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segunda-feira, 27 de maio de 2019

Macau visto de Portugal em meados do século 19 - 1ª parte

Governo de Macáo
Os acontecimentos extraordinarios que têm tido logar na China por causa do commercio do Opio ou Anfião são hoje já demasiado conhecidos pelo que pertence aos estrangeiros para que seja necessario fazer-vos menção delles mas pelo que respeita ao estabelecimento de Macáo cumpre dar vos noticia ainda que succinta das exigencias dos Mandarins daquelle Imperio e providencias adoptadas para evitar todo o motivo de desintelligencia.
O Governador Adrião Accacio da Silveira Pinto e Senado de Macáo vendo a maneira rigorosa por que as authoridades Chinezas davam execução ás medidas decretadas pelo Imperador contra a introducção do Anfião e risco a que se exporia o estabelecimento se não concordasse com ellas, trataram logo com grande prudencia de fazer sahir todo o que alli existia e prohibir a sua introdução, e em consequencia de requisição dos Mandarins, publicaram tambem que se não désse asylo a China algum malfeitor ou de má conducta. Mas nem assim o Alto Commissario Imperial Lin o Suntó, Vice Rei de Cantão e outros Mandarins, incumbidos de acabarem aquelle trafico deixaram de reclamar a entrega do Opio que diziam existir em Macáo. Uma grande e interessante correspondencia se seguiu chegando a ponto de exigirem que se fizesse a entrega dentro de tres dias e bem assim d'alguns transgressores das ordens publicadas ameaçando tirar os servidores fechar o porto de Macáo e outras medidas fortes seguindo se outras que talvez fizessem com que os Portuguezes não podessem alli habitar por mais tempo.
Publicaram-se então novos editaes excitando a necessidade de pôr termo ao trafico do Opio e reuniu se ao Senado uma Commissão Consultiva por interessar neste objecto todo o estabelecimento para tratarem de responder com prudencia aos Mandarins procurando sustentar boa harmonia em quanto fosse compativel a chegada do Alto Commissario a Cantão e Boca Tigre a entrega pelos Inglezes de mais de vinte mil caixas de Opio aos Chinezes e depois a prohibição de commerciarem com o Imperio poz Macáo numa situação muito critica especialmente depois que os Inglezes alli se acolheram solicitando protecção contra a violencia dos Chinas e oferecendo todos os meios pecuniarios e mesmo forças navaes para esse fim oferta generosa que o Governador agradeceu mas não acceitou emquanto o Delegado Imperial não pozesse em prática a respeito de Macáo os ameaços que parecia dirigir lhe desejando mantêr a mais stricta e sevéra neutralidade esperando que a aggressão começasse primeiro da parte dos Chinas reservando só para então aproveitar se dos meios que se lhe ofereciam para a sustentação dos Direitos de Sua Magestade e conservação do estabelecimento cujo Governo lhe fôra confiado.
Com a morte de um China por alguns marinheiros Inglezes em Hong Kong não sendo entregue o matador como exigiam as authoridades Chinezas recresceram as difficuldades pela ordem que deram para se retirarem os servidores e comestiveis a todos os subditos daquella nação que se achavam em socego em Macáo. Depois instaram com o Governador para que exigisse do Superintendente do commercio Britannico Carlos Elliot a entrega do matador fazendo para isso toda a qualidade de exigencia ameaçando até metterem Tropas na Cidade e Meirinhos para prenderem os Inglezes a que tudo se respondeu com dignidade.
O Capitão Elliot vendo o estado em que se achava já o estabelecimento falto de tudo e que a força precisa para a sua defensa era insuficiente apesar da segurança do Governador de lhe dar a mesma protecção que aos Portuguezes retirou-se para Hong Kong com alguns dos seus compatriotas mas tendo ficado muitos redobraram as exigencias dos Mandarins com mais vigor e de tal sorte que todos se resolveram a sair como efectivamente o fizeram em 26 de Agosto de 1839.
