senão as candeias dos lavradores que andavam dos casebres para os redis a distribuir, às azémolas, palha…
Algeciras A! «Quien se vá para Gibraltar necessita cambiar mas adelante!» “Vês (disse eu a minha mulher); este aviso é por nossa causa” consideração! E, com mais velocidade, marchámos para Algeciras B. Querem chegar, ainda de noite, ao termo (acrescentei), para que não possamos ver Gibraltar, que perderam na Guerra da Sucessão, palermamente, e lhes tem dado e há de dar muitas insónias.
Como um monstro, que após pantagruélicas refeição prostrado estivesse fazendo aquilo, esperava-me, na baía de Gibraltar, o «Arcadia» da P. and O. Para em seu bojo me receber. Dirigi-me para ali com armas e bagagens em um barco tripulado por espanhóis. A meio, porém, da baía, «los hombres» levantam-se e irrespeitosamente dizem-me: «tiene usted que pagar cincoenta pesetas…» “ Las pagaré si, en el buque.” “Nó (redarquiram); usted las paga ahora, si nó…»”
Que «ladrones, que ladrones» (disse eu, para dentro, enquanto saíam para fora as pesetas…) O «buque» estava dando mostras de inquietação; eram mais que horas de partir. Subi, e logo do portaló: «Ladrones, ladrones ladrones!» (atirei-lhes à cara enfaticamente).
Partimos. Bonançoso o mar. Misters, misses e mississes, todos, all right, «flartavam». Eu, era a primeira vez que, sobre amaras águas me encontrava; a primeira vez, minto: já uma vez tinha feito uma viagem de hora e meia, da Foz a Leixões, pra ver o Senhor de Matosinhos, atirando, por sinal, todo o almoço ao mar… a fim de chegar mais leve; e outra vez, na Póvoa de Varzim, tendo na véspera perdido seis libras à roleta (quantas tinha), fora ao mar ousadamente pescar fanecas.
Mas ia isso há tanto tempo, que nem me lembrava já, e, portanto, para psicológicos efeitos, era essa a primeira vez. Saudou-nos o capitão, a mim e a minha mulher - bem, muito obrigado, all right. - E os meninos (chidren)? - No have; by and by talvez, perhaps… E seguimos, a todo o vapor, singrando o verde-azul campo por onde, antes do nosso grande Dom Henrique ser gente, os argelinos pirateavam sem que ninguém lhes pudesse ir à mão.
Veio a noite, uma noite morna de luar. Eu e minha mulher, em fofo divã recostados, contemplávamos a lua e as asas brancas que seguiam para a pesca do atum. Tudo era poesia. E minha mulher, tendo uma nuvem escurecido a lua, cantarolou na sua língua, qual outra Margarida:
Meine Ruh’ ist hin
Mein Herz ist schwer;
Ich finde sie nin mer
Und nin mermehr.
Marselha! Não gostei das marselhesas; pareceram-me muito pintadas, «fanées», muito amaneiradas; e minha mulher foi da minha opinião, como bem se compreende. Poucas horas o «Arcadia» ali se demorou. Meteu malas, meteu carga e mais alguns ingleses que vieram via Calais, e partiu.
Port-Said! Gostei de ver aquilo: aquelas moiras, árabes e egípcias, ou o que eram, embiocadas, com um canudo amarrado ao nariz. Para que servia o canudo, não o soube. Supus que fosse símbolo das casadas, pois que outras vi sem ele. Burros, camelos ao longo do canal davam uma nota característica à região. Temperatura, a de um forno: até os burros suavam. O país das pragas verdadeiramente.
Suez! Tocas de árabes e mais nada. É preciso ter muito maus gosto para se nascer ali. Compreendi, então, porque foi que há dezassete séculos desses lados se abalaram, abrindo caminho a espada em punho, para a Espanha e outras partes, as muçulmanas gentes. É lei da natureza: onde há milho, há pardais.
Seguimos. Suavam às estopinhas os gordos «bifes»; elas, as misses e mississes paus, de virar tripas, não tinham donde exsudassem uma gota; tudo gâmbias, verdadeiras espadelas! Ah, maiatas da minha terra…
Andaram, nos meus tempos de rapaz, por aqui, ou seria lá mais para baixo, os italianos, durante a era política de expansão colonial de um senhor Crispi, arás dos abissínios a querer mandar neles. Mas foi tal a sova que apanharam, que ainda hoje sem lembram dela e milhares deles, diz-se, voltaram a Roma «truncados».
Também os nossos velhos portugueses andaram por aqui a meter bico. Queriam visitar o falado Preste João, mostrar-lhe a cruz, fazê-lo bom cristão; mas suspeito que, mais que a cruz, os impeliram a estas terras, magnas riquezas de que se dizia que estavam atulhadas… histórias da carochinha.
Rei me fizessem destes calvos montes, destes penedos, oferecessem-me os abissínios para eu reinar aqui, um harém, dizia-lhes imediatamente que não. Valia lá a pena trocar por isso as patacas e o delicioso clima de Macau!? Demais disso, eu já sabia que também aqui havia pipachais…
Surgiu ao longe, nas Arábias, o Monte Sinai. E disse eu para minha mulher: “por aqui, mais metro menos metro, atravessaram os israelitas este mar, Moisés à frente, em marcha para a Terra Prometida… Sei isso muito bem. Sabes? Mas o resto é que tu não sabes.”
- Sei muito bem: foi acolá que Jeová, o Padre-Eterno, entregou a Moisés as tábuas da lei, os dez Mandamentos. E depois? Depois, mais nada.”
- Mais nada, não; há o resto. Um anjo chamou Moisés que fosse lá acima e Moisés foi. E que tem isso? Moisés foi, e, apresentando a Jeová os devidos cumprimentos, este disse-lhe (em português antigo):
Passo bem, muito obrigado!
Acabei, não há momentos,
De escrever, muito cansado, 
As tábuas dos Mandamentos.

