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terça-feira, 18 de abril de 2017

Primeira Capitania Geral de Macau (1623-1626): segunda parte


A justiça centrara-se até esta época nas mãos do Ouvidor de Macau, letrado cujas funções englobavam o julgamento de todos casos cíveis e crime da cidade, o qual Ouvidor, a partir de agora, só estava autorizado a dar sentença com o parecer e acordo do Capitão-General. Este estava investido de tão vasta autoridade no que respeitava o foro judicial que podia ordenar a prisão de fidalgos e de capitães da viagem de Japão, remetendo-os para Goa onde cabia ao Vice-Rei o julgamento final. O Governador possuía também o largo poder de condenar em 5 anos de degredo todo o morador de Macau que cometesse algum crime grave e se mostrasse perturbador da paz da cidade, o que, obviamente, fez nascer no seio da comunidade, funda antipatia contra o poder quase absoluto do Capitão-Geral.
As questões financeiras relativas à manutenção de Macau, até este momento sob a alçada dos moradores mais graves da cidade e discutidas no Senado pelos representantes do povo, passaram a estar sujeitas ao parecer e autorização do Capitão-Geral. O alvará de 9 de Maio de 1623 emitido pelo conde da Vidigueira, estabelecera que toda a artilharia que se fizesse em Macau necessitava do consentimento de D. Francisco Mascarenhas. Do mesmo modo, não era permitido dispender-se dinheiro algum nas fortificações e outros melhoramentos ou obras da cidade sem que fosse ouvido o Capitão-Geral.
O Capitão-Mor da viagem, vindo de Goa, que, como foi referido, fundeava em Macau a sua armada pelo espaço de 6 meses enquanto se processava o trato do ouro e seda na feira de Cantão, viu-se automaticamente destituído de qualquer jurisdição sobre a cidade, perdendo as suas anteriores prerrogativas e remetendo-se apenas à alçada sobre a tripulação dos seus navios e os mercadores que viajavam à sua guarda.
A D. Francisco Mascarenhas, como delegado do Vice-Rei da Índia e do rei de Portugal na China, cumpria manter e implementar boas relações diplomáticas com o Tutão, principal dignitário da corte de Pequim e os Mandarins de Cantão, a fim de defender a integridade política da cidade e não provocar desnecessárias represálias por parte das autoridades chinesas. A autoridade do Capitão-Geral imposta desta sorte a uma sociedade detentora de larga autonomia e que sempre sobrevivera corajosamente sem qualquer achega dos cabedais régios, foi, como é óbvio, fortemente contestada. À pequena colónia de Macau, habituada a decidir das suas questões em plena democracia à maneira das antigas cidades independentes, era difícil aplicar uma autoridade decorrente de um centro de poder que a comunidade vagamente reconhecia. O Senado recusou, pois, liminarmente, os moldes do governo de D. Francisco Mascarenhas, «por serem em prejuízo da mesma cidade e contra as liberdades com que ate agora se sustentou e foi em grande crescimento em proveito do estado da India».
A Câmara Municipal, os seus vereadores, em nome da população, puseram em dúvida a provisão que estabelecia a obrigatoriedade do parecer do Geral quanto às despesas a efectuar nas fortificações e mais obras, uma vez que o dinheiro provinha da bolsa dos particulares e de empréstimos prodigamente feitos pelos moradores de Macau.
A cidade fez saber ao Vice-Rei que só voluntariamente dispendia o seu dinheiro em prol da colectividade, e não era ao Capitão-Geral que competia decidir dos cabedais alheios. Não punham os cidadãos em dúvida a idoneidade e mérito de D. Francisco Mascarenhas, mas, no caso de lhes ser enviado, mais tarde, novo Capitão-Geral, havia o perigo de que ele, levado de ambição e proveito particular, «aproveitar se a custa da cidade o que lhe não estava bem...». Refutou também a população de Macau o poder que assistia ao Geral de mandar presos para Goa quaisquer dos seus membros, pois existia uma provisão datando do vice-reinado de Aires de Saldanha que determinava que «nenhum morador desta cidade podera ser emprasado pera a India; mas que sendo culpado, sua causa se tratara na cidade diante do ouvidor de Sua Magestade». Concluiu a comunidade, de modo peremptório, que as ordens e regimentos régios só se aplicavam às praças onde havia feitorias e corriam os dinheiros próprios da Coroa, o que não era o caso de Macau, onde não existiam rendas de Sua Magestade «senão dinheiros dos próprios moradores».