Conservaram-se as cousas em sofrivel estado até ao 1 de Setembro em que com a chegada de uma Curveta Ingleza julgou o Superintendente dever propôr o seu regresso e dos mais Inglezes a Macáo oferecendo uma força para defensa da Cidade declarando desejarem faze-lo assim em consequencia do insultante memorial dirigido pelas authoridades Chinezas ás Portuguezas louvando-as e agradecendo lhes por contribuirem para deitarem fóra o povo Britannico. O Governador repetiu lhe que não podia deixar de mantêr a mais stricta neutralidade entre as duas grandes nações a Ingleza com quem a sua ha tantos tempos se acha tão intimament ligada ea Chineza pelos motivos bem conhecidos de todos Agradeceu novamente a sua franca e generosa cooperação de que se não podia aproveitar pelas razões mencionadas. Declarou lhe que tendo se os subditos Britannicos retirado espontaneamente de Macáo com o fim de não comprometterem o estabelecimento com este passo se colocaram na necessidade dalli não voltarem em quanto se não aplanassem as difficuldades que ainda existem e que contava vêr satisfactoriamente terminadas não lhe sendo permittido alterar cousa alguma para mantêr a neutralidade em quanto não recebesse ordens expressas do seu Governo a este respeito. Que finalmente tinha respondido terminantemente ao Alto Commissario fazendo lhe vêr que os Inglezes se retiraram espontaneamente e que assim julgava ficarem igualmente satisfeitos elle ea dignidade do Governo Portuguez renovando o sentimento que tivera quando os viu partir e que eles reconheceram lhes fôra dada toda a possivel protecção. A attitude forte que tomou o Governador conservando sempre em estado respeitavel às fortalezas ea prudencia com que se houve eo Leal Senado foram talvez as circumstancias a que se deveu que Macáo passasse em tão delicada crise com simples ameaças.
Quando o Delegado Imperial se desenganou que de Macáo não obteria uma só libra de Opio o que não custou pouco a conseguir mudou de rumo e começou a exigir seguranças de que não commerciariamos mais para o futuro naquella droga querendo que se lhe dessem essas seguranças á moda Chineza mas isso tambem o não conseguiu por quanto desde o principio se sustentou que as Leis que regulam o estabelecimento são as Portuguezas e que não se admittiam outras como tambem houve firmeza nisto foram cedendo ea final se contentaram com um attestado do procurador da Cidade quasi igual ao que por obrigação e em cumprimento de antigas convenções era obrigado a passar á chegada de qualquer navio.
Quizeram tambem obrigar a povoação a uma mutua responsabilidade de familias á Chineza e tambem o não conseguiram porque apenas se lhe deu uma estimativa da população Portugueza. Deste modo o Governador ajudado pelo Leal Senado e de uma Commissão Consultiva nomeada ad hoc e que se reúne no Senado quando ha negocios de grande importancia pôde chegar a um estado de cousas que parecia avisinhar-se muito do fim desejado a não serem os novos acontecimentos occorridos com os inglezes em Hong Kong, bahia onde se achavam reunidos todos os seus navios estando novamente a ponto de se abrir o commercio que desde principios de Março permanecia fechado. As perseguições do Alto Commissario começaram logo com mais violencia e nós ainda que nenhuma parte tivessemos no motivo das ultimas divergencias sofremos seus efeitos porque continuou a estagnação (...)
Foi nestas circumstancias que em 3 de Setembro entraram em Macáo o Alto Commissario Imperial Lin encarregado de exterminar o trafico do Opio o Suntó das Provincias de Quantong e Quangsi e outros Mandarins vindos de Pekim que sendo recebidos com as formalidades do estilo não acceitando as casas que lhes estavam preparadas depois de visitarem o Pagode da Barra se retiraram no mesmo dia. No dia 5 do referido mez foi tambem a Macáo o grande Hopú Administrador Geral das Alfandegas que é parente do Imperador e todos mostraram as melhores disposições a favor dos Portuguezes O Superintendente Britannico depois de annunciar o bloqueio de Cantão que levantou logo depois em 16 daquelle mez requereu de novo permissão para os negociantes da sua nação se abrigarem e suas familias em Macáo e bem assim as cargas de commercio licito.