Vai ler isso à tua gente
De vagar e em alto som.
Está nisto a salvação,
Se cumprido fielmente…

E Moisés, obedecendo,
Foi as íngremas encostas
Devagarinho descendo
Co’os Mandamentos às costas.

A essa hora, acocorado.
‘Stava o povo a tomar chá
Junto de um amontoado
De toaradas de maná.

Até ao quinto correu
A leitura muito bem.
Ao ler o sexto, porém,
Levantou-se um escarcéu.

Que não e que não – gritou
Todo o sexto feminino!
Que era «o sexto» (acentuou)
Um disparate supino.

Que riscasse, que riscasse,
Que queriam liberdade!
Que era «o sexto» a novidade
Contra os hábitos da classe.

E Moisés, atrapalhado, 
Foi o caso relatar
A Jeováh; o qual, irado,
Entrou logo a esbravejar.

«Eu riscar!? Não risco nada!
Eu sou o juiz supremo!
Ou cumprem a ordem dada,
Ou vão todas pró inferno»!

Então, Moisés, confundido,
Avançando um pouco a medo,
A Jeováh disse ao ouvido
Não sei que, muito em segredo.

«Sim…de facto, assim não valem…
Não me ocorreu tal escolho…
Olha: diz’-lhes que se calem,
Que depois eu fecho um olho…

