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domingo, 30 de dezembro de 2012

Língua de Macau (patuá): final séc. XIX

De todas as curiosidades que os macaistas possam offerecer aos observadores europeus, nada é de certo mais interessante do que a linguagem de que entre si se servem; é  uma espécie de dialecto em que, de envolta com portuguez de 1500, andam locuções chinezas e phrases inglezadas. Os homens, mais affeitos ao nosso convívio, pôde dizer-se que faliam connosco um portuguez acceitavel, se bem que a pronuncia venha affectada do descanso e adocicado de que enfermam as línguas neo-latinas nos climas inter-tropicaes. Entre elles, porém, e, sobretudo, na sociedade feminina, é usada uma linguagem por extremo curiosa, que nós, europeus, mal podemos decifrar, mercê do que tem de ca- prichosa e convencional. 
Alem de algumas palavras muito adulteradas, outras de pura phantasia, de locuções arrevezadas e de phrases de convenção, entremettem as nhonhas e nhonhonhas nos seus cavacos íntimos, gritinhos, risos, exclamações, etc, que tornam de um cunho completamente original o seu papêa, como ellas dizem. A conjugação dos verbos é de uma singeleza e ratice dignas de menção. Pega-se de um verbo e toma-sè um modo, um tempo e pessoa, que o uso adoptou por acaso, ou capricho; com esta palavra e o auxilio das três partículas yd, tá e logo» obtêem-se todas as flexões. 
Por exemplo: do verbo ser toma-se são. E assim se diz: no presente lá são; no pretérito, já são; no futuro, logo são. Isto para todas as pessoas do singular e plural. (...)
Os géneros são quasi sempre trocados, ou escolhidos á tôa. Assim se diz : vos otro nam quero pô sua pé meu casa (você não quer pôr os seus pés na minha casa). Muitas vezes o não é substituído por minca, dizendo-se: são nunca? (é ou não verdade?). Ou ainda: Nunca bom joga (não é bom jogar). Duas pessoas, que se encontram, perguntam uma á outra e respondem reciprocamente: qui nova di vós ? (como está?)  — bom, brigado; e seu filo, fila? (bom, obrigado; e seus filhos?). Querendo perguntar o que diz você? expressar-se-hao por esta forma: qui cusa vós otro fala? Se, por exemplo, pretenderem referir-se à mulher do juiz, dirão: juiz sua mullé qui laia di boniteza! ia mulher do juiz é muito bonita). — Qui foi ellijá fala? (o que é que elle disse?), etc, etc. 
Para dar melhor idéa d'esta ingreziada transcreveremos para aqui parte de uma carta, que em Macau corre impressa, e que já vimos também publicada algures, sem que nos lembre onde. 
Carta da tia Pasohoela a sua sobrinha Florenoia 
«Macao 5 de outubro de 1869. Minha querida Chencha. Gomo vos logo querê sabe tudo novidade di Macao, por isso qui eu já pedi com sium sium, parcêro di jogo, pra trazè tudo novidade di fora pra eu pôde escreve pra vôs. Macao agora já tá muto mudado; já nam têm inveja di Eropa. Pra tudo rua san carreta, san cavallo; di tanto qui já têm, nam têm lugar pra guarda, maio parti fica pinchado na mco da rua de S. Lourenço. Agora tá fazê ung-a casa, qui laia di grande, na horta di governador, tamên pra guarda carreta e cavallo. Ólá um pôco, minha Ghencha, fazê palácio na cidade pra cavallo, tudo pobre pobre vai para pra casinha di campo! Agora tá com força di prepara pra recebe príncipe de In- glaterra. Já pedi cum sium Garlito pra dá moda pra fazê ung-a cadera pra carta príncipe. Querê cadera que têm quatro pinga pra oito commendadô pra carta aquelle bemaventurado príncipe, pra vosso tio pôde entra na numero. Nosso governador logo vae fica na casa vasio de sium Lorenço pra dá palácio pra príncipe. Nosso juiz tá perto vae já pra Goa. Coitado di vello, já soffrê ung-a moléstia ben di grande, que escapa morre. Notro tempo pescaria são na agu salgado; agora são na agu doce. Quí sabe qual o brajero aquelle qui já inventa que na Praia Grande tem pescaria de pece pedra, aquelle rapaz di botica di Neves, já cae na calote di vae pesca á note fronte di sua botica. Pincha linha cae na seco; emquanto tá safa linha . senti comedura; quando puça, apanha ung-a casta di susto, qui laia di grandeI Sao uma rato ganchado na anzol. Tudo vez qui eu sae na janella intopá com ung-a offi- cial di vapor, qui casta di chistoso, historero, sevandizio, qui mas nan pôde ser. Como já são hora di vem tudo parcero di jogo, eu já nam pôde escreve mas novidade. Adeus, minha querida Chencha, Deus conserva saúde pra vos e pra vosso Abelardo. Eu, vosso tio, tia, tia, tio João, tudo manda muto lembrança.  Vossa tia e amiga Paschoela».
in "Macau e os seus habitantes", Bento de França, 1897

