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segunda-feira, 17 de abril de 2017

Primeira Capitania Geral de Macau (1623-1626): primeira parte

Artigo da autoria de Manuela Blanco Velez
Nos alvores do século XVII, o mais extremo território do Estado Português da Índia situava-se no litoral da China, na pequena península de Heung-San (Ansão), onde em 1557 se haviam fixado os Portugueses, dando origem a uma povoação que, três décadas volvidas, o rei de Portugal fez cidade, denominada Santo Nome de Deus de Macau. De mero burgo de mercadores transformou-se num florescente empório cuja riqueza se reflectia na sumptuosidade dos edifícios e no pecúlio dos seus moradores. Segundo uma fonte coeva, Macau, no início do século XVII, era considerada a melhor e mais rendosa das terras portuguesas na Ásia, «escala de todas as mercadorias que da Índia iam para a China e Japão e outras partes do Oriente».
Através da barreira da Porta do Cerco transitava, anualmente, grande quantidade de sacos de arroz, para alimento da cidade, pelo que a porta era aberta seis vezes por mês e a mercadoria conjuntamente inspeccionada pelas autoridades civis e militares chinesas. Debruçada sobre o mar, a cidade de Macau manteve-se aberta, indefesa e sem fortificações por não as permitir a desconfiança dos Mandarins.
Sempre foi considerado controverso o estatuto da colónia portuguesa de Macau, variando as opiniões acerca da precária instalação dos Portugueses em terras do Imperador da China. Há historiadores que asseveram ter sido o território de Macau objecto de doação imperial à Coroa portuguesa. É a posição do P.e Manuel Teixeira que considera que Macau foi concedido aos Portugueses «sem penção, foro ou tributo». Esta opinião fica invalidada pelo facto de, desde o início do estabelecimento europeu na península de Ansão, ter sido desembolsada uma anuidade para o tesouro do Império, à guisa de renda de um solo cuja propriedade nunca foi alienada pela China. O foro instituído em 1557 e pago pela cidade ao Imperador ascendia a 500 taéis, provando que o chão de Macau não era português nem jamais fora objecto de conquista. O texto de uma carta do Senado de Macau confirma esta proposição:
«Não estamos aqui em terra nossa, conquistada por nós, como são as maes fortalezas da Índia onde somos senhores... senão na terra del Rei da China onde não temos um palmo de chão, maes que o sitio desta cidade, a qual posto hê de nosso Rey, o dito sítio é do rey dos chinas...».
De sublinhar esta dependência dos Portugueses face à China e às leis do Imperador. Da corte de Pequim, através dos Mandarins de Cantão, emanavam ordens e provisões tocantes à colónia portuguesa e, a jurisdição do Tutão, vice-rei da província, exercia-se plenamente no território de Macau. As relações com os Mandarins eram respeitosas e prudentes pois deles dependia o abastecimento da cidade e o trânsito das indispensáveis lanteas de arroz. O trato na feira de Cantão, de onde provinham o ouro e a seda, obedecia às apertadas regulamentações chinesas que os Portugueses respeitavam com fidelidade. Macau encontrava-se, pois, à mercê dos Mandarins.
No ano de 1614, Macau viu-se obrigada a curvar-se perante o decreto imperial, cujo texto, gravado em pedra à entrada da cidade, impôs que todo o navio fundeado no porto fosse sujeito à prévia medição e proibiu a edificação de novos prédios sob pena de serem demolidos. A ofensa foi grande, mas os Portugueses de Macau, longe de Goa e esquecidos do governo da Metrópole, não ousaram o protesto. A arrogância dos chinas fazia sentir a sua evidente fraqueza e a precária situação em terra do Imperador.