Entranhei a cor do Mar Vermelho. Eu sabia que vermelho propriamente não era; mas que alguma coisa de parecido tivesse, sempre tinha imaginado. E não: era a terra marginante toda fusca; ele, o mar, da cor de qualquer mar, apenas mais calorento do que os outros são.
Quantos dias levámos a passa-lo, não me lembro. Só sei que, uma tarde, o «Arcadia» parou em Aden, no fecho dele. Aqui, o mesmo calor tórrido, sufocante; eu, adentro da espessa sobrecasaca de lã que o melhor alfaiate de Lisboa me talhara, pingava de todos os poros, e tive vontade de atirá-la, e mais o bonito casacão de peles, ao mar.
Eu tinha comprado em Port-Said um fato de ká-ki (em moderna grafia: caqui!). Não provei. Teimou comigo o alfaiate que não provasse, que era operação completamente desnecessária, visto que de evidência se mostrava que me ficava muito bem, e que, além disso, podia constipar-me. Vesti-o no navio: um perfeito homem das máquinas!...
Partiu o navio. Uns oito ou nove dias navegou até chegar a Colombo, Ceilão. Ceilão, era, segundo as minhas reminiscências, a terra chamada antigamente, Taprobana para além da qual nós, os portugueses, ia para cinco séculos, tínhamos passado por mares nunca dantes, navegados. Devia ser; mas, pelo sim, pelo não, dirigi-me ao capitão, que devia saber melhor, nestes corteses termos: Please, sir: is or no tis this land the celebrated land called Taprobana? - What, please? - Yes, if this land i sor no tis the ancient, celebrated and famous Taprobana conquered by the valiant Portugueses… 
- No savy… Ora, no savy! Sabia muito bem. Ele é que não queria dar o braço a torcer por não poder ver nos outros uma camisa lavada. Nesses tempos, estavam os ingleses ainda a dormir e nem «beer» sabiam ainda beber…
Na ilha e na cidade havia peste negra ou amarela; a cor não fixei, e venha o demo que diferencie. Foram avisados os passageiros de que teriam, os que desembarcassem, de sujeitar-se, no regresso, a uma forte chamuscadela. Não quis, por isso, desembarcar e fiquei-me a ver do convés as nativas gentes, das quais um clássico nosso diz, não me lembro qual, que são bem apessoadas e de boas feições.
Que homem de mau gosto o tal clássico! Eu, o que vi, foram só magras, para não dizer esqueléticas figuras, umas fuscas, outras da cor de tamarindo, e de feições, que eu imaginava, só o demo tinha… Corvos grasnavam por de sobre as enxárcias do navio, como que a pedir-nos por amor de Deus que intercedêssemos perante a Providência, a fim de que fossem libertados desta terra de degredo. Mas isto não afianço, porque talvez não os houvesse entendido bem: fome e mais nada também podiam ser os grasnidos desses bichos.
Navegámos no dia seguinte rumo a malásicas terras. Mentalmente desisti (depois de ter visto as «boas» feições dos taprobánicos habitantes) de aceitar os respeitos da gente de Malaca, Samatra e Mecon. Seria, como esses, o jau do épico? Custava-me a acreditar. Ele, o grande esteta, gostar de caras tais?! Como ainda hoje não acredito que a «alma minha gentil que te partiste» fosse, como alguns modernos críticos afirmam, uma pacóvia china, ou coisa equivalente, de olhos ao viés…
Aportámos daí a uns cinco dias a Singapura. É Malaca? - perguntei; - is not Malaca a big, big land, much comercial, much historic, tha the old valiant Portuguese fough and conquered, being captain the big Afonso of Albuquerque? - What, please? - why the ship do not toque at Malaca? - No savy!
No savy, porque não quer saber... Malaca, acredita (disse eu para minha mulher), é terra importantíssima, e, se mais não é, é porque os ingleses não sabem administrar. Importantíssima, digo-te eu: ou mentem as crónicas, o que ninguém deve acreditar. Ainda hoje, os malaquenses, quando os nossos bispos por lá aparecem (que o domínio espiritual, o principal, temo-lo nós), queimam foguetes, dão-lhes banquetes e fazem-lhes mil rapapés. Sei isto de raiz. Os ingleses, compreende-se, não gostam, porque gente neste mundo, cuidam, são só eles. Por isso… no savy, no savy…
Passada uma semana, estávamos em Hong Kong. Armas e bagagens foram logo para o Hong Kong Hotel. - Sir manager, one room of first class for us! - Yes, sir. - And if somedoby or somebodies, Chinese monopoly gentlemen, ask for Monsieur doctor Silva Mendes, quick, quick, please call quick me. - Yes, my lord!
Entrei no «room», mudei de colarinho, compus o melhor que soube o laço da gravata e, sentando-me num molíssimo sofá, esperei. Esperei uma hora, esperei duas horas, esperei três horas. Provavelmente (disse eu) enganaram-se no hotel ou teriam perdido o barco de Macau para Hong Kong. Mas logo todos!... Eles virão (atalhou confiante minha mulher); vamos nós dar um passeio pela cidade? - sim, vamos, eles que esperem; os interessados são eles…
Confesso: causaram-me desagradabilíssima impressão os chineses. Eu fazia-os muito outros. Nunca tinha visto nenhum em carne e osso. Conhecia-os porém: conhecia-os das figuras das caixas de fósforos e do Café Chinês da Póvoa de Varzim. Era este café (onde perdi as ditas seis ricas libras) mobilado todo à chinesa! Mesas, cadeiras, sofás, alizares das paredes com embutidos de osso e madrepérola, pintados com pagodes, chineses de rabicho sobre robes de chambre e chinesas coradinhas, mignons, pequeninas, muito engraçadas, todas chim-chim, envolvidas em mantons de seda bordada, coisa rica... 
Eram estes chineses e estas chinesas que eu trazia na cabeça. Que contraste, porém, com os que e as que vi nas ruas de Hong Kong! A cidade, sim, sera para ver-se: casarões enormes, estabelecimentos ricos com tão bonitas coisas que até dava vontade de roubá-las, e, à noite, iluminação tão profusa, que parecia tudo aquilo um céu aberto.
De regresso ao hotel, dirigi-me logo ao «manager»: has somebody or have somebodies, all right asked for me? - No, sir; ah, two coolies... - Two coolies?! (interrompi); give them quick two kiks in the tief of the back... massadores! E subi para o meu «confortable room».
Pregam-me a partida os senhores dos monopólios, estou a ver… Fingem que não precisam de mim. Estão, porém, muito enganados. Aqui, faria-lhes a coisa aí por, sim, por duas mil patacas a cada um, por não fazer nada; em Macau, hão-de pôr para cá cinco, se não for mais. Estão muito enganados comigo… De resto (expliquei a minha mulher), tem vindo para cá, segundo me consta, às vezes, como advogados uns chochinhas e pensarão, os dos monopólios, que eu sou para medir pelo mesmo diapasão… Bem tolos, se tal pensam!
in Jornal de Macau, 31.10.1929