Patuá: enquadramento
Na Idade Média, quando mercadores de várias regiões do Mediterrâneo procuraram estabelecer relações comerciais com outros povos, tornou-se necessária a prática de uma língua mista, simplificada, à qual se deu o nome de “língua franca”. Mais tarde os portugueses, ao entrarem em contacto com povos das mais diversas etnias, tiveram necessidade da simplificação da língua. Também os missionários quando foram para o Oriente, “sequiosos de almas para Jesus”, procuraram tornar a fala mais simples. São Francisco Xavier pregava em crioulo e recomendava aos religiosos que falassem em português “como lo falan losesclavos”.
Em Macau, quando os portugueses ali se fixaram, segundo Graciete Batalha assegura, a língua já havia deixado de ser língua franca, ampliada por vários vocábulos e atingido um certo estado de fixação fonética, morfológica e sintática, mantendo-se por trezentos anos, até que começou a desarticular-se, no século XIX.
O dialeto macaísta, chamado também “patuá”, ou “patoá”(do fr. “patois”), tem muita relação com os dialetos de outros povos, como de Malaca e Timor, pela proximidade relativa da Malásia e pela influência do grande número de escravas malaias e timorenses, que nos últimos séculos serviam as famílias macaenses. Muitos vocábulos de origem malaia foram introduzidos no território, desde o início do estabelecimento dos portugueses em Macau.
Além das relações comerciais que se estabeleceram com outros povos, os portugueses casavam-se com mulheres de Malaca e da Índia, pois, por serem considerados “diabos estrangeiros” pelas chinesas, não se casavam com elas. Por esta razão seria impossível um substrato chinês para o crioulo macaísta, acrescentando-se também que o contacto com a comunidade chinesa era apenas tolerado, dadas as dificuldades impostas pela Porta do Cerco.
O “Papiá Kristang”, importado de Malaca, reforça-se durante a ocupação desta cidade, pelos holandeses, em meados do século XVII, quando várias famílias foram para Macau. Das 1.169 palavras estudadas no Glossário do Dialecto Macaense e no Suplemento ao Glossário, Graciete Batalha destaca 194 de origem malaio-portuguesa e malaia contra umas 140 de importação chinesa antiga, uma vez que o “Papiá Kristang” esteve sujeito também a empréstimos do chinês. Também na estrutura gramatical do “patoá”, se registra identidade com o malaio, por exemplo, na reduplicação vocabular para se formar o plural: “criança-criança” (as crianças).
Uma boa parte do vocabulário macaense é de origem indiana: “alua” ou “aluá”(doce), “jambo” ou “jambolão” (fruta), “copo-copo” (borboleta). Mas a base foi sempre a língua portuguesa da 2a. metade do século XVI e do século XVII. Podem ser notados termos antigos ao longo dos séculos, tais como: “asinha” (depressa), “bredo” (hortaliça). É de notar, no entanto, ausência de termos relacionados com a agricultura e horticultura, visto que o pequeno solo de Macau nunca se prestou ao cultivo da terra. Vocábulos relacionados com a culinária, porém, são bastante expressivos quanto ao número. Confira-se:
“badji” ou “baji” (arroz pulu, isto é, gomoso, com coco e açúcar); “chutney de peixe” (à base de cebola, açafrão e coco ralado, muito picante); “chauchau pele” ou “tacho” (cozido preparado com galinha, chouriços, presunto, chispe (pé de porco), carne salgada, duas qualidades de couve, cogumelos e nabos); “fartes” (bolinhos de farinha, ovos e mel): “minchi” (carne picada).
Além do malaio, termos do “canarim” (língua de Goa) foram adaptados pelos falantes do “patoá” de Macau, uma vez que a colônia esteve ligada administrativamente ao governo da Índia durante muito tempo. Acrescentem-se também alguns vestígios da língua espanhola, pela proximidade das Filipinas.O “patoá”, além de ter sido a forma de comunicação do dia-a-dia, registrou-se também na linguagem literária. José Baptista de Miranda e Lima (1782-1848), filho do primeiro mestre régio de Gramática Latina, além de ter exercido o magistério como seu pai, compôs alguns poemas satíricos no dialeto mcaense, como este do princípio do século XIX:
No mez de Agosto unga tarde dom-dom panno vai pescá minhas Pancha vai juntado Nhum Lourenço companhá Andá qui, andá minha Siára perna azedo bem cansado Nhum Lourenço sua estúrdia vai até Rede Chapado. (“unga” = uma; “dom-dom panno” = levando ao colo com todo o cuidado; “juntado” = juntamente; “perna azedo” = perna fraca; “estúrdia” = estouvado; “Rede Chapado” = lugar de Macau).
A primeira menção ao “patoá” teria sido de um autor chinês, Tcheng Ü Lam, na monografia sobre a cidade do Nome-de-Deus, que teve o título de Oi-Mun-Kei-Leok (Monografia de Macau, 1745-46), segundo Graciete Batalha. Tcheng Ü Lam coligiu informações sobre os moradores da cidade e sua bárbara linguagem, compiladas depois com a colaboração de Ian Kong Iâm, na monografia acima citada. Foi traduzida para o português em 1950, devido, principalmente a seu valor histórico.
O filólogo português Adolfo Coelho teria sido o primeiro a estudar o dialeto, ainda que em poucas páginas, em Os Dialectos Portugueses ou Neo-Latinos da África, Ásia e América. Leite de Vasconcelos também se preocupou com o dialeto de Macau numa comunicação durante o X Congresso dos Orientalistas (Sur le Dialecte Portugais de Macau. Exposé d' une Mémoire Destinée à la 10e Réunion du Congrès International des Orientalistes).
O macaense João Feliciano Marques Pereira, destacado orientalista, frequentou em Lisboa o Curso Superior de Letras, tendo sido aluno de Adolfo Coelho. Em Macau foi professor, deputado e jornalista. Editou a revista Ta-ssi-yang-kuo (Grande Rumo do Mar do Oeste), que contém artigos com o título Subsídios para o Estudo do Dialecto de Macau. Como estudiosa do dialecto, destacou-se também Graciete Nogueira Batalha, linguista formada pela Universidade de Coimbra, que viveu em Macau longos anos, publicando vários trabalhos. O “patoá” sobrevive na obra de José dos Santos Ferreira. Poeta e prosador tem numerosos escritos na “doce língu maquista”.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Emissões filatélicas: diversos

Clube Militar Naval: 1966
1950
1996
1999 (editados em Portugal alusivos à transf. de soberania)
Década 1990

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Duas lojas com história fecham as portas

São dois marcos do centro da cidade. Com 70 anos de história, a relojoaria Meng Kei e a tabacaria da senhora Lai vão fechar portas no final do mês, depois do proprietário ter vendido o espaço a uma empresa de Hong Kong. Restam as memórias de duas lojas que dividem um espaço apertado, mas que se enche de gente diariamente. Ali foram criadas quatro crianças por uma mulher que cruzou fronteiras e chegou a Macau por destino.


