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domingo, 12 de dezembro de 2021

Memórias de Fernando Lúcio

"Fernando Lúcio foi em 1970 para Macau cumprir o serviço militar. Percebeu que naquele território no outro lado do mundo faltavam os sabores verdadeiramente portugueses e, com 22 anos, abriu o seu primeiro restaurante. Quando terminou a comissão na Marinha ainda pensou emigrar para a Austrália, mas mudou de ideias ao encontrar o edifício abandonado do que viria a Pousada de Coloane, que transformou num dos melhores hotéis de Macau. Naquele território abriu vários restaurantes e foi responsável pela promoção da portugalidade. E também conduziu e colaborou na organização do mundialmente conhecido Grande Prémio de Macau.Regressou a Portugal em 2008 e hoje, com 70 anos, mantém-se em actividade com o Caldas Internacional Hotel, mas não esquece Macau, onde regressa todos os anos.
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Aos 20 anos, como era comum na altura, foi cumprir o serviço militar obrigatório e em 1970 partiu em comissão para Macau. “Muitos dos meus camaradas foram para as ex-colónias africanas, mas uma pequeníssima percentagem dos recrutas ia para Macau e eu tive essa sorte”, considera.
A viagem, feita de barco, demorou 64 dias. “Ainda éramos umas centenas de militares, uns iam para Timor, outros para Macau”, recorda. A viagem “não foi nenhum cruzeiro”. A soldadesca viajava no porão e dois meses seguidos no mar não são propriamente umas férias. Mas o espírito de camaradagem que se vivia a bordo fez com que também não tenha sido um grande sacrifício, recorda.
À chegada a Macau, o jovem Fernando, então com 22 anos, deparou-se com uma realidade bem diferente da que deixou em Lisboa. O clima era muito quente, o que aliado à poluição e aos cheiros das ruas, com as típicas barracas de comida, fez com que a adaptação não tivesse sido fácil.
Macau nessa altura era pouco mais do que uma aldeia. O prédio mais alto que tinha era o Hotel Lisboa, com sete ou oito andares, recorda. Não havia muito onde as pessoas se pudessem distrair, sobretudo os portugueses. “Havia dois ou três cinemas em chinês e em inglês. Não havia restaurantes nem cafés. Éramos uma comunidade um bocado fechada”, afirma Fernando Lúcio. Além disso, enquanto militares, não havia uma ligação com a comunidade chinesa local. “O militar era sempre olhado de lado, eles não eram hostis connosco, mas também não eram simpáticos”, conta.
Foi nessa carência de espaços onde a comunidade portuguesa se pudesse juntar e sentir os sabores de Portugal, que viu uma oportunidade para se estabelecer. Ainda com 22 anos começou a explorar por sua conta o restaurante do Clube da Marinha.
“Orgulho-me de ter sido proprietário do primeiro restaurante português de Macau. Havia algumas casas mistas, com comida de Macau e portuguesa, mas restaurante tipicamente português não”, afirma. Foi ali que se serviu a primeira bica, por exemplo, e outras coisas simples que antes não existiam, como queijos, vinhos e enchidos nacionais.
Mas essa não era a sua única ocupação além da tropa. Pegava no aquartelamento às 7h00 da manhã. Era o cabo do rancho, ou seja, um dos responsáveis pela cozinha. Servia os pequenos almoços e saía pelas 10h00 para ir servir os almoços no restaurante do Clube da Marinha. Às 14h00 regressava ao quartel para preparar os jantares e, com o serviço orientado, voltava a sair às 17h00 para entrar ao serviço no Hotel Lisboa, onde era chef, até às 2h00.
“Foram assim os meus dois anos de comissão”, afirma. Quando terminou o serviço militar, continuou a explorar o restaurante do Clube da Marinha, que manteve por cerca de quatro anos, e a trabalhar no Hotel Lisboa, onde ficou até 1977.
Uma nova mudança foi-lhe proporcionada pela oportunidade de voltar a abrir um negócio próprio, numa pequena unidade hoteleira na ilha de Coloane, a menos urbanizada e mais natural das três que compõem a região de Macau. Adquiriu e reabilitou o imóvel para abrir a célebre Pousada de Coloane, que ainda hoje existe como hotel de charme.
Essa foi a derradeira razão para permanecer em Macau, até porque na altura tinha intenções de emigrar para a Austrália e até chegou a tratar da documentação.
A Pousada de Coloane tinha cerca de 30 quartos e estava situada naquele que Fernando Lúcio considera “o melhor sítio de Macau”.
A fórmula que aplicou para o sucesso da sua pousada foi a mesma que o tinha levado a abrir o seu primeiro restaurante: os sabores da portugalidade, que agora explorou ainda mais a fundo. Levou de Portugal contentores de materiais, como o clássico azulejo português azul e branco para decorar e renovar todos os espaços.
Para potenciar o negócio, começou a organizar muitos eventos de cariz português. “Durante mais de 20 anos fiz um festival chamado Abril em Portugal”, conta.
Nesse festival, fazia viajar de Portugal para Macau alguns dos melhores artistas da época, do fado e da música ligeira, como Vicente da Câmara, Octávio de Matos, Carolina Tavares, Nuno da Câmara Pereira, ou Herman José. O festival mostrava tradições nacionais, como o folclore, e também o melhor da gastronomia. “Importava uma série de produtos e vinham os chefes famosos da época, como o chef Silva, que iam lá ensinar a boa culinária portuguesa”, acrescenta. (...)
Acabou por abrir vários espaços ligados à restauração, entre eles “o melhor e maior restaurante de Macau da altura” – o Lusitano, que abriu em 1998, um ano antes da transição administrativa de Macau para a China, que ocorreu a 20 de Dezembro de 1999. (...)
Ainda numa fase inicial da sua estadia, participou em oito edições do mítico Grande Prémio de Macau, na chamada Corrida da Guia, que é dedicada aos automóveis de produção (carros “normais” que são adaptados para competir). E foi mesmo o primeiro português a fazê-lo. “Foi a minha única extravagância ao longo da vida”, comenta.
Participar naquele Grande Prémio, ainda hoje considerado um dos mais perigosos do calendário da Federação Internacional de Automobilismo, não era para qualquer um e por isso era algo que levava muito a sério. O seu bólide era um Toyota Celica que tinha um kit de competição que mandou vir directamente do Japão."
Excerto de um artigo do jornal Gazeta das Caldas, 24 Maio 2019

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