sábado, 23 de janeiro de 2021

Mortimer Menpes (1855-1938)

Mortimer Luddington Menpes (1855-1938), was an Australian-born artist, author, printmaker, engraver and illustrator. He was born in Port Adelaide in South Australia in 1855. Educated at Adelaide Educational Institution, he attended classes at the Adelaide School of Design, and did some excellent work as a photo-colourist, but his formal art training began at the School of Art in London in 1878, after his family had moved back to England in 1875. He shared a studio with James Abbott McNeil Whistler in the 1880s.
Menpes first exhibited at the Royal Academy in 1880, and, over the following 20 years, 35 of his paintings and etchings were shown at the Academy. He made two journeys to the Far East (China and Japan). One in 1887 and another in 1896. He spent 1888 and 1889 living in Macau and on the China Coast. In 1900, after the outbreak of the Boer War, Menpes was sent to South Africa as a war artist for the weekly illustrated magazine Black and White. After the end of the war in 1902 he travelled widely, visiting Burma, Egypt, France, India, Italy, Japan, Kashmir, Mexico, Morocco, and Spain. Many of his illustrations were published in travel books by A & C Black. He died in Pangbourne in 1938. 
Menpes painted in both oil and watercolour. He developed a special form of colour etching, used to illustrate his books, and founded the Menpes Press of London and Watford. At the beginning of the twentieth century, Menpes travelled Europe, making copies of paintings by the old masters which he used as a basis for a series of prints published in 1905 and 1909. In 1911, Menpes donated 38 of the copies in oil to the Australian Government.
Mortimer Luddington Menpes (1855-1938) foi um pintor, gravador e ilustrador australiano. Nasceu em Port Adelaide, na Austrália do Sul, em 1855. Educado na Adelaide Educational Institution, frequentou aulas na Adelaide School of Design onde se destacou nos trabalhos como foto-colorista, mas a formação em arte começou na School of Art de Londres em 1878, depois da família mudar-se para Inglaterra em 1875. Ali dividia um estúdio com James Abbott McNeil Whistler na década de 1880. Menpes expôs pela primeira vez na Royal Academy em 1880 e, nos 20 anos seguintes, 35 das suas pinturas e gravuras foram exibidas na Academia. Fez duas viagens ao Extremo Oriente (China e Japão). Uma em 1887 e outra em 1896. Viveu entre 1888 e 1889 em Macau e na costa da China. 
Em 1900, após a eclosão da Guerra dos Boeres, foi enviado para a África do Sul como artista de guerra para a revista semanal ilustrada Black and White. Em 1902 viajou muito tendo visitado Burma, Egipto, França, Índia, Itália, Japão, Caxemira, México, Marrocos e Espanha. Muitas de suas ilustrações foram publicadas em livros de viagens por A & C Black. 
Morreu em Pangbourne (Inglaterra), em 1938. 
Menpes pintou a óleo e aguarela. Desenvolveu uma forma especial de gravura colorida, usada para ilustrar os seus livros, e fundou a Menpes Press de Londres e Watford. No início do século XX, Menpes viajou pela Europa, fazendo cópias de pinturas dos antigos mestres que usou como base para uma série de gravuras publicadas em 1905 e 1909. Em 1911 doou 38 das cópias a óleo ao governo australiano.
Para além do "Fishing Station, Macao, China", Mortimer pintou ainda em Macau o "Frontier Gate" (Porta do Cerco). Profundamente marcado pelo impressionismo nas pinturas a óleo, Menpes também era uma excelente aguarelista.
No livro "China" editado em 1909 com texto de Sir Henry Arthur Blake (1840-1918) e ilustrações de Mortimer Menpes um dos capítulos intitula-se: "Dragon Festival at Macao".

