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quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Fotobiografia de Júlio Guerreiro da Tôrre: 1903-1977

Esta história começa no início do século XIX no Algarve. Certo dia, não se sabe onde, quando e de quem nasceu, entrou na Roda, em Faro, a 18 de Abril de 1829, um menino. Nesse mesmo dia o baptizaram na Sé com o nome de Sebastião. Foi dado a criar a Bernarda Maria, mulher de Manuel Guerreiro, um casal que vivia na Tôrre de Natal, lugar da freguesia da Conceição, a meio caminho entre Faro e Pechão.
Júlio Guerreiro da Tôrre em Faro com 14/15 anos
Com os tutores aprendeu a tratar do pomar e comerciar fruta e fez os primeiros estudos. Já adulto, na forma do “Sagrado Concílio Tridentino e da Constituição do Bispado de Faro”, foi já sob o nome de Sebastião Guerreiro que casou com Thereza de Jesuz, de Pechão, que lhe deu dois filhos. Enviuvou passados seis anos.
Voltaria a casar, sob o nome de Sebastião de Souza, com Maria Catharina, mais uma vez de Pechão. Tiveram sete filhos, sendo que no registo de baptismo de pelo menos os três primeiros, volta a aparecer com o nome de Sebastião Guerreiro.
“Do nome com que morreu (em 1904), Sebastião Guerreiro da Tôrre, gravado no gavetão do Cemitério da Boa Esperança que lhe guarda a urna, parece evidente a razão dos apelidos: Guerreiro adoptado do tutor; e Tôrre, do lugar”, recorda o bisneto Júlio Chagas Tôrre que acrescenta: “Seja como for, foi conhecido pelos três nomes e respeitado sob todos eles.”
A Marinha
Entre os descendentes de Sebastião, cinco viriam a ser oficiais da Armada: um Construtor Naval, três da classe de Marinha e um do Serviço Geral. Entre eles, está o oitavo e último filho de Francisco, Júlio Guerreiro da Tôrre (neto de Sebastião), nascido a 20 de Julho de 1903 na Rua do Ferragial (actual Rua da Polícia), onde o pai fora arrendatário da horta com o mesmo nome. “Cresceu na imensa propriedade de onde lhes vinha sustento. Armava aos pássaros, subia aos ninhos, chapinhava no tanque grande onde as mulheres pagavam uns centavos para lavar a roupa que ensaboavam e batiam na pedra lavrada posta em cada posição do lavadouro”, recorda o filho, Júlio Chagas, que explica como era Portugal na primeira década do século XX: “Feita a instrução primária eclodiu a Grande Guerra. Portugal era ingovernável. Os Presidentes do Ministério duravam dias. A dívida pública herdada em 1910, as despesas com a guerra, a inflação, a desvalorização da moeda, empobreciam as pessoas e o futuro amedrontava-as. Para um miúdo cuja escolaridade terminara, o horizonte ficava longe.”
Segundo consta, o pai de Júlio queria que ele fosse aprender o ofício de sapateiro, mas Júlio não estava para aí virado. Rebelou-se e foi à Escola de Alunos Marinheiros - instalada no secular edifício do Paço Episcopal, no Largo da Sé – onde colheu informações e decidiu que faria vida na Marinha. Como era menor precisava de autorização paterna e o pai, a muito custo lá assinou os papéis não sem antes o avisar: - Quando perceberes a asneira e voltares, não contes comigo.
 Com 18 anos e a Escola de Alunos Marinheiros
Rumo a Macau
Em 1919 assentou praça na Escola de Alunos Marinheiros do Sul com o número 3. Tinha 16 anos. Frequentou depois a Escola de Artilharia Naval (que desde 1865 funcionava na Fragata Dom Fernando II e Glória) e um ano depois, no dia de aniversário, era promovido a primeiro-grumete.
Da década de 1920 e dos tempos do “Curso Elementar de Artilharia” há uma fotografia com uma equipa de futebol a bordo da Fragata Dom Fernando, e onde Júlio é o quinto a contar da esquerda nos que estão de pé.
Em 1921 já era grumete-artilheiro (foto abaixo) e um ano depois seguiu para o Extremo-Oriente, onde Portugal tinha presença naval constante. Foi em Julho de 1922 a bordo do Paquete ‘Tenente Roby’. Só regressaria a Portugal cinco anos depois, em 1927. Nesses cinco anos serviu em várias unidades, fazendo parte, por exemplo, da tripulação do NRP Carvalho de Araújo. Uma faixa com o seu nome que evoca a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, por Sacadura Cabral e Gago Coutinho em 1922, testemunha esses tempos.
Fez ainda parte da guarnição da canhoneira ‘Pátria’, construída no Arsenal de Lisboa, com fundos de uma subscrição nacional, reacção popular contra a submissão ao ultimato britânico de 1890.
Numa passagem da ‘Pátria” por Shangai, em 1924, resultou uma fotografia onde Júlio Tôrre está sentado no pau-de-cumeeira do toldo; e no primeiro plano do lado direito, o segundo oficial desse lado, por quem ele nutria especial admiração, é o 1º tenente Joaquim Marques Esparteiro (1895-1976), distinto artilheiro, possivelmente o Imediato ou até mesmo já o comandante da canhoneira, e que viria a ser Governador de Macau, o centésimo a ocupar o cargo, entre 1951 e 1956.  
 JGT entre a guarnição da "Pátria"
E resultou ainda mais um quadro, em tecido bordado, onde se assinala o aniversário da República Portuguesa a mais de 10 mil quilómetros de distância… no Império do Meio.