A conversa é interrompida por clientes – turistas de mochila, homens de fato que procuram gás para o isqueiro prateado ou famílias perdidas no centro da cidade – e balança entre as memórias de crianças que dormiam em caixas cheias de volumes de tabaco quando o fornecedor chegava carregado antes do ano Novo Chinês. Leong Fong Hei ou “senhora Lai”, como é conhecida, trabalha há 58 anos na tabacaria que divide um espaço apertado com uma relojoaria. Ali é também a sua casa. Sempre o será, mesmo quando a 31 de Dezembro o negócio fechar as portas e uma empresa de Hong Kong abrir uma nova loja, minguando a história das ruas. Lai também fala com os braços de tão habituada a receber quem chega, mas a conversa volta a parar. Agora porque uma menina irrompe pela loja e lhe toca na mão, lhe manda um beijo e só volta a desaparecer depois de um sorriso. “A geração mais nova vai ter saudades minhas. Vão chegar aqui e não me vão encontrar”, lamenta enquanto regressa à pequena cozinha para preparar o almoço.
E não se imagina como depois de um corredor fininho - que obriga os corpos a adelgaçarem-se a partir das pontas dos pés para dar passagem - houve espaço para criar quatro filhos com a família do marido. “Os rapazes dormiam lá em cima e as minhas filhas aqui em baixo comigo. Fiquei viúva oito anos depois do casamento”, recorda-nos.
Foram os laços do matrimónio a desencadear esta história. E Lai nunca perdeu as forças. Quando se debruça sobre o balcão às vezes ainda se vê um retrato da juventude. “Quando cheguei, aos 18 anos, a cidade era mais pobre e não tinha muitas oportunidades. Primeiro ajudei como doméstica. Para os emigrantes não era fácil”, descreve. “Também trabalhei numa fábrica de fósforos e depois quando os comerciantes de Hong Kong chegaram comecei no sector têxtil”.
Sete anos depois de adversidades deu o nó. “Nasci no Continente chinês e casei com um homem que trabalha aqui e vim viver com a família dele”, disse, sem saber que o seu nome ficaria escrito na história desta terra. Trabalhar fora de casa não era uma cenário comum para as mulheres. “Eram discriminadas. Até tinha alguns estudos para a época, tendo em conta que na altura a sociedade não deixava as mulheres estudarem para não serem mais inteligentes. Os maridos iriam ter medo de casar. Hoje com esta geração já é diferente”, conta, alargando a sua visão sobre a sociedade moderna. “Agora já há igualdade e se não correr bem podem divorciar-se”. Se lhe pedirmos para pensar no rumo da sua vida diz-nos logo: “tal como uma pessoa vem da América trabalhar aqui também eu vim da China. Era o meu destino vir para Macau”. E a crença mantém-se. “Toda a gente tem o seu destino”, afirma admirada quando perguntamos se acredita mesmo nas linhas que dizem ser o mundo a desenhar. Mesmo que não fossem as forças externas a traçar-lhe o caminho seria a pobreza. O instinto da sobrevivência. “Na altura, na China era complicado. Ou saía ou podia morrer”, desabafa.
Apesar das picadas do passado, a senhora Lai esboça sempre um sorriso até na hora de partir. Entre os armários que têm mais de um século entranha-se a vida, mas mais uma vez a senhora Lai resigna-se com o destino. E guarda a saudade. “Tenho de aceitar não é minha a propriedade, por isso não mando. E sei que não vou apanhar o autocarro para ver como transformaram esta loja”, refere. “Claro que vou ter saudades daqui, mas tenho de sair”, disse tentando conformar-se.
O aviso de que o proprietário iria vender a loja chegou ainda no Verão e a partir daí a história de dois negócios tradicionais foram postos em causa. “Não fiquei surpreendida que tivéssemos de sair daqui, porque há uma grande diferença já nesta rua - as lojas são vendidas e vemos marcas de luxo. Sabia que mais dia menos dia também nos ia acontecer a nós”. A relojoaria, cujo dono fala português, também terá de fechar as portas. As duas bancas ficam frente a frente a uma distância de três ou quatro passos. Quando os clientes entram quase não há espaço para caminhar. É assim desde há 70 anos, quando as duas famílias transformaram um antigo espaço de ópio em duas lojas com ambiente familiar. “Sinto mais pena pelas pessoas de Macau. Os moradores daqui vão sentir a nostalgia”, refere a filha da senhora Lai, que ajuda a mãe na loja depois de leccionar as suas aulas. Apesar do tempo que passa na loja ser agora pouco é ali que persistem os retratos de infância. “Morávamos aqui. Aliás, eu nasci aqui. Durante o Ano Novo Chinês os exportadores fechavam e por isso encomendávamos muita quantidade de produtos e como o espaço era pequeno tínhamos de dormir em cima das caixas... eram muitas”, lembra. Olhando para os móveis de madeira carregados de maços de tabaco, cachimbos, Lai não descreve apenas uma loja. “Este não é apenas um estabelecimento, mas um local de convívio. As pessoas vêm aqui porque já nos conhecem. Como é um espaço familiar os turistas também se sentem confortáveis para pedir informações sobre a cidade”, conta-nos a filha.
Ao longo dos anos, o Largo do Senado e as ruas adjacentes têm vindo a ser “roubadas” pelas grandes marcas. Malas de luxo ou jóias estão a formar grandes corredores, à medida que a história se vai apagando. Contra o lucro apenas os lamentos. “As pessoas sentem pena porque esta rua tem vindo a ser invadida pelas grandes empresas de Hong Kong e deixam pouco espaço para a tradição, para o que é original de Macau”, acrescenta. Segundo nos conta, o Instituto Cultural e o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais já mostraram interesse em recuperar o mobiliário antigo para depois ser preservado.
Às 19h os clientes continuam a chegar. Compram tabaco, garrafas de água, cartões ou apenas anseiam por simpatia. Na banca dos relógios há quem peça pilhas, despertadores, daqueles que dificilmente se encontram nas superfícies comerciais mais modernas, pedem sobretudo soluções para que o tempo acompanhe as suas rotinas, para que os pulsos não falhem atrasando a vida. Os donos da Meng Kei trabalham sem parar. Em português, chinês e inglês. “Volte amanhã às 11h”, pede o senhor da Meng Kei a uma cliente que lhe confia o relógio que parou de bater. Ali os ponteiros movem-se com alegria, apesar dos rostos, sobretudo quando carregam uma lupa redonda, parecerem duros de concentração. Entre as pessoas que chegam, os donos da  Meng Kei preferem o silêncio, guardar para si uma vida inteira atrás de um balcão que mais parece uma montra de relíquias. Restam-nos as imagens e a inevitável certeza que o portão de ferro não volta a ser corrido por aquelas mãos depois de 31 de Dezembro. A movimentação não nos deixaria adivinhar que a loja estava à beira do fim. Só os papéis, em chinês, informam que há descontos de 50 por cento porque aqueles ponteiros não vão ter outra casa.
Depois de observarmos uma banca de relógios diversos, como se fossem peças raras em exposição, retomamos a conversa com a filha da senhora Lai. Esta é uma história comum, iniciada pelas famílias dos actuais arrendatários. “Na altura esta era uma casa de ópio e depois o Governo não permitia que isso acontecesse e as nossas famílias juntaram-se para ocupar o espaço dividindo-o ao meio, metade para o tabaco e metade para os relógios”.
O último capítulo escrever-se-á em 26 dias. “Não vamos continuar o negócio. A minha mãe já está a ficar velha. Se não tivessem vendido a loja continuaria aqui e viria ajudá-la”, refere. E depois de ver a cidade crescer, este desfecho nem chegou a ser uma surpresa para a senhora Lai. E foi por isso que não permitiu aos filhos seguir as suas pisadas. “Não deixei que ficassem a trabalhar aqui. Sabia que este espaço não era nosso. Depois, um dia quando lhes pedissem para sair teriam de começar do zero, à procura de um novo emprego”. Quando fala dos rebentos olha-nos com alegria enquanto segura uma taça de arroz. Todos conseguiram voar, depois de ter lutado quase sozinha para os educar. E tal com os ponteiros a senhora Lai não para um segundo. Monta uma mesa na cozinha, arrasta bancos, serve chá. E leva-nos a crer que mais ninguém poderá conhecer tão bem os cantos daquela casa. 
Artigo de Fátima Almeida e Viviana Chan publicado no JTM de 5.12.2012

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O maior desastre naval ultramarino português dos últimos 200 anos

No dobrar da primeira metade do século XIX o que restava do império ultramarino português vogava entre sentimentos redentoristas de uns e abatida descrença de outros. Portugal saído de três invasões francesas (1807-14) e de uma guerra civil (1828-1834) encontrava-se completamente exausto em todos os sentidos. Os cofres do estado estavam vazios, o país vivia a letras de crédito e o pessimismo imperava na política e na cultura.
A dívida externa era colossal. A situação dos dias de hoje, comparada com esses tempos, não seria mais do que a falta de pagamento de um mês de renda de casa e condomínio indevidos que poderiam ser pagos quando Deus quisesse. Nesse tempo, o investimento público e privado interno era praticamente inexistente. Restavam como pulmões económicos ainda que cronicamente “asmáticos” os proventos do Vinho do Porto das vinhas do Alto Douro (que os ingleses geriam e de que retiravam a maior parte dos lucros), os reduzidos têxteis da Covilhã e algumas indústrias de vidros e porcelanas de Sacavém e da Marinha Grande que despontavam e que, se mantinham a fortuna pessoal de alguns, eram claramente insuficientes para fazer sair Portugal, por inteiro, da crise profunda em que estava mergulhado. O resto do povo sobrevivia na miséria a cavar a magra terra.