As relações entre a cidade de Macau e as autoridades de Goa, inversamente, caracterizavam-se pela ampla liberdade e a quase autonomia da comunidade portuguesa. O Vice-Rei, no distante assento da Índia, pouco podia interferir na vida da cidade, sendo as decisões de ordem administrativa tomadas pelo importante órgão municipal eleito democraticamente pelos cidadãos - o Senado da Câmara. Boxer deu relevo a esta curiosa administração municipal que fez de Macau, por séculos, uma instituição democrática única entre os restantes territórios portugueses do Oriente, os quais eram regidos por altos poderes militares centralizados. Os moradores ou cidadãos elegiam popularmente os seus representantes, que, por seu turno, nomeavam três residentes para vereadores, os quais, conjuntamente com dois juízes ordinários, um procurador da cidade e um secretário, formavam a assembleia governativa. Competia a esta câmara a administração civil, financeira e política da cidade.
Até 1623, a autoridade municipal era partilhada, temporariamente, pelos capitães-mores que, vindos de Goa, comandavam as armadas, as quais, após estacionarem em Macau cerca de seis meses para o trato na feira de Cantão, prosseguiam até Nagasaki a trocar a seda pela prata. No Livro das Cidades e Fortalezas da Índia, cuja redacção data de cerca de 1582, refere-se que «nesta povoação (de Machao) não ouve nunca capitão que residisse ordinariamente nella, sómente o capitão das viagens de Iapão, que se fazem cadanno, como diremos em seu lugar, serue de capitão da terra, emquanto nella está, e quando se vay, hé vindo outro capitão da outra viagem, de maneira que muito pouco, ou nenhum tempo, está sem capitão».

Cumpre referir que o capitão-mor da viagem do Japão, enquanto estante em Macau, dado que nos confins do Extremo Oriente a questão da defesa contra os Europeus não se colocava de momento e a cidade se oferecia largamente aberta e confiadamente desprotegida, formava junta com o Ouvidor e inquiria apenas dos feitos dos moradores, tentando impor a ordem na comunidade. Residia em Macau cerca de um milhar de portugueses, «gente distinta e de muitos haveres», proprietária de amplas e ricas casas, cujas salas bem mobiladas luziam com as baixelas de prata e onde numerosos escravos chinas e cafres vestidos de damasco, serviam os seus amos. Acrescente-se que os opulentos Portugueses de Macau, trajando à maneira de Portugal entre os Chineses, se faziam transportar nas ruas em norimono, cadeira levada à mão por escravos, índice de forte poder económico que detinham.
Podemos nomear, de entre a abastada sociedade portuguesa de Macau, Lopo Sarmento de Carvalho, grosso mercador, e seu cunhado António Fialho Ferreira, António e Jorge Galvão Godinho, poderosos magnates da cidade, Gaspar Borges da Fonseca, casado em Macau, rico armador e benemérito nos empréstimos que fazia à fazenda real, Ponciano Lanços de Abreu, com posição proeminente nos negócios da região, Pero Martins Gaio e Francisco de Carvalho Aranha, importantes benfeitores da cidade, Lourenço Lins Velho e Jácome Rodrigues de Lira, personalidades relevantes do burgo e tantos outros.
No dizer de Ponciano Lanços de Abreu, em missiva dirigida a D. João IV no ano de 1642, «os moradores E a natta da Nobreza e Caualeiros da India Recolhidos aquy das armadas deste Sul, povoam a cidade».
De referir que esta sociedade portuguesa de Macau se caracterizava por forte individualismo e espírito de independência, fruto do largo poder económico que detinha e da plena consciência de que a cidade dependia inteiramente do seu apoio financeiro. Da arrogância dos Portugueses de Macau provinha a permanente indisciplina nos vários sectores da vida citadina e era com grande espírito de rebeldia que esta elite reclamava contra as ordens emanadas de Goa.
A fazer fé nos feitores ingleses estanques em Bantam, os Portugueses de Macau eram puros rebeldes contra o vice-rei da Índia e a cidade palco permanente de cenas sangrentas entre os moradores. Frei Jesus Maria descreveu-os como gente despótica e soberba, vivendo como lhe ditava seu gosto e não respeitando minimamente a autoridade dos capitães-mores que lhes chegavam de Goa e se sucediam num intermitente governo que nada solucionava. Na palavra do conde da Vidigueira, «as differenças que entre elles hauia eram taes que hera esta a mayor guerra que alli se podia temer».