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

"O Jornalismo em Macau": 1889

O jornalismo em Macau
A Abelha da China foi o primeiro periodico que sahio a lume na cidade de Macau na quinta feira 12 de setembro de 1822 sendo redigido pelo principal mestre do convento de S Domingos e impresso na typographia do governo. Findou com o nº 67 no sabbado 27 de dezembro de 1823. Semanario politico em duas columnas. Tinha por epigraphe dos seus 53 numeros os seguintes versos de Terencio:
Hoc tempore
Obsequium amicos veritas odium parit
E dos restantes os versos de Camões:
A verdade que encontro nua e pura
Vence toda a grandiloqua escriptura
Era o segundo periodico publicado a leste da India. O primeiro havia sido a Gazeta de Gôa desde 22 de dezembro de 1821 até 30 de setembro de 1826. Seguiram-se-lhe a Gazeta de Macau (I), Chronica de Macau, o Macaista Imperial, Boletim Official do Governo de Macau, Correio Macaense (I) O Verdadeiro Patriota, O Commercial, Gazeta de Macau (II), O Portuguez na China, O Pharol, Macaense, A Aurora Macaense, O Solitario na China, O Procurador dos Macaistas, Ta-ssi yang Kuc 1 (grande reino do mar do Occidente), O Independente, O Noticioso Macaense, O Oriente, Gazeta de Macau e Timor, O Imparcial, Jornal de Macau, O Macaense, O Correio de Macau, O Correio Macaense (II), A Voz do Crente, semanario religioso e de noticias impresso na typographia do Seminario de S José desde janeiro de 1887.
A imprensa portugueza foi pelos membros da Companhia de Jesus instituída nos impérios da China e do Japão no seculo XVI.
Gabriel Fernandes (Lisboa)
1. É a collecção dos seus 134 numeros no formato de folio de 4 paginas e 12 columnas cada um, muito apreciavel e de interesse para a historia d'aquella possessão portugueza. Dicc. Bib. Portuguez tomo VIII.
in Novo Almanach de Lembranças Luso-Brazileiro para o anno de 1889, Lisboa.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Morreu o criador de Michel Vaillant (Rendez-Vous à Macao)

Morreu o autor francês de Banda Desenhada Jean Graton, 97 anos. Criador em 1957 da personagem Michel Vaillant (piloto de Fórmula 1), Graton era considerado o último grande nome da época de ouro da banda desenhada franco-belga onde figuram nomes como Franquin, Albert Uderzo e René Goscinny.
  Título da edição em inglês: Rendez-Vous in Macau
  
  A edição portuguesa surgiu em 1984

a aventura nº 43 de Vaillant
Edição italiana: "Appuntamento a Macao"
A 77ª aventura de Vaillant foi publicada em 2018 com o título "Macau"

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O Diário de William Speiden Jr.