O Exército estava reduzido à expressão mais simples. Quanto à Marinha, com meia dúzia de fragatas e corvetas, mal navegava para não gastar o dinheiro do orçamento disponível que não chegava sequer para pagar o concerto dos navios, quanto mais para patrulhar o ainda imenso império ultramarino português. Por isso, ficavam ancoradas no Tejo à espera de melhores dias, vogando de quando em vez até ao porto do Rio de Janeiro, do outro lado do Atlântico e vice-versa a fim de manter as aparências de um reino unido, como consagrado umas décadas antes entre Portugal e o Brasil, por tratado, visado, mas que para todos os efeitos não existia desde o momento em que foi assinado (se é que alguma vez chegou a estar em vigor de facto e de direito).
Nas bolsas de Londres e de Paris, os títulos do tesouro português valiam apenas o que os grandes especuladores da bolsa, como Mendizabal (o Soros de então e os Rotshild anglo americanos e igualmente especuladores internacionais) faziam crer que valiam. Ou seja, de facto, nada... Nesse contexto de crise e desespero, diga-se, Portugal não se encontrava sozinho. De facto a vizinha Espanha igualmente saída recentemente das mesmas e sucessivas crises (invasões francesas, e guerra civil, para além dos movimentos independentistas bolivarianos das Américas) encontrava-se em condições semelhantes.
Portugal tinha, por força de todas essas circunstâncias, políticas e económicas, perdido o Brasil. A Espanha, por seu turno e por semelhantes circunstâncias, perdera um continente inteiro, ou seja: - as Américas do centro e do Sul. Nesse paralelo não admira que entre os dois rivais ibéricos surgisse, nessa conjuntura de “desgraça”, um certo sentimento de solidariedade. Salvar os dois impérios ultramarinos sempre desavindos desde o “Tratado de Tordesilhas” contra a crescente supremacia das restantes potências europeias que chegavam, bem mais de dois séculos tardios à corrida global: – Inglaterra, França, Alemanha e Holanda - já não contando com os modernos Estados Unidos da América do Norte (EUA) que entravam na liça como hodiernosconquistadores (Estes ainda que apostassem na força das armas, como os outros, mas diferentemente entendiam que os exércitos e as marinhas não eram mais do que suportes pragmáticos para fazer valer negócios e extrair lucros do comércio que, no século XIX, tudo movimentava e a tudo se começava a sobrepor) parecia ser imperativo.
Nesse contexto a tal solidariedade ibérica poderia ser uma solução? Foi assim que, então, se colocou a possibilidade do Iberismo. Uma eventual federação entre Portugal e a Espanha que salvasse os interesses do Portugal ultramarino a Leste do tratado de 7 de Junho de 1494 (o tal de Tordesilhas). Uma proposta que se no Extremo Oriente faria todo o sentido em Portugal e Espanha pouco faria como se viria a verificar (falei deste assunto em artigos anteriores aqui no “JTM”). Foi nesse ambiente datado que os defensores dos passados imperiais comuns e de sebastianismos inconsequentes, manobraram em Lisboa e Madrid no sentido de sair da depressão com um passo resoluto para a China.
Perdido o Ocidente, e periclitante o Oriente, a China poderia ser uma saída airosa e de futuro. Principalmente para Espanha que o único pé que tinha no Levante eram as Filipinas. O objectivo táctico de Lisboa, em eventual consonância com Madrid (ainda que duvidosa) seria o de enviar para o outro lado do mundo, as tais fragatas e corvetas que descansavam no Tejo à espera de reparo decente. Isto, claro, depois de armadas, municiadas e completadas com o embarque de companhias de infantaria devidamente preparadas para iniciarem uma campanha que se destinaria a desembarcar em Macau com fardas e clarins, tambores; engenharia, apoio de artilharia de campanha, estabelecimento de bivaques e em seguida conquistar toda a ilha de Sheong Sam (onde Macau se situa). Politicamente a operação afigurava-se fácil para quem nela queria acreditar. O exército chinês como era sabido (através dos despachos dos correspondentes dos jornais europeus sedeados na China e dos relatórios dos governadores de Macau e dos oficiais de “inteligência” da Marinha, era evidentemente antiquado e não teria força para se opor a duas centenas de fuzileiros armados com armas de repetição, obuses e morteiros capazes de disparar em pouco minutos rajadas de chumbo e dezenas de granadas explosivas que destruiriam qualquer forte medieval que se lhe opusesse, como eram os que rodeavam a colónia portuguesa e defendiam a “Boca do Tigre”, embocadura do Rio das Pérolas. A Espanha faria o mesmo, como de facto fez (embora com um atraso de quase seis anos) enviando para o arquipélago filipino, igualmente, o melhor que tinha em termos de poderio naval consubstanciado no primeiro navio de guerra a vapor e casco de ferro sob o comando do almirante José Malcampo Monje. E certo é que assim foi.
A facção redentorista portuguesa enviou para Macau as jóias da sua marinha, ou seja a “Corveta Íris” e a “Fragata D. Maria II”. Só que desígnios políticos mal sustentados raramente surtem efeitos e foi o que aconteceu. Os redentoristas certos de que a China se encontrava na ultima das depressões da sua história esqueceram-se de que na conjuntura global do tempo, as únicas forças militares credíveis eram as das grandes potências e Portugal estava longe de se encontrar entre elas, tal como a Espanha. Mas esta constatação é apenas um parêntesis. O que aconteceu a seguir foi que, depois da luz verde política de enviar expedição militar para Macau, cumprir os traçados do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Lisboa em consonância com Madrid se revelou missão impossível. O comandante da Corveta “Íris” ancorada no Rio de Janeiro, recebidas as ordens para rumar para a China fez o que pode, mas depois de ter zarpado e a poucas milhas de rumo não teve mais do que reconhecer a impossibilidade de continuar por deficiências técnicas. O navio não estava, de todo, em condições de se fazer ao mar para tão longa distância. Por isso não houve remédio senão o de “dar à ré” e rumar de novo ao socorro do porto das ilhas brasileiras de S. Paulo para reparações porque estava a meter água. Perante todos esses contratempos a “Íris” acabaria por chegar a Macau muito fora do calendário da missão que lhe estava destinado, tal como a “Corveta D. João II” mandada zarpar de Goa com uma companhia de “cipaios”, mas que, igualmente, não chegou a fazer junção em tempo útil.

Monumento de homenagem às vítimas existente na Taipa. foto de João Tavares
Quanto à soberana fragata “D. Maria II”, partida de Lisboa, a viagem decorreu sem incidentes e no tempo previsto até arribar a Macau onde ancorou no porto da Taipa, mais, ou menos no local onde actualmente se encontra a embocadura da “Ponte de Sai Wan”. A tripulação da “D. Maria II” que vinha preparada para a guerra manteve-se no interior do navio desembarcando apenas alguns oficiais encarregados de levar despachos ao Governador e meia dúzia de doentes que careciam de tratamento. O resto da marinhagem permaneceu a bordo. Subitamente porém sem que nada o fizesse prever no dia 29 de Outubro de 1850, dia de “mornaça” como se diz no calão da marinha e quando se celebrava o aniversário da rainha que dava nome à imponente embarcação o Mundo explodiu com a fragata. O fragor foi tão forte que os vidros das janelas das casas da Baía da Praia Grande em Macau, do outro lado do canal, a mais de dois quilómetros de distância, se estilhaçaram. O imponente navio de velas alçadas soçobrou em minutos. Em torno dele, igualmente se repercutiu o desastre.
Uma fragata francesa, pela força da explosão, perdeu todo o velame e registou entre a tripulação mortos e feridos. Um brigue inglês que ao lado descarregava ópio sofreu, igualmente, um número indeterminado de vítimas em quantos marinheiros se encontravam no convés. Milagrosamente a corveta americana ”Marion” que se encontrava ainda mais perto do que os outros, como por milagre, quase nada sofreu e foi a primeira a enviar socorro, ainda que já nada houvesse a socorrer. Estava tudo perdido e reduzido a tábuas fumegantes e informes que boiavam nas águas. Nem sequer cadáveres havia a recuperar.
Mas o pior de perdas em vidas foi o que se registou entre homens e mulheres dos inúmeros juncos e tancares que, nesses tempos constituam uma espécie de mercado flutuante que girava em torno dos grandes e inúmeros navios que ancoravam na Taipa. Morreram todos, ou quase todos, nas pequenas embarcações que manobravam na feira permanente que era o Porto da Taipa nesse tempo. De entre esses o número de mortos e feridos nunca se soube ao certo, nem ficaram registados oficialmente. Para todos os efeitos eram anónimos carentes de cédula de identidade, mas terão sido o dobro dos perecidos na fragata e nos outros navios estrangeiros que a rodeavam. Ao todo, cálculos feitos, sem estatísticas, o número de vítimas mortais terá ascendido a mais de meio milhar.
Diz-se que o atentado foi inspirado pela “Sociedade dos Rios e dos Lagos”, uma “tríade” cujos iniciados eram, essencialmente, militares do exército da China e que teriam aliciado numa das várias tabernas do “ Bairro do Monte” (adjacente ao que é hoje conhecida como “Rua das Mariazinhas”) um dos tripulantes da “D. Maria II” para a fazer explodir. Se foi assim o aliciado terá sido precursor, em mais de duzentos anos dos terroristas suicidas de que estamos habituados a ouvir falar nos telejornais dos dias de hoje. O suspeito era um primeiro grumete, fiel da pólvora, alcoólico e conhecido por relapso em matéria de disciplina militar, moral e cívica. Segundo relatórios oficiais, no dia seguinte a ter sido castigado por mais um acto de desobediência, perante toda a tripulação da Fragata, terá descido ao porão e posto fogo ao paiol. Morreu no acto e por isso o inquérito que se sucedeu ficou privado de uma testemunha (ou réu) essencial, para contar a verdadeira história. Os outros pereceram todos no desastre.