O florescente trato da China, do Japão e de Manila, que deixava elevados dividendos, de tal sorte engrossara aos Portugueses de Macau a fazenda e a bolsa, que eles se consideravam autónomos e bem longe da obediência às leis de reino de Portugal.
Todavia, quando do brutal ataque dos Holandeses à barra de Macau no ano de 1622, foram os particulares que, dando prova de grande coesão, organizaram a defesa, armando os seus escravos e distribuindo armas pela população, de tal sorte que os inimigos foram esmagadoramente derrotados e não mais repetiram a proeza.
A partir desta hora algo mudou na comunidade portuguesa de Macau e a poderosa oligarquia financeira e mercadora do burgo tomou consciência da vulnerabilidade da terra e da necessidade de um centro de comando que provesse à defesa da povoação. Assim, elevaram-se muralhas ao redor do burgo contra outro eventual ataque inimigo, com cabedal oferecido pelos magnates locais, nascendo mesmo à entrada da barra o forte de Santiago. Ergueram-se também os baluartes de Nossa Senhora da Penha de França, de São Francisco e o forte de São Paulo que era «a força de maes consideração e importância que ali passou a haver».
A poderosa comunidade portuguesa de Macau escreveu então ao vice-rei conde da Vidigueira rogando lhes concedesse o título de cidade para a sua colónia e privilégios de cidadãos para os seus moradores. Entretanto, o Monarca, conhecedor da situação, achou por bem enviar-lhes um Capitão-General com plenos poderes para os governar, estabelecer a defesa e instituir a ordem. É bem explícito o regimento do cargo de primeiro Capitão-General outorgado pelo Rei:
«... Se entende e pratica o muito que conuem hauer na cidade  na cidade de Machao Capitão que resida E assista nella, E como primeira e prinçipal obrigação Sua tratte de a assegurar E defender. E de ter para isso em toda a boa ordem E preuenção que cumprir contra quaesquer intentos dos Enemigos da Europa... E para apazigoar E compor os moradores della que ficauão em grandes dissenções e discordias».
Eis que se criou a primeira capitania-geral em Macau, para a qual se designou D. Francisco Mascarenhas, que passara à Índia na armada que transportara o vice-rei D. Francisco da Gama, conde da Vidigueira e se ocupava, no ano de 1622, da defesa da barra de Goa e do Forte de Aguada. Era D. Francisco Marcarenhas fidalgo de grandes méritos; servira a Coroa portuguesa durante 22 anos, fora governador de Mazagão, militar na Flandres e na Alemanha e tudo indicava que desempenharia exemplarmente a função de Geral da cidade de Macau.
1626. John Spencer
D. Francisco Mascarenhas tomou o poder das mãos do conde da Vidigueira no dia 6 de Maio de 1623, rendendo-lhe homenagem e prestando-lhe o juramento da praxe. A autoridade concentrada na pessoa do Geral de Macau era amplíssima, à qual um minucioso regimento englobando o governo civil e militar, concedia a necessária ratificação. Como poderoso representante do rei de Portugal no Império da China, D. Francisco Mascarenhas era responsável pela organização militar da cidade, tendo sido o primeiro capitão a ordenar companhias de infantaria, em número de 200 soldados, para a defesa contra o inimigo.
No regimento estabelecia-se o vasto poder militar do primeiro governador de Macau, pois o Monarca frisara «hey por bem de o encarregar e prouer do dito cargo de Capitão geral da cidade de Machao com todo o poder, mando e Jurdição, E alçada Sobre toda a gente de guerra de presidio daquella cidade». D. Francisco estava também autorizado a instituir um conselho de defesa que integrava o Bispo do Japão, o Padre Governador do Bispado da China, o Sargento-mor da praça e o Vereador mais velho do Senado, os quais deveriam reunir «sempre que as cousas o pedirem para se trattar E assentar o que nellas se deuia prouer».
(continua...)

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