Vamos assistir a três anos de insanáveis disputas entre o Capitão-fidalgo, o Senado e a população em geral, nomeadamente os poderosos e arrogantes magnates da cidade. Outra força de peso se opôs ao Geral de Macau, tornando-lhe ainda mais difícil a tarefa da governação: a poderosa Companhia de Jesus. Os religiosos da Sociedade consideravam o recém-vindo como um potencial concorrente em relação à influência crescente que detinham. Os Jesuítas devem ser considerados não apenas sob o prisma da sua relevante posição política mas também devido aos seus fortes interesses económicos no comércio da prata com o Japão.
D. Francisco Mascarenhas, alvo da animosidade da Câmara da cidade, por um lado, e dos influentes Jesuítas, por outro, sofreu um forte movimento de rebelião que despontou no dia 10 de Outubro de 1624. A tradição local atribuiu a origem do motim ao mau governo do Geral embora esta versão não seja inteiramente de crer. A verdadeira razão deve-se ao facto da comunidade de Macau não suportar, tradicionalmente, a ingerência de estranhos, embora ali postos por vontade real, nos negócios da sua cidade.
Um frontal choque armado ocorreu entre a população descontente e o grupo partidário do Capitão-Geral. A Câmara lançou, inclusivamente, uma ordem, depondo D. Francisco Mascarenhas, e os juízes e vereadores percorreram as ruas da cidade intimando os soldados, os forasteiros, e a população em geral, a recusar obediência ao capitão, sob pena de ser considerado rebelde quem o contrário fizesse.
A razão capital do descontentamento colectivo e do aceso motim, deveu-se à proibição por parte de D. Francisco Mascarenhas, de se realizar a rendosa viagem de Macau para Manila, onde, em troca da seda resgatada na feira de Cantão, se comprava a preciosa prata do Peru. O desempenho de D. Francisco Mascarenhas na capitania geral saldou-se por um largo fracasso, por um frontal desacordo entre a colectividade e o poder instituído, por uma interminável agenda de acesas reclamações feitas pelo Senado ao Vice-Rei. No dia 8 de Abril de 1626 recebeu D. Francisco Mascarenhas uma carta de guia do conde da Vidigueira, em nome d'Él-Rei, intimando-o a entregar a cidade a D. Filipe Lobo, o novo Capitão-Geral, que assumiu o poder em 19 de Julho do mesmo ano. Todavia, não podemos assacar totalmente a D. Francisco Mascarenhas todo o peso da culpa do desagrado do povo de Macau, pois, como foi referido, o que descontentara a gente fora a tentativa de centralização do poder materializada no Capitão-Geral. Também D. Filipe Lobo, o segundo governador de Macau, não conseguiu impedir que os moradores da cidade lhe votassem grande ódio, como se deduz das sucessivas queixas ao Monarca, traduzindo uma insanável desobediência e rebeldia à autoridade central.
Outros governadores se sucederam e a recepção por parte dos vassalos da Coroa portuguesa em Macau registou a marca do forte espírito de autonomia que sempre caracterizou a pequena «república» das costas da China.
O conde de Linhares, em carta de 26 de Setembro de 1634, dirigida ao Geral de Macau, Manuel da Câmara de Noronha, aludiu à premente necessidade de «refrear a loucura dos moradores». Uma década volvida, elevou-se a vez do vice-rei conde de Aveiras, o qual, igualmente, referindo-se à sociedade rebelde de Macau, fez lembrar que «não era novo mandar se tirar de povos os homens prejudiciais e inquietos».
Nos meados do século XVII, quando a miséria se abateu sobre a cidade de Macau, fruto do fecho do riquíssimo trato com o Japão, da ruína do comércio em Cantão e da ronda ameaçadora dos Holandeses nos mares da China, os Portugueses do Extremo Oriente voltaram-se finalmente para Goa, buscando o auxílio material que lhes minguava.
No «Memorial do miseravel estado da Cidade do Nome de Deus de Macao», redigido em 1768, e endereçado ao vice-rei, conde de Vila Verde, pode ler-se:
«Digo pois Senhor apezar de todo o sentimento que visto por falta de Mercancia não ter por nenhum caminho remedio a conceruação daquelles pobres e desterrados moradores. Se digne Vossa Magestade de o por quando Seja Servido a Sinco Fortalezas que naquella Remota terra estão com hum Geral, hum Feitor, oitenta Soldados, hum Sargento Mor e Vinte e quatro Artilheiros, que por Credito, e Respeito da coroa de Portugal Sempre Se sustentou naquella cidade com os dereitos que dos Navios tirarão, E em sua falta com as fintas que entre sy fazião os moradores quando tinhão com que as fazer, tudo Se acabou, torno a dizer, se acabarão tambem as Fortalezas, Se para ellas não for logo Remedio Sem dillação... o qual he justo que não falte a huma Cidade que tem por nome a de Deus».
Artigo da autoria de Manuela Blanco Velez.

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