Neste contexto de mistérios atrás de mistérios acresce ainda um outro que vale a pena transcrever dos jornais portugueses da época e é o seguinte: - “pela mala chegada em Outubro (a Macau) recebeu um dos oficiais da fragata o falecido e de todos lastimado tenente Luís Maria Bordalo (oficial da tripulação), uma carta de Lisboa de seu irmão, em que lhe dizia que naquela capital corria a notícia, de ter voado com uma explosão a “Fragata D. Maria II” carta que por esta singularidade o dito oficial mostrou a alguns dos seus camaradas, e hoje se acha em Macau o cavalheiro que a escreveu, que é o actual secretário do Governo (Francisco Bordalo), que plenamente confirma o facto”.
Na verdade é bem extraordinário falar-se em Lisboa de um sucesso que nada tem de comum e que só daí a dois meses se viria a verificar, de facto, a 3.600 léguas de Lisboa”. Que estranha e ominosa missiva!...
A catástrofe custou a vida a 191 membros da tripulação da Fragata. Os poucos que se salvaram foram 36 tripulantes que se encontravam na cidade. Uns por doença, internados no Hospital Militar Conde de S. Rafael, outros de licença e outros ainda em serviço de estafeta. Também o filho, criança, do comandante da “D. Maria II”, Francisco de Assis e Silva (que igualmente pereceu no desastre) e viajava a bordo, se salvou pelo facto de ter ido, a terra, singularmente, por sugestão, do próprio marinheiro a quem foi atribuído o atentado. Porque razão o comandante terá dado ouvidos a um dos menos graduados e mais indesejáveis dos seus tripulantes acedendo a desembarcar o filho? Outra interrogação insondável a somar a um episódio que permanece desde então rodeado das mais negras sombras. Creio que o mistério da explosão da mais imponente fragata portuguesa do século XIX e a verdade do drama nunca será verdadeiramente esclarecida a não ser nos romances que o irmão do malogrado tenente Bordalo (Francisco Maria Bordalo) deixou escritos e que jazem, mais ou menos ignotos no pó das estantes da Biblioteca Nacional de Lisboa e na Torre do Tombo e mal constam da história da literatura portuguesa. Creio que neste caso a verdade nunca virá a ser conhecida mas apenas a nossa imaginação poderá deixar campo a quem queira pegar no tema e fazer dele uma novela baseada em factos autênticos, como se diz, nos filmes de ficção ou nas telenovelas.
Artigo da autoria de João Guedes publicado no JTM de 01-03-2011
Nota: no blog existem outros post's sobre o tema que já serviu de inspiração a livros/romances como "Sansão na Vingança" de Francisco Maria Bordalo.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Macau a 'tinta-da-china' por Charles Chauderlot


Charles (Carlos) Chauderlot Cortes nasceu em 1952 em Espanha (é filho de pai francês e de mãe espanhola).
Licenciado em Direito e Ciências Políticas intitula-se como "artista viajante".
Em 1997 radicou-se em Pequim e teve acesso a locais que poucos tiveram, nomeadamente à Cidade Proibida. Foi mesmo o único estrangeiro a ter tal privilégio.
Em 2006 mudou-se para Macau e tem pintado o território - em especial o "Macau Antigo" - como outros artistas estrangeiros o fizeram no passado. Desde Chinnery a Fausto Sampaio passando por Smirnoff, Luís Demée, Herculano Estorninho e outros...
Na exposição de 2009 "Macau antes do amanhã" utilizou a tinta-da-china e na altura disse: "Pinto não como uma forma de protesto, mas sim para recordar as paisagens e os edifícios que já não existem" ao jornal O Clarim.
“Gostaria que o centro, o coração de Macau, fosse protegido para que se conserve a alma de Macau. Se alma de Macau estiver protegida, ficarei por cá, tal como Chinnery, até ao final da minha vida. Mas, se Macau se tornar numa cidade como Zhuhai ou Hong Kong… não sei.” Entrevista ao jornal Ponto Final, 13-10-2009 
A mais recente exposição intitula-se "Deuses, Divindades e Rituais" e pode ser vista na Fundação Rui Cunha em Macau até 19 de Janeiro de 2013.
 O autor na inauguração da exposição. Foto FRC

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Início do século XX: imagens

Baía da Praia Grande: década 1920
Baía da Praia Grande: ca. 1905
Baía da Praia Grande: ca. 1900
Vapor no Porto Interior: ca 1920
Largo do Senado: dia de festa em 1915
 Chácara/Villa Leitão ca. 1905
 Fortaleza da Taipa ca. 1905
 Palácio do Governo ca. 1900
Residência do general Fernando Rodrigues ao Bom Parto ca.1910
 Vista parcial da cidade: anos 20
 Pavilhões premiados na Feira Industrial de 1926
Feira de 1926: governador e comissão organizadora; corpo de polícia; pavilhões
 San Ma Lou / Av. Almeida Ribeiro
Post dedicado a Albertino Alves de Almeida que morreu dia 24.12.2012 em Macau

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Boas festas

Com 2012 quase a chegar ao fim resta-me agradecer a v. companhia em mais um ano - e já vamos a caminho do quinto! - e deixar a promessa de continuar por muitos e longos anos este projecto. Bem hajam!