O Governador respondendo em 14 repetiu a maneira por que os Inglezes se haviam retirado com o fim de não comprometterem o estabelecimento ponderou que as difficuldades tinham augmentado muito com as hostilidades entre elles e os Chinas e que sendo seu dever mantêr o estabelecimento no Dominio de Sua Magestade Fidellissima era para recear o caracter altivo e desconfiado do Governo Chinez e modo despotico por que elle sabe fazer executar as suas determinações podendo com uma só chapa de qualquer Mandarim retirar os mantimentos e mais soccorros a todos os habitantes Portuguezes e estrangeiros de Macáo que por esta maneira ficariam reduzidos áquellas terriveis circumstancias de que fôram libertados pela saida dos Inglezes. Em quanto á proposta da introducção das fazendas em Macáo fez lhe igualmente saber que elle eo Senado se occupariam desse arranjo se podesse levar se a eteito attendendo as Instrucções do Governo de Sua Magestade de e convenções celebradas com o do Imperador não podendo comtudo introduzir se hoje sem outros precedentes por isso que a ruina do commercio Portuguez que já bastante tem sofrido seria infallivel e os Subditos Britannicos tambem nada aproveitariam com especialidade depois das ultimas medidas adoptadas em nome de Sua Magestade Britannica.
Desejoso porém o Governador de restabelecer a harmonia entre os Inglezes e os Chinezes por meio de um arranjo que obstasse a uma guerra e á estagnação commercial que existia começou a procurar servir de medianeiro para com os Mandarins dando para isso sérios passos e segundo alguns dos ultimos oficios que delle se receberam datados de 29 de Setembro de 1839 havia toda a esperança de que as divergencias que entre elles tem havido se arranjariam ao menos provisoriamente tendo se em 26 daquelle mez aberto o commercio dos Chinas com Macáo reputando se por isso terminada a grande questão que tanto nos tem afectado Infelizmente porém por noticias posteriores não oficiaes consta que novas e sérias hostilidades têm tido logar e que as forças navaes das duas nações se têm batido já por vezes e que finalmente a guerra foi declarada preparando os Inglezes na India uma grande expedição contra a China.
Um edicto de 6 de Dezembro declarou vedada a estada de todo e qualquer Subdito Britannico em Macáo e um outro de 5 de Janeiro deste anno os declarou fóra da Lei. Dos Periodicos da Asia recentemente recebidos consta que em cumprimento das ultimas disposições fôra imcumbido um General Chinez de se dirigir a Macáo com tropas como efectuou e prender o Capitão Elliot e outros Inglezes que alli voltaram. Consta mais que era portador de um edital do Alto Commissario que ordenava que todos os Chinas se retirassem da Cidade dentro de 5 dias suspendendo-se o commercio e usando se de força contra os Inglezes mas que attendendo ao peditorio dos Mandarins prorogára a sua publicação por mais 5 dias para dar tempo aos Portuguezes para deliberarem o modo de fazer retirar os seus amigos Inglezes e findo aquelle praso cumpriria as ordens superiores. O Capitão Smith, Commandante das forças navaes de Sua Magestade Britannica na China, sabedor do edicto promulgado pelas Authoridades Chinezas contra os Subditos da sua nação residentes em Macáo, aos quaes causára grande anciedade e susto, fez mover no dia 4 de Fevereiro uma Curveta para dentro do Porto daquella Cidade com o fim, segundo referiu, de lhe dar protecção sem comtudo ter vistas algumas hostís.
Immediatamente se seguiu uma activa correspondencia entre o Capitão e o Governador que exigindo a prompta saida daquelle vaso lhe declarou considerar a sua entrada dentro do Porto como uma decidida hostilidade contra o Governo de Sua Magestade Fidellissima por ser prohibida pelas Leis do Porto e tractados com a China, não ousando mesmo pratica-lo a esquadra do Almirante Drury em 1808 e protestando a final e o Leal Senado contra aquelle procedimento e todos os resultados que elle acarretaria sobre o estabelecimento já pela falta de viveres e commercio com manifesto prejuizo dos nacionaes e estrangeiros já mesmo pelo nenhum beneficio que disso tirariam os Inglezes, procedimento que até não podia ser acolhido debaixo do titulo de protecção.
O Capitão fez então sair a Curveta dizendo que sentia os sofrimentos do estabelecimento insultos dos Chinas e oferecendo de novo seus serviços. O Governador agradecendo este comportamento lhe fez saber que em consequencia das reclamações das Authoridades Portuguezas as tropas Chinezas que se achavam em marcha e outras junto do Pagode da Barra aquellas não progrediam e estas se retiravam.
Baía da Praia Grande. Imagem não incluída no documento.
