Páginas

quinta-feira, 10 de maio de 2018

A Mulher de Macau segundo relatos de viajantes (século XVI ao século XIX)


(...) Os macaenses, grupo de ascendência portuguesa com pool genético muito rico, é um grupo fortemente hibridado, cujas mães teriam sido levadas para Macau, nos primeiros tempos da sua fundação, dos mais diversos pontos da Terra, na maior parte dos casos como escravas, adquiridas nos bem providos mercados do Oriente. Este grupo dos macaenses é um grupo bastante original que se demarcou muito cedo na sociedade de Macau, chegando a um parcial isola mento devido a casamentos endogâmicos e preferenciais, com europeus, entre as classes mais privilegiadas.
Foi, de facto, nos dados que recolhe- mos nos re-latos de viagens relativos às mulheres de Macau que encontrámos, de certo modo, a explicação para a demarcação deste grupo, que manteve grande homogeneidade através dos séculos chegando até aos nossos dias, embora com muitos padrões antigos em franca desagregação.
Os documentos que encontrámos dispersos pelos vários arquivos, principalmente registos das paróquias e numeramentos feitos em Macau, referem-se aos nhons, filhos dos portugueses, mas não às suas filhas, que ficaram sempre integradas no grupo de mulheres casadas ou solteiras, senão no grupo das escravas, sem discriminação de etnia.
Que mulheres teriam acompanhado os primeiros portugueses para Macau, que destino teria sido o das suas filhas e que lugar teriam ocupado estas na sociedade macaense?
Responder a estas questões só é possível, como já se disse, através dos relatos dos viajantes que demandaram Macau entre os Séculos XVI e XIX e das cartas dos eclesiásticos, que fizeram daquela cidade porta de entrada para as missões do Japão e da China.
Analisemos, sumariamente, alguns dos principais relatos de que dispomos. Destes, os mais pormenorizados que conhecemos são, sem dúvida, os do holandês J. H. Linschoten, do inglês Peter Mundy e o dos dois magistrados chineses Cheong Ü Lam e Ian Kuong Iam, acompanhados todos eles de gravuras com grande interesse, embora outros apontamentos, legados por diferentes viajantes, alguns registados em cartas escritas de Macau (1), tenham também grande importância documental para a história social daquele território. A limitação do tempo impôs-nos, porém, escolher apenas os mais significativos.
Nos primeiros tempos, a vida aventurosa dos portugueses nos mares da China (2) não estimulava os homens a levarem consigo mulheres do Reino que, aliás, poucas eram, na altura, as que demandavam o Oriente. No entanto, mulheres nativas, escravas e concubinas, tal como era uso da navegação oriental, teriam sempre povoado os seus barcos (conforme o diz, entre outros, Fernão Mendes Pinto).
Necessariamente, dessas primeiras uniões teriam nascido filhos, que António Bocarro (3) descreve como "mais robustos que nenhuns". Tal robustez advinha, provavelmente, do poli-hibridismo e da selecção natural feita pela mortalidade infantil. No entanto, das filhas, Bocarro não fala embora, antes, tenham sido já referidas por Fernão Mendes Pinto, quando descreveu Liampó (4).
Registou este autor, referindo-se a um banquete oferecido pelos moradores daquela cidade: "(...) e assentados à mesa forao servidos por moças muyto fermosas,& ricamente vestidas ao modo dos Mandarins que a cada iguaria que punhao cantavao ao som dos ins-trumetos, que outras tangiao(5), e a pessoa de António de Faria foy servida co oito moças muito alvas & gentis molheres, filhas de mercadores honrados, que seus pais por amor de Mateus de Brito,& de Tristao de Gâ trouxerao da cidade, as quaes todas vinhao vestidas de sereas (...)".

Cadeirinha para transporte das nhonhonha de Macau (Ou Mun Kei Leoc, ob. cit.).