William Speiden, Jr., (1835-1920) era ainda adolescente quando privou de perto com os oficiais que participaram na expedição comandada pelo Comodoro Matthew C. Perry aos mares da China e do Japão em meados do século 19. 
A histórica missão naval norte-americana de Perry foi autorizada pelo presidente dos EUA, Millard Fillmore, como forma de conseguir estabelecer relações comerciais com o Japão e garantir certos direitos e protecções para os marinheiros e cidadãos americanos envolvidos no comércio no Extremo Oriente. 

Speiden subiu a bordo da fragata a vapor Mississippi (imagem acima), em Filadélfia, na Primavera de 1852, para começar a trabalhar como assistente do pai, William Speiden, Sr. (1805-1861).  O pai tinha já uma longa carreira na Marinha dos EUA e o Mississippi era na época um navio de renome. 
O impressionante vapor de roda lateral foi construído com a supervisão do Comodoro Perry, em 1839 no Philadelphia Navy Yard. A construção terminou em 1842 e a embarcação fez de imediato parte da esquadra norte-americana na Guerra do México sob o comando de Perry. 
Como escriturário de bordo na Mississippi, William Speiden Jr. criou um diário que viria a ter dois volumes
"With Commodore Perry to Japan: The Journal of William Speiden Jr., 1852-1855
, entre 9 de Março de 1852 e 16 de Fevereiro de 1855, documentando assim a Expedição Naval dos EUA aos Mares da China e ao Japão, sob o comando do Comodoro Matthew C. Perry. 
No diário dá conta da vida a bordo, da diplomacia, bem como dos portos de escala durante a viagem. O diário contém inúmeras ilustrações (50), incluindo desenhos de Speiden e de outros companheiros do navio, bem como recortes de jornal e obras de arte adquiridas por Speiden, nomeadamente pinturas em aguarela feitas por artistas chineses anónimos que retratam paisagens marítimas e pessoas dos mares da China. 
Speiden tinha apenas 18 anos quando passou por Macau.
Alguns excertos do Diário relativos a Macau:
13 Novembro 1852: O Mississippi aproxima-se de Hong Kong e Macau onde outras embarcações se vão juntar à frota. O secretário de estado norte-americano Edward Everett (1794-1865) prepara uma carta que o presidente dos EUA vai dirigir ao Imperador do Japão e que será entregue por Perry.
7 Abril 1853: O Mississippi chega a Macau e a Victoria, em Hong Kong.
22 a 28 Abril 1853: As embarcações Plymouth, Saratoga, e Supply juntam-se ao Mississipi em Macau.
2 Maio 1853: Speiden coloca no Diário uma pintura de Macau.
5 Agosto 1853: Regresso (de Cantão) a Macau onde a frota vai passar o inverno.
7 Outubro 1853: Joseph Harrod Adams (1817-1853),  neto do presidente John Adams e sobrinho do presidente John Quincy Adams é enterrado no cemitério protestante de Macau (junto ao Jardim Camões); o funeral conta com a presença de oficiais norte-americanos, franceses e portugueses. Speiden escreve o quão envergonhado ficou com o facto dos marinheiros terem regressado ao Mississipi embriagados.
2 Agosto 1854: O Mississipi está de regresso a Macau.
Parte de um dos mapas da expedição Coast of China and Japan Islands;
aqui a costa do sul da China: Macau, Cantão, Hong Kong, etc.

Após terminar a expedição em 1855, William Speiden, Jr., tornou-se encarregado dos armazéns da Marinha dos EUA em Hong Kong entre 1856 e 1864. Entre 1860 e 1861 foi de licença até aos EUA onde se casou com Marion McKeever em Nova Iorque. De 1870 a 1910 trabalhou como agente de alfândega dos EUA no Porto de Nova Iorque onde morreu a 20 de Agosto de 1920.
Jesuit Convent. Macao. Aurtor: Bernhard Heine

A expedição norte-americana liderada pelo comodoro Matthew-Calbraith Perry tinha por objectivo o estabelecimento de relações comerciais com o Japão. Para além dos registos gráficos - são magníficas as ilustrações de Bernhard Wilhelm Heine (1827-1885) - o comodoro mandou fazer um livro tendo por base os seus diários e de outros membros da tripulação. A tarefa da compilação dos mesmos ficou a cargo do Francis L. Hawks.  Acabou tudo publicado em 1856 sob o título de “Narrative of the expedition of an American squadron to the China seas and Japan, performed in the years 1852, 1853, and 1854, under the command of Commodore M. C. Perry, United States Navy, by order of the Government of the United States”.  (Narrativa da expedição de uma esquadra americana aos mares da China e Japão, realizada nos anos de 1852 a 1854 sob o comando do comodoro M. C. Perry, da Marinha americana, por ordem do governo dos Estados Unidos).
Macao from Penha Hill - Autor: Bernhardt Heine