Taes são os principaes acontecimentos que têm tido logar até 25 de Fevereiro ultimo em Macáo estabelecimento fundado em 1557 e que por causa da descomedida cobiça de alguns commerciantes tem sido abalado pelos fundamentos. Anciosos esperamos receber noticias do Governador e mais Authoridades que nos possam esclarecer a respeito do que se tem seguido nesta delicada crise e com es logo que chegue áquelles mares a expedição britannica o que necessariamente deverá augmentar muito as difficuldades da sua situação.
Tenho vos dado conta dos negocios que mais têm afectado o estabelecimento em relação á sua politica externa. Toca agora dar vos conhecimento dos internos que igualmente demandam séria atenção. Por Decreto de 11 de Abril de 1839 foi exonerado do Governo de Macáo o Tenente Coronel Adrião Accacio da Silveira Tinto e nomeado Commandante da força armada de Gôa sendo substituido pelo Coronel José Antonio Vieira da Fonseca que servia de Governador Geral da India. O Governo de Sua Magestade em vista dos extraordinarios acontecimentos da China considerando quanto era melindrosa uma tal mudança naquellas circumstancias ordenou que o referido Tenente Coronel continuasse no governo e em attenção aos bons serviços que tem prestado na conservação do estabelecimento revogou por Decreto de 12 de Maio ultimo a medida que adoptára em 11 de Abril do anno precedente e agraciou aquelle oficial com o titulo do seu Conselho.
O Governador Juiz de Direito e Senado têm por vezes feito conhecer que o diminuto ordenado que se acha marcado para o Governador não é suficiente para sua decente sustentação mantendo o devido decóro num Paiz tao caro e em consequencia o Governo de Sua Magestade vos submette a Proposta junta que espera approvareis pelos solidos fundamentos em que é baseada.
Um dos objectos que mais perturbação ía causando no estabelecimento foi a medida tomada pelo Governador Geral interino da India de fazer restituir ao Batalhão de Macáo alguns oficiaes que delle fôram tirados pelo seu antecessor Barão de Sabrôzo por proposta do actual Governador e bem assim a nomeação de um Major de Cavallaria de Portugal para Commandante do mesmo corpo e a nomeação de uma Commissão para conhecer das divergencias havidas entre as Authoridades e as Camaras Municipaes.
O Governador não dando execução áquellas providencias do Governo Superior da India fundando se nas inevitaveis e desagradaveis consequencias que do contrario se poderiam seguir participou logo este acontecimento ao Governo de Sua Magestade o qual em 18 de Novembro do anno proximo passado e 18 de Março proximo passado em vista das razões ponderadas approvou a dita deliberação.
Desde que ha Representação Nacional não foi ainda possivel serem representados em Côrtes os estabelecimentos de Macáo Timor e Solor. A Lei eleitoral de 9 de Abril de 1838 designa o numero de 1 Senador e 2 Deputados por este circulo aggregando-se os votos daquellas Ilhas aos de Macáo quando seja possível, mas o Governador e Senado desta Cidade entenderam que convinha mais demorar a eleição do que deixar de se aggregarem os votos daquellas Ilhas.
As communicações são difficeis e perigosas e por isso tarde poderá haver Representantes pelo dito circulo. Além das difficuldades mencionadas accrescem ainda outras taes como Macáo ter apenas uns cinco mil habitantes Portuguezes e Timor e Solor um mais diminuto numero de Eleitores além dos empregados publicos e não haver Juntas de Parochia para fazerem o recenseamento. À vista do expendido entende o Governo que se deve adoptar a Proposta que vos apresenta dividindo aquelle circulo em dois podendo Macáo dar 1 Senador e 1 Deputado e Timor e Solor outro Deputado ficando authorisado para fazer proceder ao recenseamento e tomar as mais providencias precisas a este respeito.
A Administração deste longinquo estabelecimento ha muito carece ser fixada. Para esse efeito já o Governo de Sua Magestade tem enviado por vezes ás Côrtes não só algumas Propostas como tambem os trabalhos de uma Commissão creada ad hoc eo voto e parecer de pessoas algumas das quaes reunem ao conhecimento local do Paiz e suas relações e usos da China a intelligencia e saber de que são dotados. Se aquellas providencias eram então necessarias hoje se tornam muito pela delicada situação do estabelecimento como se evidencia dos oficios das diferentes Authoridades recebidos pelo ultimo navio dalli chegado. (continua)

Excerto do Relatório do Ministério do Ultramar apresentado às Camaras na Sessão extraordinaria de 1840.


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