É de notar que Fernão Mendes Pinto fala nas filhas dos portugueses vestidas como sereias. Este traje mítico deve ser a saraça baju, que desde a Índia, passando por Malaca até ao Sudoeste da China, as mulheres asiáticas usavam como vestuário. Um pano da cintura para baixo e um corpinho de pano finíssimo a que Linschoten (6), nos fins do Século XVI (1593-95), também se refere, ao retratar as mulheres dos portugueses de Goa.
Segundo este autor "as mulheres dos Portugueses, Mestiças ou Cristas das Indias não são nunca vistas, estando a maior parte do tempo reclusas em casa sem sair senão para ir à igreja ou a qualquer visita (...) sendo, para esse efeito, levadas em palanquins cobertos (...).
Em casa quase todas andam de cabeça descoberta tendo a parte superior do corpo coberta por uma camisa muito fina e clara que elas chamam baiu, que não ultrapassa as ancas. O rosto é coberto por um pano dobrado em dois ou em três muito ricamente trabalhado e figurado, usando sapatos sem saltos (...)".
Nesta descrição está retratado o traje que levaram para Macau, as mulheres dos portugueses fundadores da cidade.
Peter Mundy, no Século XVII (7) descreveu, também, os trajes de Macau, referindo-se às mulheres macaenses e aos quimonos que, por casa, envergavam as crianças das famílias abastadas, anotando as jóias preciosas e os caros enfeites.
E acrescenta: "Neste lugar há muitos homens ricos, trajando à maneira de Portugal. As suas mulheres, como as de Goa, vestem-se com saraças e condês, estes sobre a cabeça e as outras do meio do corpo até aos pés, e andam calçadas de chinelas chatas. É este o trajo ordinário das mulheres de Macau. Só as de melhor categoria são transportadas em cadeiras à mão, como as cadeirinhas em Londres, todas totalmente cobertas, algumas das quais sao muito caras e ricas, trazidas do Japão. Mas quando saem sem elas, a patroa dificilmente se distingue da criada ou escrava pela aparência exterior, todas inteiramente cobertas, mas os seus sherazzees (saraças) são de melhor qualidade.
"Essas mulheres, dentro de casa, usam exteriormente uma veste de mangas muito largas, chamada kamono ou kerimono japonês, por ser o trajo ordinário usado pelos japoneses, havendo muitos que são elegantes, trazidos de lá, de seda tingida, e outros tão caros como aqueles, feitos aqui pelos chineses, de rica bordadura de seda colorida e oiro (...)". Este quimono deve corresponder ao quimao ou baju, que, nas mulheres macaenses das famílias ricas, talvez quando havia em casa pessoas estranhas, era em tecidos espessos, caros e vistosamente decorados.
Quando saíam, as mulheres iam encerradas nas suas cadeirinhas e envolvidas nas suas saraças ou véus, o que é testemunhado pelos desenhos com que Peter Mundy ilustrou a sua narrativa.
Comparando a descrição de Peter Mundy, relativa a Macau, com outra contemporânea, que o médico francês Dellon nos legou, relativamente ao traje das mulheres de Goa, parece poder inferir-se que os velhos bajus de influência islâmica predominavam na Índia, enquanto em Macau as mulheres dos comerciantes mais abastados os preteriam pelos quimonos de modelo japonês ou mesmo chinês, daí resultando a cabaia baju que chegou ao Século XX neste território do Sul da China. Com o Século XVIII, Macau empobreceu. Muitos homens saíram da cidade, levando, alguns, as famílias consigo, outros deixando-as ficar. Começaram a chegar degredados e aventureiros, indivíduos sem escrúpulos, fugidos de Goa. E a degradação moral acompanhou depressa a degradação económica.
Sir Alexander Hamilton, por exemplo, no primeiro quartel do Século XVIII (8), registou: "Em toda a cidade havia cerca de 200 homens (...) e cerca de 1500 mulheres muitas delas muito prolíficas para gerarem filhos sem marido".
Outros viajantes que demandaram Macau no mesmo Século como, por exemplo, o mareante Nicolau Fernandes da Fonseca (1774), fizeram aliás igual juízo crítico.
Por esta mesma altura, os magistrados chineses Cheong Ü Lam e Iam Kuong Iam, que visitaram e permaneceram algum tempo em Macau no Século XVIII, registaram, numa curiosa monografia xilografada (9), desenhos ri-cos em pormenor, representando tipos portugueses. Entre estes desenhos destaca-se uma "nhonha" cuja indumentária, pelo seu exotismo, lhes deveria ter despertado a atenção, indumentária que corresponde, perfeitamente, às descrições anteriormente referidas e ao desenho que nos legou Peter Mundy no seu livro.
Estes magistrados deixaram, ainda, curiosos apontamentos sobre os usos e costumes dos portugueses de Macau: "Os homens e as mulheres das familias ricas sentam-se e comem (o que significa viverem na ociosidade). Os pobres são soldados ou mareantes que trabalham nos barcos ao serviço de outrém. As mulheres bordam lenços e cintos e fazem bolos e doces como meio de vida".