domingo, 23 de dezembro de 2012

A Ceia de Natal em Macau


Estamos a muito poucos dias da véspera do grande dia de Natal e por isso nada melhor do que recordar o que eram as ceias das casas maquistas de outrora, se bem que ainda se mantenham muitos costumes e se celebrem em algumas famílias mais tradicionais, não mais nas antigas casas senhoriais da baía da Praia Grande ou Penha, mas sim em apartamentos de prédios ou torres que agora são a nova cara de Macau moderno.
Nunca nos poderemos esquecer que a presença dos portugueses em Macau data de meados do século XVI e que aqui chegavam mercadorias e especiarias que eram trazidas da Índia, de África, de Malaca e outras paragens por onde navegavam estas pequenas embarcações que necessitavam de lastro. Nelas também vinham novas gentes que se foram estabelecendo. Os casamentos, muitas vezes por motivo de trocas comerciais, terão trazido para cá não só comerciantes, mas também mulheres de diferentes etnias. Com elas vieram conhecimentos culinários distintos, usos e costumes tradicionais das suas terras de origem. Outra particularidade, espiritualmente falando, era a fé cristã que vinha e era espalhada pelos missionários, figuras imprescindíveis e inseparáveis das naus portuguesa, nestas expedições ao Oriente.
É tradição do Macaense ter uma mesa “farta” quando recebe alguém em sua casa e a consoada não foge à regra, mas esta era celebrada com simplicidade, pois de acordo com os dogmas antigos da Igreja Apostólica Romana, nessa época praticava-se a abstinência o que significava a não ingestão de carnes até à ceia de Natal. Por isso ao jantar, antes da Missa do Galo, esta refeição era composta somente de sopa de lacassá (aletria) e empada de peixe. O momento mais alto nas celebrações passou a ser a ceia, depois da missa da meia-noite e o do almoço do dia de Natal, no dia 25 de Dezembro, onde a mesa era então composta de imensas carnes e doces, quebrado que estava o jejum e a abstinência dos dias anteriores. Depois da ceia ou do almoço da família, tinha lugar a distribuição de presentes entre todos. Embora estas práticas estejam profundamente alteradas, ainda restam algumas famílias que mantêm esta forma de celebrar o Natal.
A exiguidade das áreas de habitação, nestas novas “torres de babel”, não é muito favorável a grandes reuniões familiares, nem à inclusão de todos os pratos que antigamente enchiam por completo uma mesa maquista nas casas senhoriais ou mesmo apalaçadas. Podemos até enumerar algumas das razões: O espaço das actuais cozinhas é minúsculo; a falta de pessoal doméstico como outrora, para ajudar a dona de casa; o emprego e a profissão desta última, faz com que ela tenha de dividir o seu dia-a-dia entre a casa a família e a sua vida profissional.
Algumas das famílias mais numerosas, que não querem perder por completo estas tradições natalícias, procuram dividir as tarefas entre várias famílias, consoante a especialidade em que cada uma se especializou melhor. Assim temos quem faça a “Sola de Anjo” ou “cavacas”, cuja origem é sem dúvida portuguesa, outras que preparam os “sonhos”, “fartes” ou almofada do Menino Jesus, no que respeita aos salgados, nas carnes, temos as carnes assadas, o “porco bafá-assá”, o perú, que foi com certeza um hábito trazido pelos ingleses em finais do século XIX com a entrada em Hong Kong, assim como o “Christmas cake” ou só “cake” um bolo muito apreciado nesta época, assim como nos baptizados e casamentos, cuja particularidade é ser confeccionado com uma variedade de frutas cristalizadas e licores. Estas são algumas especialidades desta terra na época natalícia.
A tradicional consoada, mais recentemente, em nossas casas, começa com a canja de galinha, ou o lacassá e toda uma variedade de pratos da gastronomia macaense, tais como:
- O “tacho” (ou chau chau de peles, espécie de cozido à portuguesa, adaptado localmente); O porco bafassá; O apa-bico, Os chilicotes. E nas sobremesas temos sempre: Os “cabelos de noiva” (fios de ovos); O popular bolo menino; O alua; Os ginetes; o bicho-bicho; o muchi –muchi, etc..
Para concluir podemos ainda dizer que com estas festas todas e com esta abundância, resultou na criação de um novo “prato de assinatura” maquista! Nada mais, nada menos, do que o “Diabo”, pois para nada se deitar fora, com todas estas sobras de comida da véspera, nasce o que, mal comparado, em Portugal dá pelo nome de “Roupa Velha”, aqui é baptizado de “Diabo”, mas que raio de nome, tão oposto á época e espírito natalício! Será que alguém me pode explicar a razão de ser deste nome!?
Valha-nos o Menino Jesus! Um Feliz e Santo Natal!
Artigo da autoria de Luis Machado publicado no JTM de 21-12-2011