Desses tempos de militar em comissão de serviço em Macau sobreviveram até o aos dias de hoje vários registos fotográficos. Uns dos períodos de licença em terra, em que Júlio alinhava com os restantes camaradas de armas “em rapaziadas, destrajes e convívios”: com Salvador Silvestre, José Marquilha, Beles Fragata, Júlio Bento e António Carrôlo. A tradicional romagem à Gruta de Camões também foi fotografada, num misto de militares, com uniforme ou traje à civil.
 
É pelo filho, também ele de nome Júlio, actualmente com 80 anos, que ficamos a saber que o pai “viveu muito tempo em concubinato com uma rapariga chinesa que o serenou e lhe refreou os ímpetos. Abria-se num sorriso quando falava de Macau, em especial da vida comum com a pequena”.
Das fotos antigas, que ajudam a contar a história, destaque ainda para as que documentam que em Macau Júlio tirou “todas as cartas de condução que havia para tirar”. Outro aspecto curioso que o filho realça tem a ver comos uniformes: “No Oriente, os marujos faziam grande gala no trajar. Os uniformes dos macaístas eram mesmo feitos por medida nos alfaiates e tinham um corte especial.”
Em 1926 a Ilha do Faial foi abalada por uma série de sismos que culminou no dia 31 de Agosto com um terramoto de grande intensidade que provocou mortos, muitos feridos e destruiu grande número de construções em várias freguesias, designadamente na cidade da Horta.
O Núcleo Desportivo Pátria, “integrando muita marujada que a lonjura não tornara menos atenta”, levou à cena em Hong-Kong em Fevereiro de 1927, uma Récita em benefício dos sinistrados do Faial. “Além de ter cantado no Acto de Variedades, o meu pai representou a Tia Censura na comédia em um acto ‘Um Julgamento’”, recorda o filho e o folheto.
 
Em Outubro de 1927, chegavam ao fim os anos de Macau e Júlio embarca no Transporte NRP ‘Pêro de Alenquer’ de regressa à Metrópole, Portugal.           Nesse ano seria promovido a 2º sargento da Armada.

De regresso ao Algarve, casa-se em 1935 e faz serviço na canhoneira Limpôpo. Em 1941 já é primeiro-sargento e é nessa qualidade que, de 1946 a 1951, ingressa nos Serviços de Marinha de Angola.
Numa fotografia dessa época, tirada em Julho de 1947 em Moçâmedes, está ele como Escrivão da Capitania acompanhado pelos filhos.
Um deles, o Júlio, recorda que o pai foi “Delegado Marítimo da Baía dos Tigres nos últimos quatro meses do ano, tempo suficiente para denunciar o mau desempenho do Chefe do Posto Administrativo por ter matado um nativo à chibatada.”
Júlio seria então Escrivão da Capitania do Lobito durante pouco mais de três anos tendo regressado a Lisboa em Abril de 1951 para se preparar para o Curso Geral de Sargentos.
Em 1953 tornou-se Oficial do Serviço Geral e obteve o galão de Subtenente (foto abaixo tirada em Lisboa). 
De regresso à terra natal, foi Escrivão da Capitania do Porto de Faro até Agosto de 1959. Curiosamente, a Capitania estava sedeada no mesmo ex-Paço Episcopal em que Júlio assentara praça quarenta anos antes. 
Em 1958 JGT enviuvou e voltaria a casar-se. Foi padrasto de um enteado que encaminhou para Armada. Mais uma vez e sempre, um artilheiro naval que embora morrendo novo “teve ainda tempo de usar estrelas nos ombros.”
A 1 de Janeiro de 1977 Júlio Guerreiro da Tôrre morria, em Lisboa, no Hospital da Marinha, no Campo de Santa Clara.
Texto: João F. O Botas

Agradecimentos: Júlio José Guereiro das Chagas Tôrre - tb ele marinheiro - e Arquivo Histórico da Marinha.


 
 

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