A descrição destes viajantes chineses continua, exaltando o luxo e extravagância dos portugueses que, à semelhança dos grandes senhores asiáticos, continuavam a sair de cadeirinha ou machila, a pé ou a cavalo, mas sempre protegidos por guarda-sóis transportados por escravos. "O mesmo faziam as mulheres, acompanhadas por escravas, quase todas vestidas da mesma maneira, apenas se diferenciando o traje pela qualidade dos tecidos". Cheong Ü Lam e Ian Kuong Iam registaram, ainda, que os homens não podiam manter em casa mais de uma esposa, porque a mulher se queixava ao Bispo e eles eram castigados. Referem-se, como é óbvio, à proibição da bigamia. Esta visão é puramente sinocêntrica, porquanto um chinês rico podia manter em harmonia em sua casa várias esposas, sendo, no entanto, a primeira quem gozava das regalias de dona-da-casa e de mãe de todos os filhos. A moral confucionista mantinha, assim, o casamento monogâmico exigindo, no entanto, à mulher absoluta fidelidade ao marido. Daí, mostrarem-se os magistrados chineses chocados por "não ser proibido às mulheres portuguesas terem mais homens". E isto porque, naquela altura, o estado de miséria moral e económica da cidade chegara a tal ponto de degradação, que os próprios chefes de família cediam as mulheres e as próprias filhas aos estrangeiros para obterem algum lucro.
Mulheres de Macau por Peter Mundy
Do que atrás ficou exposto e da observação das figuras que se seguem, podemos tirar algumas conclusões acerca da mulher macaense e da vida social de Macau, entre os Séculos XVI e XVIII.
1 - Os trajes masculinos modificaram-se de acordo com a moda europeia, ao passo que os trajes femininos mantiveram grande uniformidade através destes dois séculos, sendo diferentes dos que as mulheres da Europa então usavam. Tal facto leva-nos a crer que na sua maioria, se não na sua totalidade, as mulheres macaenses eram asiáticas e euro-asiáticas.
2 - A vida destas mulheres era uma vida ociosa, no caso de pertencerem às classes mais favorecidas, e francamente orientalizada em qualquer dos casos.
3 - As mulheres das classes menos favorecidas ocupavam-se em trabalhos de costurinha mutri e escarrachada (10) e na confecção de doces e "confeitos".
4 - A mentalidade oriental das euro-asiáticas levava-as a menosprezar certos valores das classes burguesas da Europa do seu tempo, embora os maridos portugueses fossem considerados ciumentos e brutais.
5 - Em meados do Século XVII, quando a cidade empobreceu por carência do comércio com o Japão, muitos homens deixaram Macau e alguns abandonaram, ali, as suas famílias. A miséria levou então muitas mulheres à vida dissoluta que todos os viajantes do Século XVIII lhes apontam.
No entanto, é preciso interpretar a miséria humana em função da miséria material, do abandono a que muitas mulheres foram votadas e da mentalidade de harém, que os portugueses mantinham nas cidades do Oriente onde viviam.
6 - Relativamente ao menosprezo pelos trabalhos braçais demonstrado por elementos de ambos os sexos das classes mais favorecidas deve, por outro lado, ser entendido à luz da mentalidade europeia, que vinha da Idade Média, quando o trabalho para os nobres era considerado humilhante, uma verdadeira "condenação". Era preferível pedir esmola do que trabalhar em "misteres vis".
Perante as populações autóctones, os portugueses, mesmo mestiços, não podiam perder o orgulho da sua linhagem, mantendo a dita "mania da fidalguia" (11) que Bocage, por exemplo, viageiro errante pelo Oriente, tão bem satirizou:
(...) "Mas a tua pior epidemia O Mal que em todos dá que produz flatos É a van, negregada senhoria"(12).
Em meados do Século XIX, as ideias liberais que, de Portugal, se expandiram pelas cidades ultramarinas e, depois da fundação de Hong Kong, a influência da ética vitoriana, imprimiram à sociedade macaense uma nova feição. A moral familiar, tão desprezada nos séculos anteriores, tornou-se de rigor na alta sociedade, o que a abolição definitiva da escravatura, em 1876, veio reforçar. As famílias extensas, que correspondem sempre a períodos de expansão burguesa, começaram a desaparecer. E as raparigas macaenses passaram a desfrutar de uma certa independência, principalmente em relação ao casamento, por ter sido abolido o dote. Assim o registou, por exemplo, José Ignácio de Andrade nas suas "Cartas escritas da Índia e da China" (13).
Depois de inauguradas as carreiras de barcos a vapor, mais foram as mulheres europeias que se aventuraram às grandes travessias e demandaram Macau. A rivalidade que então separou estas mulheres das mulheres macaenses, acentuou-se paradoxalmente no nosso século, quando ondas de europeus de ambos os sexos invadiram o território em busca de lucro fácil.
Excerto da palestra de Ana Maria Amaro na Fundação Gulbenkian, em 4 de Novembro de 1988, Lisboa), publicado na Revista Cultura nº 15 - Ano V - 5º Vol.