sábado, 22 de dezembro de 2012

Diário de Albertino Alves de Almeida

"E Qual é o Problema? Extractos do Diário de um Macaense", livro da autoria de Albertino Alves de Almeida editado em 2012. O livro reúne 21 "crónicas adaptadas e actualizadas a partir de relatos seus anteriormente publicados na Imprensa local em língua portuguesa, ou escritas de propósito para o livro, retratam, em discurso directo, situações curiosas, tristes ou divertidas, algumas inéditas, por quem as viveu por dentro."
No prefácio, Cecília Jorge, escreve que a obra permite a “descoberta de personalidades marcantes no seu tempo, que esse mesmo tempo acabou por ir apagando, mas também de outras figuras que, por uma razão ou outra, tiveram um papel preponderante no rumo da História mas acabaram por ficar de fora”.
Albertino, "Tino" para os amigos, foi funcionário administrativo de carreira, prestou serviço em Macau e nas ilhas (presidente do concelho), foi empresário, dirigente associativo e um dos desportistas mais polivalentes e populares de Macau na segunda metade do século XX. Fundou e dirigiu, em finais dos anos 70 do século passado, o “Jornal Luso-Chinês”.
Contra capa do livro
Excertos de uma entrevista a Hélder Fernando publicada no jornal Hoje Macau de 21-12-2012
Comecemos pelo título do livro.Porquê “E qual é o problema?”
Por 1971, quando veio cá uma delegação da Casa de Macau em Portugal, então presidida pelo Carlos Estorninho. Fui indicado pelo Correia Marques que era o director do Turismo onde eu na altura trabalhava, para receber a delegação e organizar as habituais visitas às entidades e locais, jantares, almoços, até coisas pessoais de algumas pessoas. Depois até foi feito um documento oficial em que me agradecem, precisamente o que pessoalmente me vinham fazendo. Eu dizia sempre que não tinham de agradecer e acrescentava, “tudo se resolve, qual é o problema?”. Era uma expressão habitual em mim que ficou como alcunha. Assim nasceu o título do livro “E qual é o problema?” Tenho outra frase habitual quando me perguntam como estou: vivendo e deixando viver os outros.
(...)
O seu objectivo foi sempre reunir toda a documentação e dar-lhe forma de livro?
Nem por isso, era mais com o espírito de registar para as coisas não se perderem na memória, minha e na de outros. Há um pormenor curioso que relato no livro, que foi decisivo para eu fazer este livro. Eu estava em Coloane desde o primeiro dia da Revolução Cultural. O comandante militar era o alferes Rogério Santos, que muito depois foi presidente do Leal Senado, membro comigo do Conselho Consultivo, sendo hoje médico. Ora eu escrevia frequentemente para a imprensa em língua portuguesa, em jeito de relatos de factos que via e sentia, ou em crónicas. Quando fiz 80 anos, o meu grande amigo Vittorio Acconci,  infelizmente já falecido, foi ter comigo e alertou-me para a eventualidade de se perderem os meus escritos que ele considerava muito interessantes e que deviam estar reunidos num livro. Nesse dia fui para casa muito impressionado com o que tinha ouvido. Andava com problemas do foro oncológico e tinha tido uma quebra, então perguntei ao Mário Évora, um magnífico médico, muito bom amigo, a quem muito agradeço pela sua competência e humanidade, se o meu coração estava bom para aguentar o resto. Como o dr. Mário Évora verificou que o coração estava forte suficiente, comecei logo a organizar melhor a minha papelada toda, a reescrever muitas notas, principalmente as que nunca antes publicadas, tudo sozinho e à mão. Uma das minhas filhas, a que está a estudar em Pequim, é que me ajudou neste ponto. Ela veio recentemente a Macau ao casamento da irmã mais velha, passou os manuscritos para o computador. Já estava com a ideia no livro.
(...)
Disse ainda ter muito mais documentação sua com histórias que viveu.
Pois tenho, muitas mais. Há muitos factos que devem ser contados, por exemplo, a primeira grande campanha de limpeza de Macau, há umas décadas. Ou pormenores que rodearam a criação de uma fábrica de rádios transístores que eu tinha, com um investidor chinês, claro, porque eu não tinha dinheiro para tanto. Ou ainda as quotas e as fábricas têxteis em Macau. Tantas coisas.
Também fundou um jornal bilingue.
Sim, depois do 25 de Abril de 1974, quando já se podia falar. O nome do jornal era Luso-Chinês, impresso nas duas línguas, portuguesa e chinesa. Em princípio era semanário, mas como vivia com muitas dificuldades por não termos o tempo requerido para a atribuição de qualquer subsídio, acabava por ir saindo sempre que possível. O que se lia em chinês não era necessariamente a tradução dos assuntos escritos em português. Tanto que a versão em língua chinesa tinha outro director, o conhecido jornalista Che Fok Sang. O jornal chegou a publicar em múltiplas edições da versão em língua chinesa, vários capítulos da História de Portugal, com fotografias de locais turísticos, etc. Dado que a comunidade chinesa desconhecia em absoluto a nossa História, eu decidi tomar essa iniciativa editorial. Foi no tempo do Governador Garcia Leandro.
Fala de alguns governadores que conheceu mais de perto com visível agrado. Foi até amigo de alguns e professor de ténis, pelo menos de Almeida e Costa, confirma?
Confirmo. E por dizer que falo com agrado dos governadores, não quer dizer que não tenha sido crítico e dito as minhas discordâncias mesmo directamente. Sabe, fui sempre um patriota. Para mim, o Governador  de Macau, escolhido pelo Presidente da República eleito pelos portugueses, era a primeira autoridade. Eu  não podia aceitar alguns insultos que alguns faziam, principalmente o Borralho, ficava chocado, escrevi várias vezes contra isso. Claramente, coloquei-me sempre ao lado dos Governadores e tive relações  bastante estreitas principalmente com o Garcia Leandro ou com o Almeida e Costa. Até houve um jornalista que me chamou Albertino Almeida e Costa.
Integrou o Conselho Consultivo ao lado de altas figuras das elites locais.
Sim, fiz parte do Conselho Consultivo, conheci Almeida e Costa ainda antes de ele ser Governador, pois foi-me apresentado pelo Garcia Leandro no restaurante Fat Siu Lau. Além do mais, fui seu professor de ténis. Foi um governador muito criticado por muitos macaenses, por exemplo... Eu sei, não tenho qualquer dúvida sobre isso. Almeida e Costa era muito autoritário, dizia que não podia haver mais do que um Governador, apenas 1 e era ele. Houve problemas graves com o dr. Carlos  Assumpção que era uma figura carismática, uma cabeça e, mesmo sem ele querer, era de facto o líder da comunidade macaense. 
Entrou em confronto com Almeida e Costa...
Ou Almeida e Costa entrou em confronto com ele. Mas também sei de uma coisa engraçada: muitos que o criticavam, incluindo nos jornais, quando recebiam um telefonema dele iam a correr ao campo de ténis ou onde ele estivesse. E outra coisa: no Conselho Consultivo todos concordavam em tudo com Almeida e Costa. Julgo que ele e mais tarde o Governador Rocha Vieira tinham aspirações à Presidência da República. Às polémicas foram bastantes no tempo de Almeida e Costa. Lembro-me de algumas onde estive envolvido por sempre pretender estar na defesa dos cidadãos. Fundei a Associação do Bairro Areia Preta apenas para defender os moradores de uma lixeira que ali havia. Antes de a fundar, como elemento do Conselho Consultivo, perguntei a um elemento importante da comunidade chinesa, também desse Conselho, o Roque Choi, qual a sua opinião. Ele respondeu que tudo o que era para o bem de Macau, não tinha problema algum. Mas apanharam um susto, porque pensavam que a associação iria envolver-se em aspectos políticos. Convidei o coronel Barreto, comandante da Polícia, para assistir às nossas reuniões com os Kai Fong sócios da nossa associação. Ele confirmou que política não fazia parte dos nossos objectivos, nem de mim como presidente. Para aquela associação que criei, o objectivo era a segurança no bairro, a limpeza, a venda de produtos alimentares de forma higiénica, Com resultados positivos, fizemos festas, óperas, muitas iniciativas.
A propósito, chegou a cantar ópera sem ser chinesa...
Fui actor principal em óperas compostas por Pedro Lobo com letras em português, no tempo em que era Governador o almirante Marques Esparteiro. No liceu, eu gostava de cantar aquelas músicas portuguesas conhecidas e outras. 
Neste livro, recorda uma série de amigos, alguns que já partiram, como Silveira Machado, Vittorio Acconci, padre Nicosia, Pinto Marques, o Joaquim Morais Alves e tantos outros.
Muitas histórias engraçadas e sérias com esses e mais eu recordo no livro com saudade e profunda amizade. E há outros grandes amigos de que falo e ainda estão aí bem vivos, como o Padre Lancelote, um grande amigo.
É verdade que foi decisivo, na época, para a electrificação de Ká-Hó?
Ká-Hó era como uma ilha isolada a poucas centenas de metros dos guardas vermelhos, a povoação não tinha energia eléctrica. Numa das minha viagens, no cumprimento do meu dever, para chegar onde trabalhava um homem fantástico que foi o padre Nicosia, verifiquei que ele tinha um gerador particular que fornecia energia às instalações, mas sobrava e não era aproveitada. Impressionava-me ver as crianças e idosos sentados de cócoras a comer à luz de uma vela. Falei também com outro grande homem, o padre Lancelote, ambos pessoas fantásticas, Santos! Distribuíam roupa que recebiam da América destinada aos  mais necessitados, etc. Pensei e agimos desta forma: o padre Nicosia fornecia de borla o que sobrava da energia do gerador, e o padre Lancelote financiava os custos de espalhar a energia pela povoação. Eu tinha  um amigo electricista, outros que colocaram os postes, mais os guardas auxiliares de que eu dispunha. Em menos de dois meses electrificamos Ká-Hó. Houve invejosos, claro. Uma serie de administradores tinham passado por ali e nao tinham feito, apareceu um sujeito como eu que realizara o que era preciso.
E há a sua brilhantíssima vida de desportista em muitas modalidades. Quem o conhece garante publicamente que foi um verdadeiro campeão em todas elas.
Por exemplo, em hóquei em campo, modéstia à parte, sou uma referência de sempre, jogava a extremo esquerdo. Nessa modalidade fiz a primeira selecção de estudantes locais que levei a Hong Kong. Foi a primeira selecção que houve, não tínhamos dinheiro. Alugámos um quarto pequeno para podermos tomar banho. O jantar estava assegurado, pois fomos muito bem recebidos. O almoço fomos a casa do meu irmão e limpámos tudo o que havia na cozinha. Ganhámos ao campeão de Hong Kong. Também nos barcos dragão, consegui que se voltasse a praticar, pois durante muitos anos este tipo de competição esteve  desactivada em Macau. Recuperámos uns barcos antigos do tempo da guerra, acrescentando uma cauda e uma cabeça. Fiz a primeira selecção de ténis, misturando portugueses, macaenses e chineses. Mais tarde ensinei ténis, até um dia solicitar um subsídio para me deslocar aos Estados Unidos para adquirir mais conhecimentos que fossem úteis à prática da modalidade aqui. Sei das minhas limitações, queria ensinar os mais novos em muito melhores condições, pois o que há de mais importante em qualquer desporto é a iniciação. Não me deram o subsídio. Com muito sacrifício, fui à minha custa e estive quase dois meses na Academia do estado de South Caroline onde estudei e adquiri novos e profundos conhecimentos sobre o ténis, juntamente com dezenas de norte-americanos de todo o país, e com exames rigorosos.
No futebol, também foi campeão?
Pelo Negro Rubro, no tempo em que existia uma grande rivalidade entre este clube e a Selecção Militar. Por acaso também integrei essa selecção quando fomos a Hong Kong. Pratiquei esgrima no tempo do Fausto Branco, quando estava na Mocidade Portuguesa. Fausto tinha sido aluno e mestre de armas dos Pupilos do Exército, aprendi com ele. Vela também gostei muito de praticar. E até cheguei a ser jóquei, diziam que eu podia ter sido um grande campeão internacional. Era uma época, entre os anos 50 até aos anos 80, muito diferente de agora. Hoje os praticantes têm tudo e muitas condições.
Na introdução que escreve no livro, afirma que qualquer semelhança com nomes de pessoas, entidades oficiais, figuras políticas, etc., “não é mera coincidência”.
E realmente não é coincidência, o que conto é tudo verdade. As pessoas que cito são essas pessoas, os factos também. Se algumas ficarem ofendidas, peço muita desculpa. Principalmente, falo no que aconteceu nos chamados distúrbios fruto da Revolução Cultural na China continental.
De todas as histórias que narra no livro, qual a que mais a impressiona ainda hoje.
A ida do Governador Nobre de Carvalho à Associação Comercial assinar como que uma “nota de culpa”, na sequência dos problemas na escola da Taipa e dos tais distúrbios em 1966. Há muitos pormenores que me causam grande constrangimento e angústia. Falo nesse chocante momento no meu livro. Não sou historiador, nunca tive pretensão para tal, mas devia ter aparecido algum historiador sério, conhecedor, ou um jornal, para voltar a tocar num assunto que parece ninguém querer tocar. Já apareceu por Macau um jornalista português, mas baseou-se em documentos oficiais, entrevistou umas pessoas importantes, cada uma delas puxando a sardinha à sua brasa, mas não conheceu uma série de histórias, como tudo começou e como foi o desenrolar dos acontecimentos, o sentir das diferentes comunidades e não apenas de alguns com alguma importância. No livro eu cito factos e nomes. (...)