De seguida apresento alguns excertos traduzidos do livro de memórias escrito pelo Comodoro Mathew-Calbraith Perry relativas a Macau. Perry era um observador muito atento.

"A residência do Comodoro em Macau deu-lhe a oportunidade de estender as suas observações deste lugar além do que lhe oferecera a sua casual visita anterior. Macau, outrora tão famoso pelo seu extenso e lucrativo comércio e pela sua riqueza, está agora completamente privado deles, e parece ser sustentado apenas por um pequeno comércio costeiro, pelo dinheiro que gasta uma pequena guarnição e pelas despesas das famílias dos comerciantes ingleses e americanos que têm ali a sua residência de verão; e que, tendo muito dinheiro, o gastam liberalmente. A jurisdição portuguesa exerce-se dentro de pequenos limites. Os estabelecimentos chineses parece que vão absorvendo todo o espaço; de facto, a maior parte da população da cidade compõe-se já de homens e mulheres chineses, que exercem os ofícios mais baixos nos estabelecimentos domésticos, tanto dos portugueses como dos estrangeiros. 
Os chineses são os donos das lojas, das oficinas e do mercado. Difícil é conjecturar o que fazem os portugueses. Com algumas excepções de comerciantes ricos, eles são na maioria pobres e demasiado orgulhosos para trabalhar; contudo, alguns deles são amanuenses nas várias firmas comerciais estrangeiras, ao passo que a grande maioria passa o tempo na ociosidade, gozando do resto das principescas fortunas dos seus antepassados e ainda ocupam, na sua pobreza de mendigos, as magníficas mansões dos antigos tempos da esplêndida prosperidade de Macau.
Há ainda uma amostra de poder militar da parte dos portugueses, que se vê nas colinas circundantes, cobrindo a cidade de fortificações, construídas no estilo do séc. XVII. Estas parece serem suficientes para imporem respeito aos chineses que, se tivessem a mais pequena energia, poderiam facilmente desalojar os portugueses, aos quais não consagram grande afeição, e expulsá-los todos do país. 
A guarnição portuguesa compõe-se de cerca de 200 soldados regulares e outros tantos da milícia local, todos excelentemente disciplinados, e dificilmente se encontram homens mais bem vestidos e aprumados. 
Será bom talvez lembrar que a Companhia Inglesa das Índias Orientais, antes da abolição da sua Carta, fez de Macau uma espécie de entreposto do seu comércio na China, e algumas das residências mais elegantes foram construídas por esta magnânime corporação, ou pelos ostentosos portugueses nos seus dias de riqueza e prosperidade. 
Uma destas magníficas mansões, com um jardim de mais de um acre de extensão, construído com gosto e até hoje conservado em ordem com grandes despesas, podia ser arrendada, aquando da visita do Comodoro, pela pequena soma de 500 dólares por ano; e este lugar tem mais a vantagem de andar romanticamente associado com o nome do poeta Camões, tendo sido o seu favorito retiro e o local onde, como o leitor já sabe, está erecto um monumento à sua memória. 
Foi de Macau, nos dias da sua opulência, que foram despachadas para o Japão muitas das expedições comerciais portuguesas; e foi também em Macau que a Igreja de Roma teve um dos estabelecimentos eclesiásticos mais poderosos, sustentado pelo terrível poder da Inquisição que, nos tempos antigos, exerceu no Oriente toda a força da sua negra e cruel disciplina. Hoje, porém, desapareceram a opulência e os empreendimentos dos seus comerciantes; e o tremendo domínio dos altivos eclesiásticos e o seu sanguinário tribunal caíram nas mãos frágeis de padres empobrecidos, que fazem humildemente apelo à caridade e dependem apenas da liberalidade da reduzida população portuguesa.