Notas:

(1) Citamos apenas os autores que nos pareceram significativos para os Séculos XVI a XVIII e alguns dos mais pormenorizados do Séc. XIX, omitindo muitos outros, aliás mais numerosos, que descreveram alguns aspectos da vida de Macau nos Sécs. XIX e XX.
(2) "Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto, e por elle escrita: Que consta (...). Em Lisboa, Na Officina de Antonio Craesberck de Mello, Imprensa de Sua Alteza & impressa à sua custa, Anno de 1678", Capítulo LXX, p.97.
(3) A. Bocarro; "Livro de todas as Fortalezas da Índia (...)", Bibl. e Arq. Dist. de Évora, Cod. CXV/2-1(1635).
(4) "Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto, e por elle escrita: Que consta (...). Em Lisboa, Na Officina de Antonio Craesberck de Mello, Impressa de Sua Alteza & impressa à sua custa, Anno de 1678", Capítulo LXX, p.97.
(5) Possivelmente seriam escravas ou "criações" chinesas ou simplesmente peipá chai - animadoras dos banquetes tradicionais chineses - trazidas de Ning Po.
(6) J. H. van Linschoten; "Histoire de la Navigation de Jean Hugues de Linschoot (sic) Hollandois: Aux Indes Orientales (...)" Amsterdam, Troisième edition augmentée. Chez Evert Choppenburgh,1638, pp.84 e 85 (1ª ed.1610).
(7) Sir R. C. Temple e Miss L. Anstey; "The Travels of Peter Mundy (...) (1628-1667)", 5 vols., Hakluyt So-ciety, London,1919. Vol. III, Part II, pp.159 e 316 (descrição de Macau referente a 1637). Peter Mundy chegou a Macau a 5 de Julho de 1635, regressando a Inglaterra em Janeiro de 1638 (Pe. Manuel Teixeira; "Macau através dos Séculos", Macau, Imprensa Nacional,1977, p.17).
(8) Sir Alexander Hamilton; "A New Account of the East India (...)", Londres,1727.
(9) "Ou Mun Kei Leoc "(lª Ed. xilografada em 1751, seguida de outra em 1801 e de uma terceira em 1881).
(10) Trabalhos de costura e bordados a branco, e bordados a missangas (mutri ou mutre) e lantejoulas e fio de ouro (escarrachada).
Muitos plebeus eram agraciados com títulos de nobreza e outras honrarias, como mercê por feitos notáveis ao Reino, feitos que, no caso de Macau, podiam ser vultuosos donativos e não feitos de guerra.
(12) Referindo-se aos mestiços de Goa. Bocage; Poesias, Colecção "Clássicos Sá da Costa", Lisboa,1943, p.319.
(13) José Ignácio de Andrade; Cartas escritas da Índia e da China nos anos de 1815 a 1835, Lisboa, vol. II, p.2.

Sem comentários:

Enviar um comentário