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Porquê 1999 e não 2007?

Houve zangas e vinho do Porto a mediar uma guerra de datas, com Portugal a tentar puxar por 2007. Mas o destino de Macau ficou decidido já no início dos anos de 1970, 14 anos
antes da visita de Eanes à China.

A data da transferência de Macau foi um dos pontos de maior tensão (se não, o principal) entre a República Popular da China (RPC) e Portugal, durante os nove meses de negociações. Com o ano de 1997 já apontado para Hong Kong, da parte chinesa havia urgência em cumprir o projecto de Deng Xiaoping de ter todo o país unido antes da viragem do século – o mais breve possível e abrindo caminho à reunificação com Taiwan. Para a parte portuguesa, não. E assim nasceu um conflito que teve como expressão máxima a zanga entre o então vice-ministro Zhou Nan e Mário Soares, à época Presidente.
No final de 1986, Zhou Nan estava em Lisboa e incompatibilizou-se com Soares por Portugal não aceitar as datas propostas pela China (1997 numa primeira fase; 1999, noutra). A questão acabou por ficar ultrapassada com a ajuda de Pinto Machado, Governador de Macau, que conseguiu que o vice-ministro fosse convidado para uma recepção oficial, abençoada por uma garrafa de vinho do Porto de 1927, o ano em que nascera Zhou.

"A data de 20 de Dezembro de 1999 resultou de um compromisso entre a posição inicial da China que desejava que a transferência de poderes coincidisse com a de Hong Kong e Portugal, que apontara para que a transferência tivesse lugar em 2007, 450 anos após a chegada dos portugueses a Macau", conta Pedro Catarino, que liderou a delegação portuguesa do Grupo de Ligação Conjunto entre 1989 e 1992. O embaixador clarifica a posição lusa: "Defendíamos que necessitávamos de um período de transição mais longo para evitar a diluição da individualidade de Macau perante a força do Interior da China e de Hong Kong". Já com 1999 aceite, faltava decidir o dia: 31 de Dezembro chegou a ser uma hipótese, mas metiam-se as férias de Natal. "Acordou-se na data, considerada mais conveniente do ponto de vista prático", resume Catarino.

A história das negociações ficou marcada por várias peripécias, entre elas o desaparecimento em S. Bento de uma cópia do documento sobre Macau assinado entre Portugal e a RPC, aquando do estabelecimento das relações diplomáticas, em 1979. "Custa-nos acreditar que só depois de realizadas três voltas das negociações é que se pensou em ir buscar o documento", insurgia-se, em 1987, o Tai Chung Pou.
O acordo de 1979, esclarece Pedro Catarino, "só veio confirmar o que a China já declarara, com a aceitação expressa de Portugal desta vez. Essa foi a única diferença. Nessa altura não se falou em qualquer data específica". Oito anos antes, a RPC anunciava já a criação das zonas económicas especiais de Zhuhai e Shenzhen e a revisão da Constituição rumo ao estabelecimento de regiões administrativas especiais.
O fim da cessão dos Novos Territórios de Hong Kong à Grã-Bretanha, em 1997, é hoje tido como o grande estímulo para os dois processos de transferência. Pedro Catarino recorda o encontro entre dois gigantes da política: "Isso mesmo foi dito por Deng Xiaoping a [Margaret] Thatcher em Setembro de 1982, quando esta insistiu na validade dos tratados internacionais para defender a continuidade da soberania inglesa sobre Hong Kong".

Três anos mais tarde, em 1985, o então Presidente Ramalho Eanes visita a China e é informado de que a RPC pretendia encetar negociações sobre a questão de Macau. "O processo que conduziu à Declaração Conjunta não foi desencadeado por qualquer evento fortuito ou circunstâncias de momento. Foi bem reflectido e planeado por parte da China, preparado à distância, com grande cuidado e minúcia", vinca Catarino.
O terceiro ponto controverso nas negociações tem que ver com o facto de a delegação portuguesa do Grupo de Ligação não integrar nenhum elemento da comunidade. Neto Valente escrevia na altura que, para negociar com uma equipa "superpreparada", Portugal mandava à China uma delegação que deixava "cair a suspeita de que tudo se resolve com a diplomacia de croquete". "Lembro-me muito bem dessas críticas e sempre respondi a elas da mesma maneira: não era por haver um membro macaense que as consultas teriam sido mais amplas", assegura, à distância de duas décadas, o ex-secretário adjunto António Vitorino, numa posição subscrita pelos negociadores.
Artigo intitulado "Nos bastidores das negociações" da autoria de Sónia Nunes publicado no jornal Ponto Final de 13-4-2012